terça-feira, 26 de dezembro de 2017

TOP 10 - MELHORES LEITURAS DE 2017!!!



Encerradas as leituras do ano, vamos comentar, como de costume, os títulos mais marcantes que, diferente do que ocorreu ano passado, foram muitos. Ainda que tenha dado 5 estrelas a apenas 3 títulos (portanto, menos que em 2016), não foi nada fácil fazer essa seleção, pois muitos livros beiraram a avaliação máxima. Mais difícil ainda foi classificar as escolhas por ordem de preferência, mas não querendo romper com minhas tradições, abracei o desafio, e aí estão pois os bonitos, do último ao primeiro colocado. Todos tiveram uma resenha em vídeo, publicadas todas elas no canal Literatura & EU; deixarei os títulos hiperlinkados, para o caso de vocês terem perdido alguma ou, quem sabe, quererem rever.


# 10º lugar ALVES & CIA., de Eça de Queirós (4 estrelas)
2017 definitivamente foi um ano dedicado a Eça, mas, infelizmente, não me senti devidamente recompensado por essa dedicação. Dos quatro livros lidos, apenas este Alves & Cia. foi merecedor de 4 estrelas. Obra póstuma, trata-se de uma novela sobre infidelidade conjugal. Após flagrar a esposa nos braços de seu sócio Machado, Alves cisma em encontrar uma maneira eficiente de limpar sua honra ultrajada, mas as conveniências e interesses pessoais poderão intervir cabalmente em sua decisão.

# 9º lugar UMA MULHER, de Francesca Lenardon Pilosio (4 estrelas)
Tive uma das leituras mais fluidas do ano nesta minha primeira experiência com a literatura italiana. Franca Lenardon, como também era conhecida a autora de Uma Mulher, está hoje totalmente esquecida e pouco se sabe a seu respeito. Para mim, foi a descoberta do ano, merecendo o prêmio de autora revelação rs. A delicadeza que tem este romance de memórias faz o leitor simpatizar a romântica Luísa, uma mulher desprovida de ambições materiais, e que sofre da incapacidade de deixar de amar. Simples, poético e enternecedor.

# 8º lugar AMOR DE MÃE, de Paul Vialar (4 estrelas)
A excentricidade já é uma marca notável na literatura francesa, mas o tipo excêntrico deste Amor de Mãe é profundamente tocante, porque somos todos sensíveis ao afeto maternal. Daniela é a personificação da maternidade, sendo ela incapaz de partilhar outros sentimentos. Pelos filhos, sua razão de viver, será capaz de todos os sacrifícios. Os artifícios de construção e condução da narrativa usados pelo prolífico Paul Vialar tornam a leitura excepcional.

# 7º lugar A DAMA DAS CAMÉLIAS, de Alexandre Dumas, filho (4 estrelas)
Os amores do nobre Armand Duval com a célebre cortesã Marguerite Gautier inspiraram meu amado Alencar em Lucíola. O texto, não sei se pela tradução que li, me pareceu de uma modernidade impressionante, pois não compartilha do ritmo particular aos romances oitocentistas. O romance é de uma elegância soberba, seja pelo estilo, seja pela forma; pois é constantemente belo e gracioso, como que engajado em seduzir o leitor. O único senão que lhe impediu a nota máxima foi o pouco desvelo na feitura da transição redentora por que passa Marguerite; o que, a meu ver, foi melhor realizado no romance de Alencar.

# 6º lugar O MONGE, de Matthew Gregory Lewis (4 estrelas)
Diferente de tudo que já li na vida, nunca um romance me pareceu tão tenebroso ou revestido de uma atmosfera tão diabólica como O Monge. O próprio diabo constitui um personagem da trama, ainda que, à primeira vista, de forma implícita. Mas não foram seus mil e um demônios que conferiram à obra de Lewis uma avaliação excelente. Mas o pior é que o fator que o engrandece acaba sendo também o defeito que lhe ofusca o brilho. Estou me referindo à substância colossal do romance que, mesmo não sendo uma obra tão extensa, dá a impressão de ser muito maior, pela excessiva matéria utilizada pelo autor, que incluiu em sua obra vários mitos da cultura inglesa. Ainda que pecando pelos excessos, é uma obra magistral.

# 5º lugar O FEIJÃO E O SONHO, de Orígenes Lessa (4 estrelas)
Como não ser atingido por este livro que trata de uma questão que me é tão particular? Qual poeta nunca foi desdenhado? Qual escritor nunca teve de sacrificar o seu ideal em virtude das necessidades mundanas? Sou mais um dentre milhões e milhões de autores que sonham com o dia em que poderemos viver da literatura que produzimos. Enquanto não chega esse dia, continuemos nos sacrificando para que não falte feijão em nossa mesa.

# 4º lugar AVES DE ARRIBAÇÃO, de Antônio Sales (4 estrelas)
Aves de Arribação é uma das obras mais bem executadas da literatura cearense. E o que mais impressiona é que Antônio Sales não teve que apelar aos horrores da seca para atingir tão elevado sucesso. Romance subestimado, em grande parte por ser de um cearense, apresenta uma galeria relativamente pequena de personagens que povoam uma trama simples, mas devidamente analisados em suas complexidades sob a perícia de um narrador que, entre a moral e a razão, constrói um ritmo excitante. Alípio, Florzinha e Bilinha formam um triângulo amoroso que certamente não esquecerei logo.

# 3º lugar OTELO, de William Shakespeare (5 estrelas)
Nada do que eu disser sobre Shakespeare servirá para aumentar-lhe a fama, que já chegou ao ponto máximo que qualquer artista poderia chegar. Se Otelo não foi a melhor leitura do ano, é seguramente por não pertencer à forma literária que mais aprecio (e praticamente o restante da humanidade também): o romance. O que quero dizer é que, por mais entusiasta que seja do teatro, jamais o elevarei sobre o romance; como também não trocaria Otelo por incontáveis romances maus. A humanidade dos tipos de Shakespeare é assombrosa; e, a despeito de certos escrúpulos meus, não posso deixar de admitir que Iago é um dos personagens mais fantásticos que já foram criados.

# 2º lugar A LAGOA AZUL, de H. De Vere Stacpoole (5 estrelas)
Entre este e o primeiro colocado não há exatamente uma ordem de preferência. Os dois são, para mim, verdadeiras obras-primas que, não obstante serem completamente diferentes no que se refere a enredo, compartilham da mesma sensibilidade e pureza, tão magnificamente expressas por seus autores. O livro A Lagoa Azul acabou perdendo o interesse das pessoas em consequência da grande popularidade do filme de Randal Kleiser (The Blue Lagoon, 1980), o que é uma grande injustiça, sendo o romance de Stacpoole provido de qualidades que os efeitos audiovisuais não puderam transmitir. Acho o filme excelente, e por ele decidi conhecer o original; não é caso de dizer que este ou aquele seja melhor: ambos se complementam; e podem acreditar: a experiência com o livro acrescenta demais! A belíssima tradução de Mario Quintana talvez, penso eu, tenha melhorado o original que, por si só, já é exuberante.

# 1º lugar OS DOIS AMORES, de Joaquim Manuel de Macedo (5 estrelas)
O que esperava quando peguei Os Dois Amores para ler era uma leitura regular e agradável, tal como tinha sido com O Moço Loiro, lido no ano passado; mas, desde os primeiros capítulos, estava convencido de que se tratava de uma proposta diferente. Sempre fui muito sensível ao estilo de Macedo, mas o que ele me proporcionou com este livro eu jamais irei esquecer. E sabe por quê? Porque estava precisando. Como um sedento que encontra água, assim foi comigo. E se me perguntarem o que estava buscando que em Macedo encontrei copiosamente, eu direi: fé. Quando percebemos tanta maldade à nossa volta, tanta vileza, tanto egoísmo e tanto desamor, queremos desacreditar do ser humano. Daí, você lê O Mandarim, e Eça te confirma o quanto as pessoas são desprezíveis; em seguida, você lê Os Dois Amores, um livro esquecido e aparentemente ingênuo, e vê que nem tudo está perdido, que a luz e a esperança da humanidade estão em cada um nós. Precisamos pensar mais no quanto podemos ser melhores do que já somos. Não podemos perder a fé no homem. Não podemos desistir de nós mesmos.

Daniel Coutinho

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sábado, 23 de dezembro de 2017

Vicentina, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #55

Queria terminar o ano com um livro especial, por isso guardei Vicentina para este momento. Todos vocês sabem da minha estima por Macedo. É aquele autor que leio com um sorriso comprido, que me faz cócegas no cérebro, que me aquece o coração, enfim. A leitura de seus romances é, para mim, quase um exercício de purificação rs, como também um refúgio contra todo o pessimismo deste mundo moderno.

Vicentina (1853) concentra-se em dois núcleos principais. O primeiro gira em torno da personagem que dá título ao romance, uma criatura misteriosa, tida como louca, que vive reclusa nas ruínas de uma ermida, na companhia de uma velha e uma menina. O segundo constitui-se de uma intriga amorosa na qual estão envolvidos vários personagens, dentre eles o casal principal: Adriana e Américo.

Como já era de se esperar, sendo Macedo um repetidor de fórmulas (eis o defeito seu que mais me aborrece), não poderia faltar um personagem velho e bastante conhecedor de antigas histórias. Aqui, quem faz as vezes de contador de causos é Leocádio que, muito supersticioso, relata as ocorrências naturais e sobrenaturais que cercam a ermida abandonada. Mesmo aborrecendo essa repetição de fórmulas, é sempre com algum enlevo que acompanho esses causos do passado.

Mas sigamos com mais linearidade, para melhor compreensão dos leitores.

A narrativa abre com Américo dirigindo-se à fazenda do Rio Claro, nas proximidades do Rio de Janeiro, onde se inaugura um engenho de cana-de-açúcar. Esta fazenda é propriedade de Cristiano e Gabriela, sua esposa. O casal tem uma única filha, Adriana, uma jovem solteira, que é apaixonada por Américo, e por ele correspondida. Ambos, contudo, receiam expressar seus sentimentos, especialmente pela diferença social que os separa, sendo Américo um enjeitado que sempre viveu da caridade de uma velha que o adotou, até finalmente conseguir um emprego público, por intermédio do Dr. Benedito, seu protetor.

Não tinha como não associar Américo a Cândido, de Os Dois Amores, por serem órfãos e rodeados de protetores, e ainda por certos detalhes que prefiro omitir, para não precipitar revelações. Mas a verdade é que são tipos bem diferentes de caráter, sendo Cândido comedido e recatado, e Américo estouvado e extravagante.

Um dos ingredientes que mais me encanta na pena de Macedo é o seu humor, já perceptível no primeiro capítulo da obra. É inútil manter-se sério diante do caiporismo de Américo ao alugar um mouro lento e manhoso, que parece o estar distanciando da fazenda do Rio Claro. Sempre que Américo pergunta a alguém pela distância restante, o percurso se alonga em pelo menos meia légua rs.

Os sentimentos de Américo e Adriana, embora não claramente manifestados, não passam despercebidos a todos quanto os observam. A verdade é que Cristiano e Gabriela fazem muito gosto na relação dos jovens, que também é aprovada pelo Dr. Benedito que, como já disse, é o protetor de Américo. Contudo, dentre os circunstantes que vieram para a primeira moagem da fazenda, temos três personagens que obstarão a união do feliz casal: Fabiana (velha viúva), Frederico (moço estroina) e Leonor (sobrinha/vítima de Fabiana).

Confesso que custei entender os motivos que moviam estes personagens, especialmente dona Fabiana, a executarem as mais infames intrigas contra o casal principal. De começo, só ficamos sabendo que, na verdade, quem dona Fabiana pretendia atingir era o Dr. Benedito, pois há muitos anos o médico havia impedido seu casamento com Fernando, irmão de dona Gabriela. Fabiana deseja lograr os amores de Américo, pois o acredita um filho natural de Benedito, para quem seria um grande desgosto a não consumação do casamento com Adriana.

O caso é que as intrigas de Fabiana chegam a proporções que podem parecer inadmissíveis para suas justificativas, principalmente porque Adriana é quem acaba sendo vítima dos ataques da megera. Não podia conceber que a maldade de alguém pudesse ser tão medonha ao ponto de sacrificar terceiros, que de nada tivessem culpa. Mas até o final do romance, o leitor toma conhecimento de circunstâncias que o fazem compreender melhor o caráter de Fabiana. Quanto a Frederico, após dissipar a fortuna herdada de seu finado pai, pretende um casamento vantajoso para amparar-se financeiramente; Adriana não passa de uma feliz alternativa para seu intento. Leonor, finalmente, é um mero fantoche nas mãos de sua perversa tia.

Macedo acaba dando mais ênfase ao núcleo de Adriana, quando eu, de minha parte, estava muito mais curioso por Vicentina. Essa excêntrica personagem que, a meu ver, constituiu a novidade deste romance, não foi devidamente aproveitada, o que me pareceu um sério problema do livro, que estampa seu nome na capa. Foi o que mais me desagradou em Vicentina: a falta de Vicentina.

Dessa interessante personagem, devo ser muito cauteloso quanto ao que devo dizer. Não se trata exatamente de uma louca, como muitos pensam, simplesmente por ouvi-la cantar à beira de um abismo. Vicentina é uma desgraçada que decidiu afastar-se do mundo após ter sido vítima de uma fatalidade. Desconfiada de todos, mantém-se constantemente reclusa com uma velha que, sempre de luto, vive chorando pelos cantos; e uma menina que, a despeito de estar rodeada por tipos tão melancólicos, vive rindo-se o tempo todo. Uma única pessoa é admitida no lar das ermitoas; trata-se do Dr. Benedito que, em segredo, visita-as com regularidade.

Esqueci-me de dizer que, durante o trajeto até a fazenda do Rio Claro, Américo trava conhecimento com Camilo, filho de um fazendeiro vizinho, o senhor Mariano. É Camilo apaixonado por Vicentina, a quem observa de longe em seus momentos meditativos, quando se põe a cantar as mais tristes melodias à beira do fatal abismo chamado de “boca do inferno”, designação esta devidamente explicada pelo fantasioso senhor Leocádio, que supunha criaturas malignas às três mulheres da ermida.

Vicentina pareceu-me evidentemente uma boa leitura de entretenimento. As fórmulas de Macedo são aqui, todas elas, aplicadas em função de entreter o leitor: com muitos diálogos, mistérios do passado, transcrição de melodias, intrigas de família, etc. A certa altura do romance, porém, percebi certa densidade que lembrou-me as deliciosas digressões de Os Dois Amores. Macedo, com suas intenções moralistas e sua fé cristã, tenta explicar a razão dos padecimentos de seus personagens. Adriana, por exemplo, acaba sendo vítima de uma terrível armadilha de dona Fabiana, mas por imprudência sua mesmo. É como se o autor quisesse alertar as fieis leitoras de seu tempo. Ainda que advertida pela própria Vicentina para que tivesse cuidado, Adriana acaba agindo com ingênua credulidade, o que a coloca numa difícil situação.

Macedo ainda alerta para a necessidade de haver confiança total entre mãe e filha. “Oh! quantas desgraças teriam havido de menos no mundo se as mães soubessem fazer-se as confidentes fieis e dedicadas de suas filhas!” (vol. 2, pág. 104). Esta referida passagem lembrou-me bastante um romance francês que li há alguns anos: O Pecado das Mães, de Henri Ardel. Como se não bastasse justificar o sofrimento de Adriana, ele ainda dá o exemplo de qual atitude seria a mais sensata nas mesmas circunstâncias apontadas, não só por parte da filha, mas de seus pais também. Macedo é o filósofo da boa família rs.

Vicentina é pois um excelente entretenimento para quem curte literatura romântica, sendo dotado dos usuais artifícios que tanto popularizaram o estilo de seu autor. Acredito que tenha assinalado com clareza o que vi de bom e ruim na obra. Causará certamente um efeito mais positivo em quem não conhece ainda o estilo de Macedo; nem por isso, será desagradável para quem, como eu, é apreciador incurável da pureza que exala da pena deste tão amado pintor da cena doméstica.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 2 de dezembro de 2017

Cante Lá que Eu Canto Cá, de Patativa do Assaré - RESENHA #54

Cante Lá que Eu Canto Cá (1978) é a rapsódia da vida sertaneja. Não se trata de um livro composto para ser o que é, mas de uma conquista — literalmente falando — de seu próprio autor.

Quando o Centro de Documentação, Estudos e Pesquisas (CENDEP), responsável pela divulgação do trabalho de artistas populares da Região dos Cariris, idealizou a publicação de uma obra que sintetizasse a poesia popular nordestina, o nome de Patativa já era bastante cultuado. A ideia, a princípio, era reunir toda a obra do poeta de Assaré, mas logo percebeu-se a dificuldade do projeto, diante de alguém tão despretensioso no que diz respeito à publicação de sua lavra literária. “Nunca quis fazer profissão de minha musa”, dizia ele. Com apenas um livro publicado àquela altura e mais uma porção de folhetos avulsos dispersos aleatoriamente, a fonte mais segura de toda sua obra não era outra senão o próprio Patativa, que a sabia inteiramente de cor. Decidiu-se, pois, reunir a parte mais significativa da produção patativana, cabendo ao próprio autor selecionar e ordenar os poemas. Assim nasceu Cante Lá que Eu Canto Cá, o livro de todos os sertanejos.

Eis uma obra que é um verdadeiro portento da literatura nordestina. São mais de cem poemas compilados num livro que é uma amostra cabal do talento de Patativa. São inúmeros estilos e temáticas adotados pelo autor, que escreve desde glosas em linguagem matuta a sonetos rigorosamente metrificados. Mas o que prevalece mesmo no livro é essa preferência pelo registro oral da fala do caboclo nordestino, tornando-o ainda mais característico em seu propósito: cantar o sertão e o sertanejo. Mas o que Patativa não dispensa mesmo é a “rima”, a alma do poema, segundo ele, que chega a criticar o “verso branco” logo no poema de abertura “Aos poetas clássicos”.

Há tanta matéria no livro, que uma simples resenha não é capaz de abarcar a substância de Cante Lá que Eu Canto Cá. Mas passemos aos poemas narrativos, pelos quais tenho uma quedinha, e que constituem relevante espaço no conjunto da obra.

O humor é um elemento bastante significativo em poemas como “Maria Têtê”, que trata da infidelidade de uma mulher, na melhor veia cômica do autor. Têtê, mulher de Joge Sutinga, é uma bela caboclinha que inusitadamente começa a aparecer em casa com vários objetos achados; mas depois de dar a luz a um lindo loirinho de olhos azuis, fica evidenciada a real procedência desses objetos rs. “Tudinha” também tem certo chiste no relato de um homem, cuja amada o trocou por um palhaço. “O sonho de Mané Filiciano”, por sua vez, conta as desventuras de um homem que, após sonhar com o diabo, vê sua sorte despencar. “Pesão” também é um dos mais divertidos, provavelmente inspirado na figura real de um estudante baiano chamado Sacramento, dono de um pé de tamanho descomunal. Eis uma pequena amostra da leveza do humor de Patativa: “Para não andar descalço/E no pé botar um calço/Precisa fazer contratos:/Alguém me disse que foi/Um grande couro de boi/Para o seu par de sapatos.” (pág. 260).

Mas não pensem que o humor predomina neste livro! Infelizmente, Patativa privilegia temas tristes e sérios. Certamente foi isso o que mais me desagradou nessa leitura. Quem leu minha resenha de seus Cordéis, deve lembrar do que falei a respeito da imagem do “nordestino sofrido”, que aqui é muito mais evidente. Patativa parece ser um porta-voz do homem do campo que sofre; muitos de seus poemas são “ais” desesperados e apelativos; mas não podemos esquecer que estamos falando de alguém que esteve a vida inteira muito próximo da classe mais miserável de nossa região. Felizmente, como a querer equilibrar o bom tom de sua obra, movido por uma espécie de orgulho sertanejo, ele enaltece a vida no sertão e seus costumes, desprezando os recursos modernos da civilização em poemas como “Ingém de ferro” e expressando a mais sincera saudade de seu torrão em praticamente todos os poemas escritos no Rio de Janeiro, onde esteve em decorrência de uma enfermidade no pé.

Dessa parcela de poemas sofridos, contudo, destaco alguns que são realmente excelentes. “A morte de Nanã” é um dos mais tristes, constituindo-se no relato de um pai sobre a morte de sua filha na seca de 32. O clássico “A triste partida” dispensa comentários, por ser a composição mais célebre do autor e, provavelmente, o texto literário mais importante que já se escreveu sobre a questão do êxodo rural. “Mãe preta” é um dos meus favoritos, talvez por ser impregnado de uma atmosfera que transmite a nostalgia do eu-lírico; lê-lo vale por um aconchego numa noite chuvosa. “Flores murchas”, finalmente, é soneto digno da poesia moderna, à qual Patativa, mesmo sendo averso, acabou experimentando talvez involuntariamente.

A força da poesia de Patativa do Assaré está de fato na sua oralidade. Em muitos poemas, o autor sugere um interlocutor, geralmente algum “sinhô dotô”, a quem será confiado um causo, um desabafo, um lamento ou até um protesto. A referência a um interlocutor confere ao poema aquele tom de “conversa” ou “dedo de prosa”, tornando-o ainda mais próximo do leitor, que faz papel de quem está com os ouvidos atentos àquela descontraída prosa gostosa de interior.

Ler Cante Lá que Eu Canto Cá foi uma experiência maravilhosa, ainda que um tanto cansativa pela extensão da obra que, como já disse, privilegia os aspectos mais sofridos da Região Nordeste. Mas, afinal, passei a admirar ainda mais Patativa que tanto amou a poesia e o sertão, que não soube viver sem ambos.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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domingo, 12 de novembro de 2017

Luz e Sombra, de Maria José Dupré - RESENHA #53

Esperava fazer as pazes com Maria José Dupré este ano, pois em 2016 fiquei bastante decepcionado com O Romance de Teresa Bernard. Conforme prometido, Luz e Sombra (1944) foi o livro da vez e, se não fiz inteiramente as pazes com a autora de Éramos Seis, ao menos já nos cumprimentamos de cabeça erguida rs.

Longe de ser um livro ruim, Luz e Sombra é aquele bolo que passou do ponto; o gosto pode até não ser muito bom, mas a gente continua comendo mesmo assim rs. Trata-se de um romance de costumes, cujo problema maior são os excessos. A autora parece ficar tão empolgada com a descrição dos costumes, que se esquece de que o leitor pode não estar tão interessado nisso. Sabe aquela tia que começa a contar uma história e faz um arrodeio estonteante até chegar onde quer? Eis o que Maria José Dupré faz em Luz e Sombra, com a diferença que o “arrodeio” é aqui a própria mensagem.

Tenho percebido também a preferência da autora pela narrativa em 1ª pessoa. Os quatro romances que li dela são narrados por mulheres, o que confirma ainda mais sua postura feminista, tão perceptível em toda sua obra (pelo menos nos que li). Em Luz e Sombra, a narradora é mana Rosa, moça velha pertencente a uma rica família paulistana do século XIX. A narrativa contada ocorre entre 1869 e 1891. São 22 anos de acontecimentos cotidianos, corriqueiros e triviais dessa numerosa família de quatorze irmãos. Eis outra dificuldade que o romance pode apresentar em suas primeiras páginas: identificar as dezenas de personagens que nos são apresentados, pois, como se não bastassem os treze irmãos de mana Rosa, temos os pais, os tios, os primos, os amigos e, claro, os inimigos. Como esses mil tipos vão/voltam no romance com mais/menos espaço, aleatoriamente, tudo fica meio confuso. Portanto, se você pretende ler Luz e Sombra, vou te dar uma mãozinha e organizar toda essa turbamulta rs:

Os pais de mana Rosa são o barão e a baronesa de S. Marcos, que tiveram, como já dito, quatorze filhos (7 homens e 7 mulheres), sendo apenas quatro deles casados no começo da narrativa. Os homens são: Félix (casado com Eponina), Augusto (casado com Aninhas), Luís, Inácio (gêmeo de Leontina, reside na Itália, onde estuda pintura) Vicente, Lourenço e o pequeno Bonifacinho. As mulheres são: Leopoldina (casada com Alberto), Leontina (gêmea de Inácio, reside no Rio de Janeiro, casada com o primo Paiva), mana Rosa, Maria Letícia, Francisca Miquelina e as adolescentes Adelaide e Cristina. Mora ainda com a família o solteirão tio Antônio (irmão da baronesa). Ufa!

Passando para a estrutura, temos uma narrativa bem fragmentada e aleatória no percurso desses vinte e dois anos. Embora narrado por mana Rosa, podemos dizer que a protagonista do romance é Maria Letícia, pelo fato de que ela protagoniza a grande maioria dos episódios relatados por sua irmã solteirona. É até meio complicado passar à trama, porque simplesmente não há trama. Portanto, para você que espera ler um livro com vários acontecimentos encadeados numa trama, Luz e Sombra não será uma boa opção. Trata-se de um dos romances mais despretensiosos que já li, tanto que, depois de finalizar um terço do volume, ainda não conseguia lobrigar o propósito da autora.

Sentia-me incomodado com a postura da narradora. É uma figura completamente resignada e que não tem vida própria. Mana Rosa, nas trezentas páginas de Luz e Sombra, fala pouquíssimo de si. Até ouso dizer que a única ocasião em que ela chega a falar tão somente de si mesma é no primeiro capítulo, quando diz: “Nunca fui alguém na minha numerosa família; por uma farsa cruel do destino, compreendi que era inferior às minhas irmãs; elas eram belas, claras ou morenas, inteligentes e elegantes; eu fui sempre feia e triste. Tinha saúde fraca e por isso, aos vinte e dois anos, chamavam-me solteirona e homem algum me escolheu para esposa.” (pág. 8).

Após esse interessante desabafo, ela desaparece de tal forma, ao ponto de quase se assemelhar a um narrador em 3ª pessoa. E aqui, faço um rápido parêntese para comentar que, em certos momentos, a própria autora também parecia esquecer-se de que estava narrando em 1ª pessoa, pois mana Rosa é capaz de dar detalhes que vão além de uma observação comum, beirando ser uma narradora onisciente e não simplesmente um caráter intuitivo. Como nada de interessante acontece em sua própria vida, o jeito é ser coadjuvante na vida de suas irmãs, especialmente a bela Maria Letícia, cuja personalidade forte, marcada por sua coragem e ousadia, é destaque na família. É como se Maria Letícia fosse a “luz” e mana Rosa a “sombra” rs.

A propósito do título, e agora falando sério rs, a autora o relaciona com a narrativa principalmente sob dois aspectos. A princípio, associamos a “luz” à fase feliz da família de mana Rosa, cuja felicidade é, tempos depois, embaciada por penosas agruras, numa fase de “sombras”: “Nunca pude esquecer esse dia; essa festa foi o marco que separou a vida de nossa gente; foi como um limite. Começou uma época de tristeza e esse dia foi o último de risos e festas. Foi a sombra interceptando a luz.” (pág. 130). Mas, claro, não poderíamos esquecer que as ideias de “luz” e “sombra” relacionam-se mais efetivamente com um dos temas centrais do livro: a escravidão. Esta, enquanto “sombra”, seria brevemente extinta pela “luz”, que seria a lei da abolição de 1888.

Como disse, o livro é todo de trivialidades e episódios cotidianos. Mana Rosa começa por contar do noivado de Maria Letícia com Fernão, o que provoca ciúmes em Francisca Miquelina, que também estava interessada no moço. Como nos capítulos iniciais nossa narradora não é tão invisível, ficamos sabendo que ela também tivera interesse pelo noivo da irmã, mas nada muito consistente (como o sentimento de Francisca Miquelina), uma vez que mana Rosa encara Fernão como uma inocente fantasia secreta. Ela apenas permite-se imaginar como seria se estivesse no lugar da irmã: “Durante todo o tempo, observei-o; quando falava, quando ria, quando tomava vinho. Era capaz de amá-lo até a morte, mas sou feia, tola e tímida. Não posso ser amada. ‘Meu Deus! Estou outra vez pensando no noivo de minha irmã; dai-me um bom sono e afastai-me da tentação.’” (pág. 23).

Maria Letícia e o noivo, após o casamento, vão morar na fazenda Santarém, de propriedade do próprio Fernão. Tudo são felicidades até o dia em que Maria Letícia percebe o interesse de D. Deolinda, sua vizinha, por seu marido. Embora Fernão não corresponda às insinuações da vizinha (que é casada com um velho comendador), Maria Letícia põe Modesta, sua escrava de confiança, de vigia. Esta presencia uma cena hilária: D. Deolinda, num dia em que acentuara suas provocações, acaba sendo rejeitada por Fernão, que se mantém fiel à esposa. Revoltada, ela aguarda uma boa oportunidade para se vingar, o que não vem a tardar.

Após flagrar a escrava Inocência cuspindo nos barris de água de Santarém, Maria Letícia ordena ao feitor da fazenda que a castigue severamente. O castigo acaba saindo mais severo do que o esperado e Inocência, que já vivia doente, não resiste e morre. Esta circunstância deixa Maria Letícia perplexa, de tal maneira que ela enche-se de um grande sentimento de culpa. Mas o pior viria depois: uma denúncia “anônima” a acusa de ter ordenado que açoitassem Inocência até a morte e um processo é logo aberto contra ela. Fernão, num gesto de nobreza, assume a responsabilidade pelo caso, indo a julgamento em lugar da esposa.

Muitos outros episódios familiares são narrados por mana Rosa: a infelicidade de Francisca Miquelina que, casando-se com um primo bem mais velho (por imposição do pai), precisa aturar a escrava que o marido tem por amante; a expulsão de Lourenço após decidir casar-se com uma moça de família humilde; a orfandade de Carola, uma prima corcunda que passa a viver sob os cuidados da tia, a mãe de mana Rosa; o casamento secreto de Inácio com Carmela, uma italiana; e muitíssimas coisas mais, que não falta pano pra manga rsrsrs.

Um fator que impulsiona bastante o andamento da narrativa é o diálogo, aqui um tanto exagerado, a meu ver. Mais da metade do livro certamente é toda de conversas entre os personagens, muitas delas maçantes e desnecessárias. Mas o que mais me irritava mesmo eram as discussões políticas, tanto sobre os conflitos na Europa, como a questão da abolição no Brasil e o grande embate entre monarquistas e republicanos. E temos exemplos de conversas desse gênero por todo o livro! Claro que também não poderia deixar de citar as maledicências da baronesa de Sobral, uma velha novidadeira que costumava visitar os pais de mana Rosa, a fim de colher notícias, para depois comentar com dona Escolástica, sua comparsa rs. Há uma passagem em que Leopoldina a imita, especialmente na maneira de dançar; quase morro de rir kkk.

Aproveito pois para destacar o humor da autora que, sem dúvidas, é o elemento mais motivador do romance, em virtude da ausência de trama. São inúmeras as passagens chistosas que levam ao riso. Por outro lado, muitos assuntos sérios também são tratados: a condição da mulher no século XIX, o preconceito de classes e os maus tratos sofridos pelos escravos. A Luz e Sombra, já deu pra perceber, não falta substância; há matéria mesmo sobrando, eu diria. A meu ver, muita coisa poderia ter sido suprimida, pois os excessos da obra acabaram por saturá-la e empanaram seu brilho. Em nenhum momento o livro chega a ser ruim, principalmente depois que você percebe que o propósito da obra é fazer um registro dos costumes daquela época, relegando a ação a um segundo plano. Não é o enredo que tem força neste livro, mas a descrição minuciosa das circunstâncias. O que faltou foi uma execução menos deliberada e mais contida; uma moderação que enxugasse as sobras e deixasse o texto mais limpo. Graciliano teria puxado as orelhas à Dupré rs.

A experiência que tive com Luz e Sombra, independente de não ter sido exatamente o que esperava, foi marcante no sentido de que me deixei levar pelo entusiasmo da autora; abracei mesmo sua proposta, acompanhando os episódios domésticos, dessem no que dessem. Seguramente, o que mais me agradou foi essa convicção de que lia páginas de alguém a quem não interessava ser famosa, escrever uma obra-prima ou ingressar no cânon literário; antes, queria contar histórias do seu jeito, à sua maneira. Parece que conseguiu rs.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano - RESENHA #52 (contém spoilers)

Minha primeira experiência com a obra de Alexandre Herculano não foi muito agradável, o que me deixou um tanto contrariado, apreciador que sou da literatura romântica. Eurico, o Presbítero (1844) é de uma composição que me pareceu bastante ultrapassada, ainda que fosse obra do século XVIII. Seria perfeitamente um desses romances de cavalaria que levaram o Cavaleiro da Triste Figura à insanidade. Mas penso ter saído ileso da experiência rs.

Romance histórico, como todos os demais romances de Herculano, Eurico registra a decadência do império gótico e sua invasão pelos árabes, no século VIII. Nesse contexto, o gardingo Eurico é rejeitado por Favila, duque de Cantábria, como pretendente à mão de Hermengarda, sua filha. Mesmo Eurico não sendo um pobre-diabo, sua posição social não é a ambicionada por Favila para sua bela filha. Mas o que deixa o jovem mais magoado em seu orgulho é a falta de resistência de sua amada, tão prontamente obediente a seu pai.

Ferido em seus sentimentos, Eurico dedica-se à vida religiosa, a fim de esquecer sua bela ingrata. Optando pela carreira monástica, torna-se o presbítero de Carteia, merecendo respeito e admiração por sua conduta espiritual. Uma atitude sua, porém, intriga os fieis: suas vigílias noturnas e solitárias pelas montanhas. Com os pensamentos inflamados pelo sentimento ainda vivo por Hermengarda, Eurico escreve, horas a fio, cânticos e elegias para ela. Após descobrirem suas razões poéticas, as pessoas passam a considerá-lo um inspirado por Deus. Os cânticos de Eurico passam a integrar o repertório das catedrais de toda a Península Ibérica.

Devo pois assinalar que as passagens mais agradáveis do Eurico, para mim, são as dos registros de seus manuscritos, ainda que eles também sejam objeto de análise da corrupção do povo godo. Neles também consta a visão de Eurico que, em sonhos, previu que sua pátria pereceria ao ataque dos povos da África. Impressionado com a visão, o presbítero participa o iminente perigo, por cartas, a seu nobre e velho companheiro de armas, Teodomiro, o duque de Córduba, prevenindo-lhe ainda da traição de Juliano, o conde de Septum, e Opas, o bispo de Híspalis. O caso é que muitos godos, inconformados com a situação política da península, decidem aliar-se aos muçulmanos.

Essa guerra aparentemente desigual entre godos e árabes é o objeto principal do romance, ocupando considerável parte da obra. Em meio à desesperança de muitos cristãos, contudo, surge uma esperança luminosa na forma de um cavaleiro negro de identidade ignorada. Guerreiro exímio, o desconhecido cavaleiro tem preferência pelos inimigos mais poderosos, a quem extermina com uma fúria sobrenatural.

Nessas circunstâncias, morre Favila, deixando seu título de duque de Cantábria para seu corajoso filho Pelágio, irmão de Hermengarda. Esta é mandada para o Mosteiro da Virgem Dolorosa, onde deveria ficar protegida, em virtude das ocupações militares de seu irmão; mas o lugar é assaltado pelos árabes que têm intenções bastante lascivas para com as monjas. Para escapar deles, as religiosas decidem submeter-se ao “martírio”; em outras palavras, uma sessão de suicídio coletivo. Antes, porém, que Hermengarda fosse sacrificada, é resgatada por Abdulaziz, um amir do árabes, que pretende torná-la sua esposa.

Em Covadonga, caverna onde estão refugiados Pelágio e outros guerreiros godos, chega a notícia do sequestro de Hermengarda. Preocupado com o que possa acontecer a sua irmã, Pelágio reúne seus homens para partirem em busca dela. Sua atitude é barrada por Eurico, que se revela como o cavaleiro negro, apresentando como prova uma carta de Teodomiro que, àquela altura, já era aliado dos árabes. Eurico não quer pôr em risco o que resta de um exército precário; por isso, assume a empresa do resgate de Hermengarda, não revelando seu interesse particular na causa, admitindo como companheiros apenas guerreiros sem família.

O resgate é efetuado com sucesso. A salvo em Covadonga, Hermengarda, ainda bastante impressionada com os últimos sucessos, pensa alto sobre um terrível remorso que carrega consigo: sua ingratidão para com Eurico, a quem julga morto. A donzela admite tê-lo rejeitado por obediência ao pai. E bem perto dela, sem que saiba, quem está? O próprio Eurico, que agora não pode amar Hermengarda em razão de seus votos sacerdotais que incluem o celibato. Contrariado mais uma vez em seu amor, Eurico decide concluir seus dias, fiel a três ideais: sua pátria, sua fé e seu amor. O presbítero prepara uma armadilha para os grandes traidores do seu povo: Juliano, o conde de Septum, e Opas, o bispo de Híspales: as duas últimas vítimas de seu franquisque. Finalmente, entrega-se sem resistência à cólera de Muguite, amir da cavalaria árabe, que parte-lhe o crânio com uma espada. No dia seguinte, Pelágio desperta com o canto de sua irmã, que entoava um dos cânticos compostos pelo inspirado presbítero de Carteia; após cantar, ela emite um riso insano, pois estava mesmo enlouquecida.

Esse final tremendamente épico confirma a posição do autor quanto ao celibato clerical, manifestada já no prólogo do livro. Herculano fundamenta sua tese com bastante propriedade ao criar um desenlace tão trágico para seus personagens. Nesse quesito, não poderia contestar seu êxito. O que contesto são suas propriedades romanescas e seu poder de fabulação, bastante limitados por seu tino histórico. De fato, o historiador prejudicou bastante o romancista. Pelo menos em Eurico foi assim: a ficção estava sempre em segundo plano, à margem da explicação histórica, de maneira que o leitor não consegue ter um retrato mais sólido de personagens fundamentais como a própria Hermengarda, cuja participação na narrativa é bastante ínfima. Os episódios são enfim narrados muito objetivamente, constantemente esclarecidos pelo autor com descrições minuciosíssimas e notas de rodapé.

A leitura do Eurico foi, portanto, arrastada e aborrecida. É o tipo de livro que vale mais pelo conhecimento da tendência medievalista na escola romântica. Sua composição já era ultrapassada mesmo para sua época, o que renderia a Herculano, anos depois, críticas ferinas da parte de autores como Eça de Queirós. No mesmo ano em que Eurico apareceu em Portugal, Macedo publicava A Moreninha no Brasil, o que demonstra que o Romantismo no Brasil estava bem mais interessante àquela época. Ainda que sejam obras com propostas completamente diferentes, devemos lembrar ainda que, em pouco tempo, teríamos o nosso Alencar com seus romances históricos. O Guarani e As Minas de Prata dão o grande exemplo de que é possível trabalhar um contexto histórico sem ofuscar o brilho e a graça de um romance legítimo, uma obra de arte.

Vale lembrar que Eurico, o Presbítero é o primeiro livro de um projeto literário a que seu autor deu o nome de O Monasticon, constituído, além da obra já citada, pelo romance O Monge de Cister, minha próxima leitura do Herculano. Mas isso não deve ser breve rs!

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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