sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Vila Soledade, de Maria José Dupré - RESENHA #172

Estou inteiramente reconciliado com a prosa de Maria José Dupré. Todos por aqui sabem do meu projeto pessoal de ler sua obra completa, e que tive algumas decepções nessa trajetória. A leitura de Os Rodriguez, em 2019, reanimou-me o interesse pela obra da escritora paulista. Vila Soledade (1953), o livro deste ano, veio confirmar minha admiração pela autora de Éramos Seis.

Vila Soledade é sem dúvida uma de suas obras com melhor acabamento. A meu ver, seu problema mais grave concentra-se nos capítulos iniciais, quando a autora despeja para o leitor vasto leque de personagens que não serão essenciais à trama principal. De fato, os capítulos sobre os avós da protagonista podem soar meio fastidiosos e levar muitos leitores ao abandono. Mas felizmente não se trata de um obstáculo demorado ou difícil de ultrapassar e, na sequência, o livro segue num ritmo excelente.

Ana é uma mulher madura, pertencente à alta sociedade, que vive um casamento de aparências. Mesmo que ela tenha casado por amor, seu marido Estêvão nunca a amou verdadeiramente, sendo desses homens que veem o matrimônio mais sob a ótica das convenções sociais.

Frustrada enquanto esposa, Ana também não consegue ser uma boa mãe, tendo dificuldade de ganhar o carinho e a confiança dos filhos. Estes acabam ficando mais próximos de Lisa, a governanta austríaca que cuidara deles desde pequenos. Vera e Rodrigo também manifestam mais interesse pelo pai, considerando sempre mais a opinião dele em todos os assuntos.

Para preencher o vazio de sua vida, Ana dedica-se ao piano, uma de suas paixões. Ela também é uma leitora voraz e está sempre à procura de novos livros. O apoio da irmã mais velha, a conservadora Albertina, também é um consolo em sua existência. Mas a amizade dos moradores e frequentadores da “Vila Soledade”, o sítio da cunhada, será culminante para o desenvolvimento da personagem.

É na “Vila” que Ana conhece Otávio, um advogado desquitado que, desde o princípio, manifesta crescente interesse por ela. A partir daí, Ana vive o dilema da dúvida entre seguir suas próprias inclinações, na tentativa de descobrir a felicidade; ou preservar, antes de tudo, a sua imagem de mulher correta perante a sociedade, principalmente aos olhos de Albertina, sua única irmã, e que jamais concordaria com o divórcio.

Acompanhamos as dúvidas e as cogitações de Ana ao longo de boa parte do livro. Em todas as visitas à “Vila”, novas situações fazem-na repensar sua situação. Em vários momentos ela tenta evitar as visitas ao sítio da cunhada Soledade, um raro exemplo de mulher feliz no casamento, mas a insatisfação de sua vida pessoal a impelem para uma tentativa arriscada de redescobrir o amor.

Vila Soledade é daqueles livros que facilmente geram empatia no leitor, que sofre junto com a protagonista em toda sua angustiante trajetória. Ana é tão humana, tão cheia de defeitos, mas ao mesmo tempo tão desejosa por uma mudança, tão esperançosa por descobrir a felicidade, que sorrimos e choramos com ela, quase querendo abraçá-la em alguns momentos. Era reconfortante ver que havia uma personagem ali, a boa tia Hortênsia, que lhe inspirava e oferecia compreensão.

Encerrei meu ano de leituras com uma das melhores obras de Maria José Dupré. Tem sido uma experiência interessantíssima acompanhar e constatar a evolução de escrita da autora ao longo dos anos. De sua ficção adulta, restam ainda dois romances por ler. Espero que, como este Vila Soledade, tragam boas surpresas nos próximos anos.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O Retorno dos Blythes (The Blythes Are Quoted), de Lucy Maud Montgomery - RESENHA #171

Após empreender a leitura dos oito livros da série “Anne”, restava-me ainda conhecer aquele que é considerado por muitos o nono livro: O Retorno dos Blythes. Como era meu propósito ler toda a série em 2021, tratei de executar a leitura antes que o ano acabasse. Quanto aos dois volumes das Crônicas de Avonlea, como não são exatamente parte da saga de nossa ruivinha, preferi deixá-los para outro momento, pois já basta de Montgomery por este ano rs!

O Retorno dos Blythes também poderia ter sido lido em momento mais oportuno, pois, assim como nas Crônicas de Avonlea, a família Blythe não é o objeto central. Este suposto nono livro é na verdade um compilado dos manuscritos do fim da vida de Montgomery. Nele estão reunidos quatorze contos, dezenas de poemas, além de alguns textos menores que contextualizam o conjunto.

O livro foi publicado pela primeira vez em 1974, numa versão resumida intitulada A Estrada para o Ontem. A versão completa da obra só seria organizada e publicada por Benjamin Lefebvre em 2009. Quase todos os contos compilados (interesse maior desta resenha) constituem a produção ficcional da própria Anne, que costumava ler e comentar suas histórias com toda a família reunida em volta da lareira de Ingleside.

Os contos deste livro podem ser divididos em duas categorias: aqueles cujos temas são inovadores na produção de Montgomery; e aqueles que mais parecem um filminho de “sessão da tarde”, ao modelo de várias histórias avulsas que acompanhamos ao longo da série “Anne”. De modo geral, o conjunto é bastante agradável, salvo duas histórias que me pareceram absurdamente desnecessárias. Tentarei fazer comentários sucintos sobre todos os contos a seguir.

A começar pelos contos de temas mais diversificados, e que me pareceram mais interessantes, temos “Alguns tolos e um santo” abrindo o conjunto e surpreendendo por se revelar um conto de terror. Curtis Burns é o novo ministro da congregação metodista de Mowbray Narrows, mas acaba chocando os membros de sua igreja ao anunciar que se hospedaria na residência de Alec Comprido, um lugar que todos acreditam ser mal-assombrado. O conto é interessante e tem seus momentos realmente assustadores, mas pareceu-me prolixo em diversas passagens, sendo a narrativa mais longa do livro.

“Retribuição” e “A reconciliação” são histórias parecidas. Em ambos temos personagens femininas decididas a acertar contas com o passado, mas, quando do momento culminante de suas performances, as situações terminam de forma inesperada. O efeito final é que não é o mesmo: há ironia no primeiro caso e, no outro, um delicioso senso de humor.

“A imaginação nos faz de tolo”, um dos contos mais peculiares da coletânea, traz um enredo que flerta com o fantástico. A jovem Esme está à beira do casamento, mas seu coração está cheio de dúvidas, graças a um insólito episódio do passado envolvendo a excêntrica tia Hester. “Um sonho se realiza” também tem seus toques fantasiosos ao relatar uma situação que sugere uma dúvida constante no leitor sobre ser ou não real.

“Cuidado, irmão” poderia se encaixar no grupo das histórias mais bobinhas do livro, mas parte de uma premissa tão inusitada, que destoaria das demais. Timothy acredita que seu irmão Amos estragaria sua vida ao contrair segundas núpcias com Alma Winkworth, mas, ao tentar impedir a aproximação do provável casal, acabará sendo vítima de seu próprio plano.

Se este livro possui um conto impecável e que pode ser considerado a joia do conjunto, este certamente é “Uma mulher comum”. A leitura desta narrativa por si só já justifica o interesse pelo volume como um todo. Em “Uma mulher comum”, Montgomery está no seu melhor. A história de Ursula Anderson surpreende por vários motivos: pela construção, pela ambientação, pela alternância nos pontos de vista, pela enredo revelador e, sobretudo, pelo desfecho inesperado. Um conto primoroso, sem dúvida!

Passando agora ao conjunto das histórias mais previsíveis e menos trabalhadas, temos aquelas situações clássicas dos contos infantis: a adoção de uma criança órfã, o pai que reaparece, crianças que ganham um novo lar, o garotinho rejeitado que é acolhido por um parente cuja existência ele desconhecia, etc. Esses são os temas de “Uma tarde com Mr. Jenkins”, “O faz de conta dos gêmeos”, “A criança que foi privada da vida” e “Uma pausa nas histórias de Anne Blythe”.

Não poderiam faltar também os romances açucarados, com direito a amantes que se reencontram depois de anos separados. São os casos de “A tola missão”, “A estrada para o ontem” e o péssimo “Aí vem a noiva”, que, ao lado de “Uma pausa nas histórias de Anne Blythe”, disputa o título de pior conto do volume.

A leitura destes contos foi para mim uma espécie de resumo de tudo o que representou a série “Anne”: uma empreitada cheia de altos e baixos, de bons e maus momentos. Mas a experiência, como um todo, foi sem dúvida muito válida, e ficará marcada em minha trajetória de leitor. É bastante satisfatório quando chegamos ao final de um longo percurso; mais ainda quando tivemos uma Anne Shirley nos acompanhando ao longo dele.

Avaliação: ★★★

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terça-feira, 23 de novembro de 2021

George, de Alex Gino - RESENHA #170

Um dos maiores privilégios da literatura contemporânea é o tratamento de temas que no passado eram totalmente silenciados. A transexualidade é de fato um assunto delicado até para os nossos dias, que dirá para os séculos passados. Ainda há muitas controvérsias no que se refere às pessoas “transgênero”, mas o crescente interesse sobre questões de identidade de gênero e orientação sexual tem aclarado muitos pontos obscuros e colaborado para uma melhor compreensão da população LGBT+.

Alex Gino, ficcionista estadunidense, apresenta-nos George (2015), cuja proposta é bastante ousada: uma narrativa sobre uma criança trans. A premissa do livro interessou-me instantaneamente. Desejava conferir de perto como tal história fora desenvolvida, antevendo as múltiplas e inevitáveis dificuldades de se tratar um assunto de alta complexidade com o público infantojuvenil.

Preciso confessar que fiquei deveras surpreendido com a habilidade com que Alex Gino desempenhou a escrita de George. O livro está um primor. O narrador em 3ª pessoa não se acanha em tratar George como o que é: uma menina. A simplicidade e a naturalidade com que ele encara a complexa condição de sua protagonista são reconfortantes, pois conferem ao texto uma leveza que se mantém do início ao fim.

No enredo, a pequena George, de aproximadamente dez anos, sonha poder interpretar a memorável aranha de A Teia de Charlotte, um clássico de E. B. White. No entanto, George depara-se com um empecilho: todos pensam que ela é um menino, pois seu corpo é biologicamente masculino. Quando ela se candidata ao papel, a conservadora senhora Udell enfatiza que George, a despeito de seu talento, só poderia fazer papéis “de meninos”.

A partir de situações cotidianas, Alex consegue transmitir ao leitor a insatisfação de George por não poder ser quem ela é de verdade. A garota, por exemplo, precisa esconder suas revistas adolescentes, pois eram voltadas para o público feminino. Além disso, mesmo sendo a melhor amiga de Kelly, ela é encarada como um “melhor amigo”, sendo privada portanto de demonstrar com franqueza sua verdadeira personalidade.

Alex, sempre com muita sutileza, ainda aborda questões como aceitação da família, bullying na escola e representatividade. Mesmo o processo de “transição” da personagem dá-se muito naturalmente. Mas não quero me aprofundar nesse assunto para não comprometer a experiência de leitura de ninguém.

Outro fator importante na obra é o esclarecimento que se faz da diferença entre o “homossexual” e o “transgênero”. Em determinado momento, George é encarada por alguns personagens como um “menino gay”, o que a deixa um tanto aborrecida, já que sua sexualidade ainda não aflorou. Nesse ponto, entendemos que o que a protagonista busca afirmar é sua “identidade de gênero”, cujo conceito ainda é bastante confundido com “orientação sexual”.

Por tudo que citei nesta resenha, George é sem dúvida um livro incrível, e que precisa ser mais difundido entre jovens e adultos. Acabei de saber que brevemente a obra será reeditada com um novo título, Melissa, atendendo a um desejo de Alex e de muitos leitores que ficaram inconformados com o destaque para o nome masculino. Eu, particularmente, prefiro o título original, pois, a meu ver, ele transmite melhor a temática do livro, que é justamente a insatisfação por ser “George”, como também a trajetória da personagem até finalmente tornar-se “Melissa”. Mas, com este ou aquele título, a verdade é que o livro de Alex Gino não deixa de ser o que é: simplesmente maravilhoso.

Avaliação: ★★★★★

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terça-feira, 16 de novembro de 2021

A Família Medeiros, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #169

D. Júlia segue me surpreendendo e me tornando cativo de sua literatura tão humana e vivaz. Cada livro seu tem uma coloração diferente que revela a versatilidade da autora de A Falência, tamanha é a destreza com que a autora passeia pelos estilos e modelos literários. Ao que parece, a escritora encarava cada uma de suas obras como um projeto único, livre de tendências previsíveis e esquemas reaproveitados.

A Família Medeiros (1891), conquanto não seja sua primeira publicação, foi o primeiro romance que ela escreveu, antes mesmo do já resenhado Memórias de Marta, o que explica o refinamento e a segurança artística que a prosadora já demonstrava nesta obra. Quanto à primeira composição romanesca, objeto desta resenha, embora fulgure ao lado de outros sucessos de D. Júlia, é perceptivelmente mais simplório em relação ao acabamento do texto. Ali nascia a romancista que, embora ainda não andasse firmemente como nas Memórias de Marta, afoitava-se em saltos e arrancos surpreendentes.

Escrito no limite entre o Romantismo e o Realismo, A Família Medeiros pode ser considerado um romance de transição. De fato, as duas escolas aparecem no livro como que irmanadas, sem que isto prejudique o resultado final. Estruturada em capítulos breves, a narrativa segue seu curso num ritmo poucas vezes modificado.

Como romance abolicionista, o efeito acabou sendo comprometido pela demora na publicação, que ocorreria anos depois da libertação dos escravos, prejuízo que se torna irrelevante em nossos dias. A par deste, muitos outros temas são tratados, confirmando a preocupação da autora para com os menos favorecidos, já constatada em leituras anteriores. Na mistura, claro, não poderia faltar uma história de amor para conferir leveza ao conjunto da obra.

A trama é basicamente sobre uma intriga familiar. O comendador Medeiros, após a morte de seu irmão Gabriel (com quem tinha desentendimentos), vê-se obrigado a aceitar em sua casa a sobrinha Eva. Diferente de suas primas, Eva é uma garota instruída e de ideias avançadas. Defensora da causa abolicionista, a sobrinha do comendador alimenta reservas no tio, que antipatiza sua postura crítica perante a administração em Santa Genoveva.

A chegada de Otávio, filho do comendador, que se formara engenheiro na Alemanha, torna tudo mais interessante. Não escapara ao moço as qualidades superiores da prima, como também a ojeriza do pai em relação a ela. Há contudo uma razão poderosa para que Medeiros seja tolerante com a sobrinha, já que Eva guarda consigo papéis que o comprometem seriamente. Caberá a Otávio elucidar o segredo daquele interessante conflito.

Aqui, mais uma vez, como nos demais romances já lidos, a matéria é vastíssima. D. Júlia lança sua ótica sobre os mais diversos temas; além da questão abolicionista, temos: a condição da mulher no final do século XIX, o casamento como transação mercantil, a má administração nas propriedades rurais, o trabalho assalariado (principalmente por imigrantes), a reclusão dos morféticos, dentre outros.

Encerro compartilhando a alegria que sinto por ver a obra de Júlia Lopes de Almeida finalmente recebendo a atenção que lhe é devida. O resgate de sua ficção tem sido notório nos últimos anos e muitos de seus livros finalmente retornaram às livrarias. A Família Medeiros acaba de ganhar uma edição de luxo no mercado e, pouco a pouco, o leitor contemporâneo vai se apropriando desse vasto tesouro que por tanto tempo esteve negligenciado.

Avaliação: ★★★★

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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Rilla de Ingleside (Rilla of Ingleside), de Lucy Maud Montgomery - RESENHA #168

Finalmente chegamos ao oitavo livro de “Anne”, o último da série publicado em vida da autora, atentando-se para o fato de que Anne de Windy Poplars (1936) e Anne de Ingleside (1939) situam-se (na cronologia do enredo) antes de Rilla de Ingleside (1921).

De todos, este oitavo livro é o que mais destoa do conjunto, certamente por trazer o tenso pano de fundo da Primeira Guerra Mundial. A obra é um registro interessante de como a guerra interferiu no ambiente familiar. A autora, felizmente, não se concentra em descrever episódios de guerra, embora ela o faça indiretamente, seja pelos diálogos entre os personagens ou pelos registros no diário de Rilla Blythe.

Rilla de Ingleside, contudo, não é, como eu supunha, um livro leve e ameno como os anteriores. Aqui o clima é quase sempre tenso e de uma atmosfera pesada. Embora a autora não deixe de reproduzir os episódios divertidos e cômicos do costume, eles não dão alívio suficiente à obra, que se mantém num ritmo mais carregado.

É interessante como a autora expõe a indiferença dos personagens para com o episódio que, na verdade, seria o estopim da Grande Guerra. De fato, ninguém poderia prever que um assassinato em Saravejo poria o mundo em fervo e, muito menos, que as consequências do motim chegariam à tranquila Ingleside.

Jem é o primeiro a deixar a família, seguindo o exemplo de outros canadenses que já haviam se alistado para o combate. Walter vai em seguida e, por último, Shirley. Além deles, Kenneth Ford, o filho de Leslie e Owen, e que se torna o namoradinho de Rilla, também se candidata para lutar. E não poderíamos esquecer de Jerry e Carl, os filhos do reverendo Meredith, que também partem para a Europa.

Rilla de Ingleside concentra-se principalmente em como os moradores de Glen St. Mary reagem à guerra, principalmente no que se refere à preocupação para com os filhos e maridos que partiram em nome da pátria. Rilla, a suposta protagonista, embora esteja sempre às vistas do leitor, não é o ponto central da obra. Seu romance com Kenneth Ford, por exemplo, tem um espaço mínimo no livro. Sua realização mais importante no enredo é a missão que assume de cuidar de Jims Anderson, um órfão da guerra.

O maior problema do livro, portanto, talvez seja a escolha do título, que acaba gerando uma quebra de expectativa no leitor. Rilla de Ingleside não é sobre Rilla. É sobre como os horrores de uma guerra afetam uma família. É agoniante ver que os personagens dormem e acordam afetados pela preocupação, que a leitura do jornal diário é ansiada e temida ao mesmo tempo, que um simples toque de telefone acelera o coração de todos.

Já comentei por aqui minha aversão a livros com temática de guerra. Certamente por isso não consegui gostar tanto assim da leitura de Rilla. Mas é inegável que o livro me emocionou em diversos momentos e até me diverti com uma e outra situação. Se, por um lado, era sofrido contemplar o cãozinho Segunda-Feira numa espera incansável/improvável por Jem; por outro, era divertido como a dupla personalidade do gatinho Doc perturbava a hilária Susan Baker, cuja participação neste oitavo livro merece ser destacada.

Desconsiderando os livros de extras, a série “Anne” se encerra um tanto melancólica com este Rilla de Ingleside. Eu realmente esperava um desfecho mais digno e menos lutuoso. Mas, na verdade, a série como um todo foi uma sequência de quebras de expectativa. E com isso não quero dizer que esteja arrependido da leitura. Embora Montgomery não tenha se tornado uma autora favorita, acompanhar a trajetória de Anne, desde Green Gables até Ingleside, foi uma das experiências mais marcantes que já tive enquanto leitor.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho 

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segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Vale do Arco-Íris (Rainbow Valley), de Lucy Maud Montgomery - RESENHA #167

O sétimo livro da série “Anne” tem uma proposta diferenciada de seus antecessores. A princípio imaginei que, tal como em Anne de Ingleside, os filhos de Anne e Gilbert seriam os protagonistas de Vale do Arco-Íris (1919), mas o romance se concentra em novos personagens: o reverendo John Meredith e seus quatro filhos.

Mr. Meredith, embora seja o melhor pregador que já passou por Glen St. Mary, é um homem distraído e, por consequência, um pai negligente. Com a morte de sua esposa, os quatro filhos (Jerry, Faith, Carl e Una) ficaram sob a supervisão de tia Martha, uma senhora já idosa e pouco hábil no tratamento com crianças.

Jerry, o mais velho dos filhos do pastor, é um menino corajoso e inteligente, representando o que Jem Blythe seria para a família de Ingleside. Faith é uma garota adorável e vivaz, cheia do entusiasmo que ressuma de sua personalidade forte. Carl é de temperamento mais reservado e está sempre observando pequenos animais, principalmente insetos. Finalmente, a pequena Una, de constituição mais frágil, é de uma doçura encantadora.

As crianças da casa pastoral, embora repletas de boas qualidades, acabam sendo vítimas da incompreensão por parte da maioria dos habitantes de Glen St. Mary. Por não terem uma educação assistida por um adulto competente, os filhos de Mr. Meredith, em sua inocência, cometem algumas faltas que são dignas de censura pelos mais religiosos.

É escusado dizer que as crianças Meredith e os Blythes acabarão fazendo amizade entre si, mas a primeira parte do romance dá mais ênfase a outra nova personagem: a intrigante Mary Vance. Trata-se de uma garota órfã que decide fugir da casa da mulher que a adotara, em razão dos maus-tratos sofridos nas mãos da megera.

Mary é encontrada num celeiro pelas crianças Meredith, que a acolhem e lhe dão de comer. O pastor, distraído com suas leituras, acaba ignorando a presença de uma estranha em sua casa, ainda que Mary tenha um comportamento ativo e pouco comum em meninas da sua idade. Afeiçoada ao trabalho, a pequena fugitiva movimenta a casa pastoral, sendo apenas impedida de atuar na cozinha, território exclusivo da enfadonha tia Martha.

Conforme vamos conhecendo Mary Vance, percebemos que, mesmo recebendo ajuda de várias pessoas, a menina preserva sentimentos ruins que ganham reflexo principalmente nos comentários desagradáveis e inconvenientes que costuma fazer. É sem dúvida uma das criações mais realistas de Montgomery.

E certamente que aqui, como nos volumes anteriores, não faltaria uma historieta de amor. Quando surge um súbito interesse do pastor viúvo pela já solteirona Rosemary West, reacende-se a esperança de que as crianças Meredith recuperem finalmente uma mãe dedicada e cuidadosa, mas uma antiga promessa feita em segredo entre Rosemary e sua irmã Ellen poderá ser um obstáculo incontornável.

Acredito que o que mais tenha prejudicado Vale do Arco-Íris tenha sido sua associação com a série “Anne”. A obra, enquanto livro independente, é bastante satisfatória, mas não se pode encará-la como parte integrante da saga de nossa ruivinha; está mais para o que, no mundo das séries, se entende por spin-off.

Excetuando o caso amoroso de Mr. Meredith (um personagem que chegou a  me irritar), Vale do Arco-Íris é um livro infantil cativante e envolvente. Era inevitável sentir empatia por aquelas crianças tão incompreendidas e cujas maiores faltas não passavam de pura infantilidade. Mas curioso mesmo é que eu tenha apreciado mais as aventuras dos Meredith do que as dos próprios Blythes em Anne de Ingleside.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Favos e Travos, de Rozendo Moniz Barreto - RESENHA #166

Rozendo Moniz Barreto (1845-1897) foi um escritor baiano. Era filho do poeta Moniz Barreto, considerado o maior repentista do Brasil imperial. Eles eram aparentados com Tobias Barreto, o poeta de Dias e Noites. Além de escritor, Rozendo exerceu diversas outras funções, principalmente a medicina e o magistério.

Segundo o jornalismo da época, Rozendo era de gênio belicoso (vale lembrar que ele serviu o exército durante a Guerra do Paraguai) e irritava-se facilmente perante o menor ato de indisciplina por parte de seus alunos, que o chamavam, na surdina, de “Horrendo Nariz”, ao invés de Rozendo Moniz; isto devido ao tamanho descomunal daquela parte do corpo no mestre.

Rozendo, no que tange à literatura, tal como seus familiares, era mais propenso à poesia, tendo obtido algum aplauso com seus livros de poemas. Era um grande apreciador de Victor Hugo, e em sua obra encontramos não poucas referências ao célebre autor d’Os Miseráveis. Mas lia os mais diversos autores e gêneros, como se deduz da leitura de Favos e Travos (1872), seu único romance.

A erudição e o conhecimento literário de Rozendo Moniz são inquestionáveis, mas não se pode afirmar que ele tinha talento para romancista. Além de partir de um enredo fraquíssimo, Favos e Travos contempla dezenas de páginas de intermináveis digressões. O curioso é que, apesar de ser o romance ruim, o livro não o é. Percebe-se talento e estilo na escrita de Rozendo, mas a prosa de ficção não foi um terreno fértil para ele.

O fraquíssimo enredo de que falei é o seguinte. Alfredo Gomes é um jovem bacharel de Direito que se julga isento das paixões românticas, mas isso muda quando conhece a inocente e adorável Virgínia, que não parece ser indiferente às atenções do moço.

Roque de Souza, o pai de Virgínia, é um velho mesquinho e pilantra que deseja um casamento rico para a filha, através do qual possa saldar suas dívidas. Julgando ser Alfredo integrante de uma família abastada, Roque de Souza consente no consórcio dos dois jovens, mas quando descobre ser o patrimônio daquela família insuficiente para contentar seus credores, decide dispensar o moço.

Devido às digressões já mencionadas, a narrativa segue num ritmo lento e pouco dinâmico. Há um personagem secundário que torna tudo menos pior. Trata-se de Ricardo Garcia, um filósofo solteirão bastante avesso ao casamento e às convenções sociais. De fato, sempre que Ricardo entra em cena, a narrativa ganha um colorido em razão das pilhérias e comentários ácidos do amigo de Alfredo.

Faltava imaginação a Rozendo Moniz para dar um desenvolvimento mais satisfatório a personagens interessantes como Ricardo Garcia, além dos peculiares senhor Pantaleão e sua esposa Dorotéia. O namoro de Virgínia e Alfredo pareceu-me insuficiente para garantir o interesse contínuo pela leitura.

Destaco, finalmente, o capítulo XII do romance, onde se denuncia a violência contra os escravos, além de se evidenciar a postura abolicionista do autor, como se percebe na seguinte passagem: “Felizmente não tardará muito o dia em que se extinga completamente, para descanso do século e por honra d’América, esse bárbaro e vil desconhecimento do mais sagrado direito perante a natureza e Deus.” (pág. 101).

Quando afirmei que Favos e Travos é ruim como romance, mas não enquanto livro, referia-me justamente às qualidades intelectuais de seu autor, que não compôs um trabalho desprezível. Se o livro falha pela sensaboria do enredo, ao menos ganha pela clareza e lucidez das ideias, que não se perdem em peripécias inverossímeis.

Avaliação: ★★

P.S.: Dentre outras obras publicadas pelo autor de Favos e Travos, destaca-se a biografia de seu pai, Moniz Barreto, o Repentista (1887), que recebeu elogios de Sílvio Romero.

 

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Anne de Ingleside (Anne of Ingleside), de Lucy Maud Montgomery - RESENHA #165

Não resta dúvida que os títulos que dão sequência a Anne de Green Gables não têm o mesmo espírito animador que dá vida ao primeiro livro. Anne de Avonlea talvez seja o que mais se aproxima daquele sucesso. Anne da Ilha, para mim, foi decepcionante. Anne de Windy Poplars e Anne e a Casa dos Sonhos são razoáveis. Mas o que dizer deste Anne de Ingleside? Mais do mesmo? Um livro desnecessário? Uma obra sem claros propósitos?

Anne de Ingleside (1939), embora seja o sexto livro da série, foi na verdade o último publicado em vida de Montgomery. A autora havia lançado inicialmente meia dúzia de livros sobre Anne e seus filhos (desconsiderando-se os dois volumes das Crônicas de Avonlea) entre 1908 e 1921. O sucesso da série, no entanto, fez com que a autora retornasse àquele universo adorável de Anne quinze anos depois. Daí surgiram mais dois livros: Anne de Windy Poplars e Anne de Ingleside.

Já me deparei com reclamações de vários leitores sobre Anne de Windy Poplars, justamente por ele não seguir a mesma linha dos três romances anteriores, já que, pela cronologia do enredo, Windy Polars é o quarto livro. O fato é que a maioria desses leitores ignora as circunstâncias de publicação da série. Contudo, a meu ver, Anne de Ingleside é muito mais problemático.

Trata-se de mais um romance episódico, que mais se assemelha a um livro de contos infantis. Não há, como nos livros anteriores, episódios de destaque que se desenvolvam ao longo dos capítulos. As histórias e os novos personagens soam repetitivos. Quem já leu os cinco livros anteriores deve lembrar de uma ou outra “velha chata que enche o saco”, como também dos dotes casamenteiros de Anne perante “jovens cujos pais obstam por sua felicidade conjugal”.

A “velha chata” da vez é Mary Maria, uma tia de Gilbert que decide passar algumas semanas com o sobrinho, mas que parece estar disposta a ficar a vida toda. A presença dela no livro é tão insuportável para os personagens quanto para o leitor. Mas o mais lamentável é que sua inserção no enredo não acrescenta em nada que seja relavante para o livro.

Como já disse, Anne de Ingleside se assemelha a um compilado de histórias para crianças. Aqui, como já era de se supor, essas histórias são protagonizadas pelos seis filhos de Anne. Porque sim, Anne teve seis filhos: Jem, Walter, as gêmeas Nan e Di, Shirley e Rilla. De todos, Shirley é o único que não ganha uma história própria, sendo citado poucas vezes, até menos do que Rilla, a caçula, que protagoniza apenas um dos contos do conjunto.

Os filhos de Anne protagonizam situações bastante embaraçosas e improváveis para qualquer criança comum, mas essas aventuras nem de longe se assemelham com as trapalhadas divertidas da pequena Anne Shirley. As histórias não são de todo ruins, mas quando se chega a essa altura da série, a expectativa acaba sendo outra. Ao menos foi o que me ocorreu.

Nos capítulos finais, quando talvez a própria autora já estivesse enfastiada de suas criançadas, o livro se concentra no casal principal, com direito a uma Anne bem ciumenta perante o reaparecimento de Christine Stuart. Lembram-se dela? Tudo bem, eu também não lembrava. Mas acreditem: era aí que o livro devia ter começado e, sendo possível, se mantido no mesmo nível até o fim. A última das histórias de Anne de Ingleside é maravilhosa; não só por ser muito boa, mas por felizmente ser a última.

Avaliação: ★★

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terça-feira, 20 de julho de 2021

O Matador de Cangaceiros, de Léo Prudêncio - RESENHA #164

Já tive o prazer de divulgar por aqui um pouco do trabalho do poeta Léo Prudêncio, compartilhando minhas impressões sobre dois de seus livros: Baladas para Violão de Cinco Cordas e Aquarelas. Em 2019, o poeta surpreende seus leitores ao publicar O Matador de Cangaceiros, sua primeira incursão pelo teatro.

Ambientado no sertão cearense do século passado, a peça é de uma simplicidade bastante simpática, transcorrendo num cenário único. O autor facilitou bastante o trabalho de representação pois, além de poucos objetos serem necessários à cena, igualmente poucos são os personagens que integram o drama.

Dividida em três atos, a peça é sobre um prefeito que, na tentativa de livrar-se de um ataque de cangaceiros, recorre à intervenção de Sócrates, um matador profissional que fora no passado um dos soldados que dissiparam Lampião e seu bando.

Após firmar um trato com o matador, o prefeito torna-se alvo do julgamento de várias pessoas, como sua esposa Luzirene, o padre Ezequiel e a beata Maria da Conceição. Acredita-se que Sócrates é um discípulo de Satã e que todos quanto recorrerem a ele terão parte com o maligno.

Mesmo sendo atacado pelo julgamento alheio, o prefeito mantém seu trato com Sócrates, que executa o bando que ameaçava o lugar. Mas, após esse episódio, uma série de problemas recai sobre a cidade, sendo inevitável que muitos atribuam tudo de ruim ao suposto pacto do prefeito com Sócrates.

A dinâmica da peça de Léo Prudêncio é muito interessante e me surpreendeu bastante pelo ritmo que o dramaturgo estabelece do início ao fim. As cenas transcorrem naturalmente e, embora tudo seja aparentemente simples, a dramaticidade alcançada, especialmente no último ato, mantém o expectador atento por todo o desenrolar da peça.

Mesmo sendo um drama ágil e divertido de acompanhar, muitas situações são questionáveis e carecem de explicação. Os meios por que Sócrates executa suas matanças, o mandato interminável do prefeito e a fantasiosa seca de uma década são alguns dos elementos que me pareceram exagerados ou muito artificiais. Quanto ao texto da peça, a reprodução da linguagem falada também carece de algumas adequações.

O primeiro trabalho teatral de Léo Prudêncio não perde o interesse do expectador em razão dos problemas acima apontados. Eu mesmo adoraria assistir uma representação d’O Matador de Cangaceiros, pois, enquanto lia, visualizava o efeito cênico muito facilmente. E era sim muito bom!

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 16 de julho de 2021

Anne e a Casa dos Sonhos (Anne's House of Dreams), de Lucy Maud Montgomery - RESENHA #163

Dando sequência à leitura da série “Anne”, finalmente chegamos ao quinto livro. Anne e a Casa dos Sonhos (1917) difere dos volumes anteriores por não ser um romance episódico. Nele não temos muitos personagens novos ou uma sequência de várias situações embaraçosas a serem resolvidas por nossa ruivinha. Aqui, o enredo se concentra basicamente em três núcleos.

O primeiro deles é encabeçado pela protagonista da série que, após uma longa espera de três anos, finalmente se casa com Gilbert Blythe. O feliz casal decide viver no porto de Four Winds, próximo ao vilarejo Glen St. Mary, pois o tio-avô de Gilbert, David Blythe, que era o médico do lugar, estava se aposentando. Anne e Gilbert alugam uma bela casinha pertencente à Igreja Presbiteriana. Essa “casa dos sonhos”, como Anne a chama, carrega o encanto de ter sua fundação envolta numa romântica história de amor.

O contador desta bela história vem a ser James Boyd, o capitão Jim, que pertence ao segundo núcleo do livro. Após uma trajetória agitada por grandes aventuras em alto mar, o capitão Jim passa a ter uma vida sossegada na companhia do Marujo, seu gato de estimação, ficando ainda responsável por controlar o farol do porto de Four Winds.

O velho marinheiro preserva um manuscrito que chama de “livro da vida”, onde guarda suas memórias, alimentando o desejo de um dia encontrar um escritor hábil que possa transformá-lo num livro de verdade. Além dos lances aventurescos de seu diário, o capitão Jim guarda para si a história de seu único amor, contada para Anne num dos capítulos mais belos do romance.

O terceiro núcleo concentra-se na interessante Leslie Moore. A beleza de Leslie chama a atenção de Anne desde o primeiro momento. A maneira arredia como ela se porta, no entanto, só será esclarecida por Cornelia Bryant, personagem secundária que permeia todos os núcleos. O marido de Leslie, Dick Moore, perdera as faculdades mentais durante uma viagem a Cuba. O homem forte e opressor do passado torna-se numa criança inquieta e desmemoriada, vivendo sob os cuidados de uma esposa que nunca pudera amá-lo.

Anne e a Casa dos Sonhos comprova-nos a competência de sua autora para o romance tradicional. Montgomery conduz os núcleos simultaneamente e com certa facilidade que chega a surpreender. Por outro lado, talvez em atenção ao público jovem que pretendia alcançar, algumas escolhas me pareceram um tanto forçadas, sendo a mais problemática delas a reviravolta final que ocorre no núcleo de Leslie.

Apesar de suas soluções rápidas e mirabolantes (especialmente nos capítulos finais), Anne e a Casa dos Sonhos entrega alguns dos episódios mais memoráveis de toda a série, como o casamento de Anne, o funesto passado de Leslie e a melancólica história da Margaret perdida. É um belo livro, sem dúvida.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho 

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quinta-feira, 1 de julho de 2021

Rico (Πλοῦτος), de Aristófanes - RESENHA #162

Acaba de chegar às minhas mãos a última das comédias completas de Aristófanes. Rico é uma tradução de Pluto (388 a.C.), feita pelo Kleber Rocha, que, nos meus saudosos anos de faculdade, foi meu professor de Língua Grega, a disciplina mais temida do curso de Letras que, para alegria dos acadêmicos que vieram depois, foi removida da nova grade curricular.

Apesar de não ser um grande entusiasta do teatro grego clássico, não posso evitar aquela potinha de curiosidade que nós, os apaixonados da Literatura, sentimos pelas grandes obras da antiguidade. O estudo e leitura atenta que esses textos exigem, no entanto, acabam fazendo com que passemos outras leituras mais amenas à frente daquelas.

A tradução de Pluto, entretanto, chegou num momento em que as circunstâncias foram favoráveis à sua leitura; e, ainda que não tenha morrido de amores pela comédia de Aristófanes, pude dar algumas gargalhadas em algumas de suas passagens, como também apreciar a crítica que o comediógrafo lança a certos tipos da Grécia antiga.

O enredo da peça é o seguinte. Crêmilo é um agricultor que começa a se questionar sobre a maneira como deve educar seu filho. Ele reflete que os homens honestos e justos são todos pobres, enquanto os corruptos e trapaceiros não deixam de enriquecer.

Apresentando essa questão ao deus Apolo, Crêmilo o interroga se devia criar seu filho segundo a leviandade do mundo, para torná-lo rico. A resposta do deus é que Crêmilo, à saída do Oráculo de Delfos, seguisse o primeiro homem que encontrasse e o convencesse a levá-lo à sua casa.

O eleito acaba sendo um mendigo cego, a quem Crêmilo acompanha seguido de Carião, seu escravo, que, após interrogar seu senhor, acaba tomando conhecimento da situação. Os dois descobrem que o cego era na verdade Rico (Pluto), o deus da riqueza, que fora castigado com a cegueira por Zeus, para que fosse impedido de beneficiar exclusivamente os homens justos.

Crêmilo propõe devolver a visão a Rico em troca de que este o enriqueça. O acordo é selado e, para alcançar seu objetivo, o agricultor encaminha o cego ao templo do deus Asclépio. Conhecendo as pretensões de Crêmilo, a Pobreza tenta intervir, começando a partir daí um dos diálogos mais interessantes da peça, onde se reflete os malefícios do dinheiro na vida do homem, como também a ideia de que a pobreza estimula ao trabalho e à produção da Arte.

Outro fator interessante da peça é a reação dos “ricos” perante o plano de Crêmilo. Uma série de tipos são apresentados ao público, como a velha que sustenta um amante jovem e o sacerdote que vivia das oferendas dos religiosos.

O desfecho da peça leva-nos a refletir uma triste realidade que não deixa de ser atual: o endeusamento do dinheiro. Neste mundo capitalista em que vivemos, de fato, não são poucas as pessoas que julgam-se umas às outras tendo em vista a riqueza material. Quando paramos para pensar que no século IV a.C. já era assim, entendemos que mudam-se os costumes, mas jamais os homens.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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