sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O Menino do Gouveia, de Capadócio Maluco - RESENHA #60

Primeiro conto homoerótico da literatura brasileira, O Menino do Gouveia (1914), do incógnito Capadócio Maluco, foi publicado pela primeira vez num suplemento da polêmica folha O Rio Nu, periódico pornográfico que circulou no Rio de Janeiro, de 1898 a 1916.

O homoerotismo sempre foi um tema tabu em nossas letras. A estética naturalista, contudo, inclinou-se por aproveitá-lo, ainda que numa perspectiva secundária, como vemos n’O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo; ou, quando tema central, de forma velada, conforme lemos em Um Homem Gasto (1885), de Ferreira Leal, e no Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha. O próprio Machado de Assis arranha o tema no conto “Pílades e Orestes”, de 1903, divulgado também anos depois nas Relíquias de Casa Velha. Mas é somente com O Menino do Gouveia que a homossexualidade torna-se objeto consistente de uma narrativa brasileira, que a expõe sem pudores ou reservas.

Escrito sob pseudônimo para uma folha de conteúdo adulto, O Menino do Gouveia utiliza linguagem carregada de termos vulgares e apelativos. Não pensem contudo que o texto é exatamente pobre por esta escolha vocabular. O conto tem uma estrutura interessante e é bem desenvolvido, segundo seus propósitos narrativos. Talvez certos exageros e tintas mais fortes exigidas pelo gênero pornô é que tenham comprometido a qualidade ficcional.

O narrador é o próprio Capadócio Maluco que, já no começo do conto, está na cama com o Bembém. Embora não se possa precisar a idade deles, fica sugerido que Bembém é mais jovem que Capadócio. O rapaz, enquanto acaricia a genitália do parceiro, dispõe-se a contar a história de sua iniciação sexual. A ele pois é dada a tarefa de narrar até o desfecho do conto.

Bembém fala do despertar de sua sexualidade, por volta do quatorze anos, quando gostava de espiar os criados nus. Seu desejo maior, porém, era apreciar a nudez de seu tio, em cuja casa morava; desejo este satisfeito graças a um estratagema que lhe permitiu assistir o tio em ato sexual com a esposa. O “avantajado membro” visto por Bembém provoca-lhe uma forte excitação venérea; mas no dia seguinte, após uma provocação direta, o garoto é expulso de casa.

Ardendo em desejos, Bembém sai pela cidade em busca do que ele chama de “fanchono”, termo atribuído a pederastas. No Largo do Rocio, aparece Gouveia, que na descrição de Bembém era “um tanto maduro”. Uma rápida conversação entre eles dá mostras das intenções de ambos. Gouveia, muito cordial, leva Bembém ao cinema e, logo em seguida, à sua residência. Na sequência, temos a iniciação sexual de Bembém segundo os ditames de seu deflorador.

O conto, escrito numa época bastante ignorante aos conceitos de gênero e publicado em periódico destinado a um público heterossexual, cristaliza a homossexualidade sob uma ótica limitada e machista. Bembém, por exemplo, não consegue ter ereção, uma vez que só é capaz de sentir prazer anal; sua figura é constantemente passiva e todas as referências a ele apontam um comportamento feminino; o que fica sugerido é que o garoto, conforme certas mulheres “da época”, não era mais que um objeto sexual do desejo masculino.

É importante compreendermos que O Menino do Gouveia relata a homossexualidade simplesmente pelo aspecto sexual. Numa época muito mais intolerante que a nossa, dificilmente teríamos condições de conceber ficção que abarcasse uma autêntica relação homoafetiva, ou seja, em que ambos os parceiros compartilhassem do mesmo sentimento. O conto, não obstante seus exageros, é um interessante documento para compreensão da visão que tinham os brasileiros sobre as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Avaliação: ★★★

OBSERVAÇÃO: O Menino do Gouveia foi reeditado recentemente pela editora “O Sexo da Palavra”. Pode ser adquirido pelo site (https://www.osexodapalavra.com/) ou na página do Facebook da editora (https://www.facebook.com/osxdapalavra/).

Daniel Coutinho

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sábado, 17 de fevereiro de 2018

O Ermitão do Muquém, de Bernardo Guimarães - RESENHA #59

Quando penso em romance indianista, só lembro de Alencar, pois até então não tinha lido outros que não os do cantor de Iracema. Não sabia que o romance de estreia de Bernardo Guimarães tratava-se de obra indianista. O que sabia d’O Ermitão do Muquém era seu pioneirismo na história do romance regionalista nacional. O caso é que, dividido entre essas duas tendências, o romance está simplesmente formidável. Há muito que não lia um novo romance do autor, que é um dos meus românticos favoritos, especialmente pela sedução que tem a sua escrita.

Editado ora como “O Ermitão de Muquém”, ora como “O Ermitão do Muquém”, o título mais correto vem a ser este último, por ser o que consta na 1ª edição, como nas posteriores impressas em vida do autor. O subtítulo acusa: História da fundação da Romaria de Muquém na província de Goiás. Festejada até os dias de hoje pelos fieis devotos, a romaria de Muquém tem sua origem romanceada por Bernardo Guimarães que, na introdução de seu romance, alega ter ouvido toda a narrativa da boca de um romeiro, enquanto fazia pouso num rancho mineiro. Contudo, embora não possa afirmar, acredito que toda a fabulação d’O Ermitão do Muquém é fruto da imaginação de seu autor, uma vez que não encontrei referências à narrativa em outras fontes.

O romance é dividido em quatro “pousos”, que correspondem àqueles realizados pela comitiva do autor, durante a narração do romeiro. Vamos pois à história!

Gonçalo é um típico valentão de Vila Boa (atual Goiás) que desafia a quantos queiram medir forças com ele. Ainda que inspirado pelos bons sentimentos recebidos dos falecidos pais, a índole de Gonçalo instiga-o à vida rude e desregrada. Num dia em que via-se louco por uma briga, decide provocar seu amigo Reinaldo, insinuando-se para Maroca, a namorada do rapaz. A situação dá lugar a um sangrento combate, onde Reinaldo acaba morto e Maroca enlouquece de tão impressionada.

Fugitivo das autoridades, Gonçalo buscará refúgio entre os selvagens, passando por várias peripécias até chegar finalmente à tribo dos Xavantes, onde conhecerá a bela Guaraciaba, por quem logo se apaixona. A virgem, filha do velho cacique Oriçanga, já está, no entanto, prometida desde o berço ao intrépido guerreiro Inimá. Como os sentimentos de Itajiba (Gonçalo é chamado assim pelos Xavantes) são bem recebidos por Guaraciaba, e ele também acaba ganhando a simpatia de Andiara, principal pajé da tribo, decide-se realizar uma grandiosa prova entre os rivais, para a escolha do companheiro da filha de Oriçanga.

O poder de ambientação de Bernardo Guimarães é algo surpreendente, de maneira que sentimo-nos dentro da história o tempo todo. De fato, as cenas são pintadas com cores tão vivas e cintilantes que, atreladas à escrita fluida e feiticeira do autor, fazem a leitura voar. O estilo é, tal como em outras obras já lidas desse grande mineiro, deliciosíssimo. Verdade é que a pintura indianista não é da mesma precisão de um Alencar, mas o senão acaba sendo justificado pelos intermédios que tem a história que, como disse, é relatada por um romeiro que, por sua vez, a ouviu de terceiros.

Indiscutível é que a empolgação despertada pela leitura não me dava oportunidade de prestar atenção em mais nada que não fosse a trama. Mas, claro, não pude deixar de apreciar a beleza da frase de Bernardo Guimarães, que vale por um aconchegante cafuné.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Lendas e Tradições Populares do Norte, de Franklin Távora - RESENHA #58

Lendas e Tradições Populares do Norte foi uma série de textos escritos por Franklin Távora para a Illustração Brasileira, publicados entre janeiro e junho de 1877. Nunca publicadas em livro, tive que ler as Lendas pelos periódicos originais, digitalizados pela Biblioteca Nacional.

Apesar de não ser simpatizante do gênero “fantasia”, tenho um interesse particular por lendas, certamente porque elas estão diretamente inseridas na realidade. Ainda que as histórias sejam produto da imaginação do povo, elas têm um encanto mais característico pelo fato de que não lhes faltam defensores a garantir-lhes a veracidade. É nessa ponte entre o real e o sobrenatural que está o meu interesse pelas lendas.

A proposta da coluna de Franklin Távora era registrar essas histórias populares, para que não se perdessem na tradição oral. O autor demonstra preferência pelos causos associados a episódios históricos, o que o leva a preceder as narrativas fantásticas com uma explicação – às vezes demorada – referente ao contexto político da época. O episódio mais recorrente da série são as invasões holandesas no século XVII.

As qualidades literárias do autor d’O Cabeleira são perfeitamente reconhecíveis nessas Lendas, ainda que não fosse necessariamente a intenção de Távora escrever literatura propriamente dita. Pressentimos que a sugestão era um trabalho de não ficção que registrasse as tradições populares do Norte, mas a escrita é por vezes tão requintada, que as intenções artísticas acabam se revelando vigorosamente. A linguagem, em certos trechos, chega a ser tão rebuscada para um trabalho de não ficção, que logo denuncia a preocupação estética sobre o texto.

Apreciei todas as oito lendas da série e confesso que só conhecia a das “mangas de jasmim de Itamaracá”, também recolhida por Câmara Cascudo em Lendas Brasileiras. Comentarei rapidamente cada uma delas, a título de curiosidade mesmo, tendo em vista ser o conjunto da obra tão desconhecido dos leitores.

Rio Manguaba, onde foi submerso o sino encantado.
“O sino encantado” concentra-se já nas invasões holandesas. Preparando-se para um iminente ataque, os cristãos da vila de Porto Calvo, em Pernambuco, decidem recolher todos os objetos sagrados das igrejas, para que não fossem profanados pelos pagãos. O maior desses objetos, o sino da torre, é escondido no fundo do rio Manguaba. Passados os conflitos com os holandeses, o sino submerso acaba ficando esquecido após a doação de um novo sino por uma fiel. Quando finalmente o vigário da vila decide reavê-lo, surge uma questão: o vigário pretende destinar o sino a outra igreja, enquanto o juiz é da opinião de que à igreja matriz deve ser restituído seu antigo sino. Durante a discussão, a corda utilizada para rebocar o sino acaba se rompendo; o objeto acaba perdido nas profundezas. Desde então, muitas pessoas alegam ouvir o sino tocar de dentro do rio, ao meio-dia e à meia-noite.

Pedra Aguda, do município de Aracoiaba, CE.
“A visão da Serra Aguda” trata da visão de uma mulher que aparece numa caverna da hoje chamada Pedra Aguda, monólito do sertão de Aracoiaba, no Ceará. No relato de Távora, uns sertanejos, que por ali pernoitavam, encontraram um faqueiro de pedra numa das entradas naturais; em seguida, foram surpreendidos por uma estranha mulher que, após cumprimentá-los, vai acudir a um choro de criança que se faz ouvir.

Nos mangues do rio Beberibe foi escondido o tesouro do soldado.
“O tesouro do rio” nos conta sobre um grande saqueamento realizado por soldados de Recife que estavam inconformados com suas condições de trabalho. Contudo, após assaltarem ricos negociantes, são obrigados a se esconder do povo, que tomara a defesa das vítimas. Um canoeiro de Olinda acaba sonhando três noites seguidas com o tesouro escondido por um dos soldados que pereceu nas mãos da fúria popular. Discretamente, ele vai em busca do tesouro nas margens do Beberibe, mas é surpreendido por uma grande ventania. Uma voz em sua consciência convence-lhe a abandonar a empresa e regressar ao trabalho honesto.

Cruz do Patrão, em Recife, PE.
“A cruz-do-patrão” é, a meu ver, o episódio mais interessante da coleção. A verdade é que são muitas as histórias em torno desse monumento que até hoje existe em Recife. No século XVIII, a Cruz do Patrão era um indicador para os navios no antigo istmo entre Recife e Olinda. Acreditava-se que a cruz de pedra era amaldiçoada, em consequência das desgraças já ocorridas no local, como o caso do soldado que acabou morrendo no degredo para o qual foi condenado após ter sido acusado injustamente da morte de um estudante cujo corpo foi encontrado ao lado do sinistro monumento. Outro caso bastante famoso foi o de uma mulher negra que, após ter se juntado a um grupo de feiticeiros que faziam seus cultos no temido local, foi perseguida por um espírito maligno que tinha a forma de um animal desconhecido. Após entrar em contato com as águas do Beberibe, onde a negra havia se refugiado, uma súbita explosão destruíra a criatura. No dia seguinte, no local onde a negra sumira, aparecera uma ilha preta, à qual todos passaram a chamar de “Coroa-preta” e que podia ser vista até meados do século XIX.

Praça Chora Menino, em Recife, PE.
“Chora-menino” é outro episódio da invasão holandesa. Depois de invadido o Forte Real do Bom Jesus, os habitantes que escaparam ao ataque intentaram uma peregrinação até Vila Formosa (atual Sirinhaém), onde estava o grande general Matias de Albuquerque. Durante a jornada, Ana de Souza acaba morrendo de fome, deixando seu filho aos cuidados de Lourença, sua irmã mais jovem, que também tinha um filho. Por conta do tempo gasto com a falecida, Lourença acaba ficando para trás, perdendo de vista a caravana. Sozinha e desesperada pelo choro das duas crianças famintas, Lourença acaba morrendo também. Reza a lenda que quem passasse pelo local, ouvia choro de criança; daí o nome de “Chora Menino” que recebeu o lugar. Até hoje, em Recife, existe uma praça com este nome.

 Túmulo abandonado do Padre Tenório na Igreja Nossa Senhora da Conceição, em Itamaracá, PE.
“As mãos do padre Pedro Tenório” conta da execução de um padre que conspirava pela independência do país, cuja cabeça fora colocada no alto de um poste, e as mãos atadas a outra coluna. Conta-se que duas crianças brincavam distraidamente perto da coluna onde estavam as mãos do padre, quando viram uma luz sobre elas. Acreditou-se logo que a luz era a alma do padre, pois mesmo com chuva, podia-se vê-la plácida, viva e imóvel.

A lenda do "frade sem cabeça" também é citada pelo autor.
“O cajueiro do frade” é a mais engraçada das lendas, ainda que não fosse intenção do autor deixar o texto cômico. Frei José era tão querido no lugar onde habitava, que quando transferido, as pessoas acreditavam vê-lo à sombra do cajueiro que ficava ao lado de sua antiga palhoça. Quando souberam da morte do frade, intensificou-se a ideia de que a imagem do religioso podia ser vista ao lado do cajueiro, o que espantou todos os moradores do lugar.

Manga Itamaracá
“As mangas de jasmim”, finalmente, encerra a série com uma lenda que, como disse, já conhecia pela leitura de obra já resenhada por aqui. Caso não saibam do que se trata, advirto que é uma das histórias mais românticas da cultura pernambucana. Por ser uma lenda bastante difundida na época, o autor preferiu divulgar os versos de José Soares de Azevedo, intitulados Ayres Ivo Redivivo, onde a lenda é contada de forma bastante singela e agradável. Na antologia de Câmara Cascudo, estes mesmos versos estão parcialmente transcritos; na obra de Franklin Távora, temos o poema na íntegra.

Eis uma obra importantíssima, especialmente para os pernambucanos, que está perdida entre papéis velhos da imprensa brasileira. Seria uma ideia por demais excelente a publicação dessas lendas em livro, o que, a meu ver, já deveria ter acontecido há muito tempo.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

P.S.: Editora Oitocentista reeditou em 2021, num único volume, A Trindade Maldita e Lendas e Tradições Populares do Norte. Para adquirir seu exemplar, fale com a editora pelo Instagram (@editoraoitocentista) ou por e-mail (editoraoitocentista@gmail.com).

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