Acabei de ler Como Gota de Óleo na Superfície da Água, romance de estreia do
cearense Léo Mackellene, lançado recentemente pelo selo “Radiadora”. A
experiência não foi das mais felizes e tentarei explicar por quê. Pra quem não
conhece, o romance, provavelmente influenciado pelas ideias de Zygmunt Bauman,
autor de Amor Líquido (2003), trata
da fragilidade ou liquidez dos relacionamentos atuais, especialmente através do
triângulo Júlio-Leila-Madalena; a narrativa é contada pelo ponto de vista de
quatro narradores.
A começar pelos problemas mais evidentes, o
estabelecimento do texto está bem sofrido. Erros de revisão são sempre chatos.
É bem difícil escapar deles, eu sei, mas aqui senti um pouco de desleixo nesse
quesito: discrepâncias entre nova e velha ortografia, pontuação, concordância,
uso dos porquês; termos estrangeiros, etc. Uma atenção mais cuidadosa na hora
da revisão poderia ter evitado boa parte das incorreções. O principal problema
dos erros de revisão é que, geralmente, eles acabam interferindo no julgamento
estético da obra, como se eles desvalorizassem o valor artístico da mesma. É o
que acontece comigo, pelo menos! rs
Quanto aos narradores, como já mencionei, são
quatro: Júlio, Leila, Madalena e um narrador em 3ª pessoa. Eles aparecem
aleatoriamente ao longo do livro de maneira bem proporcional, exceto por
Madalena, que narra menos. Senti falta de uma identidade mais consistente na
construção desses narradores, o que me dificultava o reconhecimento deles
durante a leitura. Mas depois o próprio Léo me alertou para a seguinte ideia
proposta pelo livro: “Como se alguns espíritos fossem tão grandes, mas tão
grandes que precisassem nascer cinco ou sete pessoas pra esses espíritos terminarem
de reencarnar por completo.” (pág. 22) Em outras palavras, Júlio, Leila e
Madalena, além do narrador em 3ª pessoa, compartilham da mesma alma, como se
fossem um só. Talvez o espiritismo explique melhor essa parte rs. Mas
indesculpável mesmo é a troca de narradores num mesmo trecho; de um parágrafo a
outro, por exemplo; o que acontece no mínimo três vezes, certamente por lapso.
A escrita também é carregada de recursos que, a
meu ver, comprometeram a fluidez do texto. Talvez a repetição de palavras tenha
sido, desses recursos, o que mais me incomodou. Às vezes, parecia que estava
lendo um trava-língua: “Desde então, o aniversário de Clarinha seria comemorado
no dia em que ela se mudara pra casa da Maria Luiza, e não o dia mesmo em que
tinha nascido, mesmo dia em que a mãe adotiva morrera.” (pág. 89); ou “Longe de
ser outro. Antes de existir, contudo. Antes de antes de nascer o mundo. Longe,
muito longe... longe de ser novo. Longe de ser outro.” (pág. 132) ou pior ainda
“[...] foi o que lhe disse o pai e o pai dele disse a ele e o pai do pai dele
disse ao pai dele.” (pág. 325).
O livro é ainda saturado de referências
(músicas, filmes, livros, artistas, etc) que aparecem o tempo todo. Sempre
entendi que uma referência funciona como um recurso para produzir efeito; mas
quando tal recurso é empregado imoderadamente, o efeito acaba se perdendo,
tornando-se repetitivo e insípido. Apontar todas as referências que aparecem em
CGOSA daria outro livro. A linguagem escrachada utilizada em vários episódios também
não me pareceu de bom tom, devido à sua considerável recorrência. O verbo
“trepar” teve, por exemplo, uma participação muito efetiva na obra rs. Isso
para não citar tantos outros termos vulgares que me pareceram exagerados e sem
grandes propósitos.
Há ainda passagens em que o texto toma uma
roupagem que mistura filosofia e autoajuda, como a querer, a todo custo,
persuadir o leitor psicologicamente: “Algumas coisas são inevitáveis. A vida é
inevitável, e o que tem de acontecer tem muita força.” (pág. 125), ou “Os
momentos que podemos lembrar são momentos em que pudemos alcançar a superfície
do Ser e respirar. O que esquecemos é mera instância, momento em que não Fomos,
nem Éramos... Estávamos... e estamos todos só de passagem.” (pág. 310) e só
mais esta “Viemos cá neste mundo para desatar nós e refazer laços. Somos sempre
uma ponte, uma ponte para o outro, para algo ou pra algum lugar. Sempre.” (pág.
312). Augusto Cury que se cuide! rs
A dispersão da narrativa em retalhos, o que já é
quase uma regra no romance contemporâneo desde que Milton Hatoum publicou Relato de um Certo Oriente (1989), foi
outro recurso descomedido. São inúmeras as histórias paralelas que acabam tendo
mais espaço que o núcleo central na primeira metade do livro. Casos de
parentes, amigos, conhecidos, vizinhos, empregadas domésticas rs: personagens
secundários e terciários que não tiveram grande relevância para os propósitos
do livro; quando muito, tornaram-no mais extenso. Mas que, devo admitir: essas
subtramas roubaram a cena por diversas vezes, pelo colorido e pelo interesse,
em relação ao núcleo principal.
Finalmente, passando ao núcleo central, o
triângulo Júlio-Leila-Madalena não me pareceu convincente pelo comportamento
improvável dos personagens. É sempre muito obscura a maneira como os
relacionamentos na trama atam e desatam, principalmente pela facilidade com que
isso ocorre. Os personagens de Léo parecem amar à primeira vista; desamar ao
primeiro deslize; e voltar atrás ao primeiro arrependimento. São inúmeras as
situações inconcebíveis, especialmente pelo perfil que vamos traçando
mentalmente de cada tipo. O desenvolvimento e o desfecho desse núcleo central
são questionáveis, para não dizer inverossímeis.
Agora, para não descuidarmos de apontar as
qualidades do livro, não poderia deixar de falar da ambientação que me pareceu
bastante condizente com a realidade cearense, urbana e rural; e não estou
falando exclusivamente da realidade atual, mas de toda uma geração. Quem
cresceu nos anos 80-90, por exemplo, sorrirá não poucas vezes diante de
costumes e modismos daquele tempo. Vez por outra, vislumbrava certa quedinha do
autor pela prosa regionalista. O capítulo que narra o casamento de dona Menina
e Sebastião chega a lembrar Rachel de Queiroz. Pracabá, Promessa e Medida do
Bonfim eram para mim Fortaleza, Sobral e Massapê rs. Foi o que vi de grandioso
em CGOSA: a ambientação e o registro de costumes, dando aquela saudadezinha de
um tempo em que podíamos pular e gritar na chuva, de bica em bica, sem nos
preocuparmos com nada.
Entendo perfeitamente que um romance de estreia
é sempre mais vulnerável. Contudo, o que percebi em CGOSA foi que a experiência
do “escritor” sobrepujou a do “prosador”. Foi deste último que senti falta e, de
fato, é ele quem precisa ser trabalhado mais. Desejo muita sorte ao Léo na
formação desse prosador que já está desabrochando nele.
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
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