quinta-feira, 4 de maio de 2017

Os Dois Amores, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #48


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Como veem, não esperei mais dez anos para ler um novo romance do doutor Macedinho. A obra escolhida, Os Dois Amores (1848), causou-me impressão tão deliciosa, que chega a ser difícil falar da experiência. Quando li O Moço Loiro ano passado (naquele feliz reencontro rs), reconheci aquele Macedo que deleitou-me na adolescência; foi como rever um amigo distante que, não obstante o correr dos anos, pouco ou nada mudou. Agora, porém, o caso foi outro. Macedo me pegou de jeito com esse livro maravilhoso que está injustamente tão esquecido. Um romance deliciosamente profundo e tocante!

O propósito do livro é discutir a desigualdade social na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Logo no início da narrativa, o leitor é apresentado a duas moradias vizinhas: “O Céu cor-de-rosa” e o “Purgatório-trigueiro”. Percebam o humor ácido na escolha dos nomes. A primeira é habitada por uma Bela Órfã; a outra, por uma Velha Bruxa. O contraste entre riqueza e pobreza é lançado pois aos olhos do leitor.

Celina é a Bela Órfã de dezesseis anos que, após a morte dos pais, vive sob os cuidados de seu avô Anacleto e Mariana, sua tia viúva. Os três habitantes do “Céu cor-de-rosa” vivem com abastança e divertimentos. O pai de Celina, Paulo Ângelo, foi um médico bastante afamado por sua conduta nobre e solidária. Macedo constrói quase um capítulo inteiro para tecer a diferença entre o “médico” e o “negociante de receitas”, uma das digressões mais interessantes da obra rs. Aliás, Os Dois Amores é cheio de digressões, o que para mim foi uma novidade, em se tratando de Macedo que, embora já houvesse me dado mostras de tal recurso, jamais na mesma proporção que nesse romance. Convém mencionar que as digressões de Macedo são deliciosíssimas (pelo menos para mim foram rs), e que se realizam de duas formas: através do narrador e pelos extensos diálogos que permeiam todo o livro. Macedo não poupa nos diálogos que, muitas vezes, acabam um tanto excessivos.

No “Purgatório-trigueiro” residem Irias, que é a Velha Bruxa, e Cândido, seu filho adotivo. O moço, que tem vinte anos, é escrevente de advogado; tem um passado muito misterioso, uma vez que não conheceu os pais. Tudo o que Cândido sabe é que foi concebido fora do casamento; enjeitado por sua mãe, foi entregue à velha Irias, que adotou-o recém-nascido, mas recebendo auxílio financeiro do pai do menino. Aos treze anos, Cândido foi levado a Europa para formar-se. O romance começa justamente com o regresso do jovem já formado. Seu aparecimento passa quase despercebido, dada a constante discrição do mancebo que, pálido e triste, quando não está no trabalho, vive sempre encerrado num sótão silencioso. Cândido sabe que seu pai já faleceu, mas deseja ardentemente descobrir quem é sua mãe, não guardando-lhe nenhum rancor por tê-lo enjeitado.

Os pensamentos de Cândido eram todos para sua desconhecida mãe; até que um dia, da janela de seu sótão, ele tem uma visão extasiante: uma bela jovem caminhando entre as flores de seu jardim. Era a Bela Órfã que, todas as manhãs, visitava suas rosas. Cândido fica completamente tomado por aquela visão que não lhe sai do pensamento. Ele, contudo, é consciente de sua condição tão inferior à daquela deusa impossível. Mas no dia de finados, a velha Irias tem a lembrança de visitar o túmulo do saudoso benfeitor dos pobres, o pai de Celina; lá, a velha e Cândido põem-se a rezar, até que os surpreendem Anacleto, Mariana e Celina. Esta última, comovida do gesto daqueles estranhos, põe-se a chorar em pranto desesperado, de tal maneira que Cândido, por sua vez, deixa-se contagiar pela mesma emoção. Esse primeiro encontro entre Celina e Cândido, chorando ambos sobre o túmulo do pai da Bela Órfã, será decisivo para o nascimento de um sentimento que começa a florescer.

Anacleto, num gesto de gratidão aos moradores do “Purgatório-trigueiro”, convida-os para um sarau em sua casa, desconsiderando a classe social dos mesmos. Aqui, Macedo fará outra dentre tantas digressões do livro; esta para minuciosamente analisar as diferenças de classes, tomando o gesto de Anacleto como ato extraordinário e incomum para os costumes da época. O autor chega a surpreender quando atribui culpa ao Governo nessa questão de classes. Nem preciso dizer que essa desigualdade social será o primeiro empecilho para a realização do amor de nosso novel casal.

Dentre os frequentadores da casa de Anacleto, destaca-se Salustiano, um moço rico e vaidoso que exerce um poder inexplicável sobre Mariana, influência esta sempre comparada ao poder de um senhor sobre sua escrava. Macedo joga mais uma vez com o passado, o que já é uma marca registrada em suas obras; passa a impressão de já ter tudo arquitetado de antemão, incitando a curiosidade do leitor com diálogos truncados, jogando ao longo do livro peças de um enorme quebra-cabeça. Como um bom folhetinista que o era, sugere pistas que ora parecem falsas, ora verdadeiras, de maneira que o leitor fica num suspense inevitável. O que ocorre é que Salustiano possui em seu poder uma carta muito comprometedora para Mariana, o que lhe serve como objeto de chantagem. Ambicionando a mão de Celina, Salustiano não custa a reconhecer no modesto Cândido um inimigo nada favorável a seus planos; por isso, valendo-se de sua escrava, ele não descansará até correr com o pobre Cândido do suntuoso “Céu cor-de-rosa”.

Vou parando por aqui com o enredo, mas já advertindo que tudo o que contei não compreende a décima parte da trama d’Os Dois Amores, que é de uma engenhosidade cativante e surpreendente, em especial por mostrar um Macedo mais ousado no tratamento de temas tabus para a época, como fornicação e aborto. Este título — Os Dois Amores — foi o que me inquietou bastante, enquanto tentava compreendê-lo. Ora pensava que estivesse relacionado com os amores de Celina e os de sua tia, que também são relatados no romance, ainda que numa proporção menor; ora associava-o ao triângulo amoroso Cândido-Celina-Salustiano; mas, finalmente, acredito que esses dois amores são os que existem simultaneamente no coração de Cândido: por Celina e por sua desconhecida mãe.

Devo confessar que o mais impressionante n’Os Dois Amores é a pureza que exala de suas páginas. A história parece o tempo todo ser contada por um anjo de luz de candidez e virtude incomparáveis. Não há como não se sensibilizar com a delicadeza com que o autor trata, mesmo nas digressões, dos sentimentos humanos. A pena de Macedo encheu o meu coração de uma alegria tão singela e me emocionou sobretudo com sua fé inacreditável no homem. Esse olhar divino, puro, casto... parece não existir mais. Essa crença na consciência escrupulosa, na remissão, na honestidade, na humanidade... parece não ter mais lugar neste mundo tão vil. Daí, pensei: “Que bom seria que as pessoas pensassem como Macedo que, mesmo um tanto ingênuo em algumas situações, era indiscutivelmente um homem probo e sincero”.

Dizer que tal romance é isento de falhas seria incerto, mas, sinceramente, diante de tanta beleza e sabedoria, não vejo por que apontar os exageros, os descuidos de linguagem, as falhas imperdoáveis sempre apontadas pelos críticos mais ranzinzas que estigmatizaram Macedo como um ordinário escritor de romances para moças. E Macedo escrevia mesmo para moças, e era consciente disso; lembremo-nos do prefácio d’O Moço Loiro. Machado e Aluísio, só para citar dois grandes gênios, também escreveram para moças. Macedo, assim como eles, soube ser transcendental. A grandiosidade de sua obra será sempre atestada por todo aquele que tiver um mínimo de sensibilidade no coração.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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