terça-feira, 30 de outubro de 2018

A Casa do Passado, de Algernon Blackwood - RESENHA #82

Desejando ler algumas histórias de terror, influenciado pelos leitores aficionados do gênero que, neste mês de outubro, cultuam o sobrenatural, decidi conhecer a obra de um autor inglês, Algernon Blackwood (1869-1951), por indicação da amiga Claire Scorzi.

Pouco conhecido no Brasil, Blackwood foi redescoberto pela escritora Heloisa Seixas que, no início dos anos 2000, traduziu e organizou uma antologia de dez contos do autor para a editora Record. Esta seleta, A Casa do Passado, prometia entregar, como dizia o subtítulo, “dez grandes contos de terror”, mas apenas três ou quatro narrativas se encaixam realmente no gênero, sendo que as demais apenas exploram elementos fantásticos.

Os contos de Algernon Blackwood, mesmo os de terror, dificilmente provocam medo, ainda que este seja o objeto maior de sua análise. Em quase todas as histórias desta seleta, o autor demonstra um cuidado bastante minucioso em descrever a sensação de medo experimentada por seus personagens. Surpreendeu-me o caráter analítico de sua prosa, especialmente pela profundidade psicológica que ela atinge.

As narrativas transcorrem lentamente, num ritmo que por vezes chega a ser cansativo, mas a lentidão quase sempre é compensada pela beleza da escrita. O tratamento artístico que Blackwood dá ao seu texto é primoroso e, em certos casos, notadamente poético. Seu amor pelas viagens e paisagens naturais reflete-se nos múltiplos cenários que encontramos em sua obra, como nas minuciosas descrições da natureza. Não fosse a demora e a despreocupação do narrador com o prosseguimento do enredo, seu texto fluiria mais livremente.

Quando li “Lobo Andarilho”, por exemplo, que deve ter umas trinta páginas, pensei: “tivesse este conto umas dez páginas de menos, seria uma obra-prima”. Pensaria mais ou menos o mesmo de muitos outros contos do livro. O que dizer então de “Os salgueiros” com suas intermináveis sessenta páginas? Há quem o considere, como o próprio autor considerava, a obra máxima de Blackwood. É um conto excelente, sem dúvida, mas excessivamente lento e prolixo.

Estou meio em dúvida quanto ao melhor conto desta antologia. Fico entre “O quarto ocupado” e “As asas de Horus”. O primeiro possui uma estrutura e um ritmo comedidos, além de uma ideia aterradora muito bem desenvolvida. O outro, embora menos moderado que o primeiro, deu-me a impressão de estar assistindo a um grande espetáculo, certamente por seu toque impressionista e teatral.

Além desses, apreciei com grande empolgação o já mencionado “Lobo Andarilho” que, como disse, beirou a excelência, com sua mistura de lenda antiga e narrativa de suspense; além do conto que dá título à coletânea, “A casa do passado”, fantasia poética que me deixou pelo menos uma meia hora pensando em reencarnação. É prosa poética de alta qualidade que nos faz refletir que todos carregamos uma “casa do passado” dentro de nós, cheia de lembranças adormecidas e não lembradas.

Integra a coleção outro conto bastante conhecido de Blackwood: “A boneca”, que inspiraria incontáveis outras histórias de brinquedos assassinos. Não obstante sua originalidade, incomodou-me a incoerência do enredo, que realmente não me convenceu. Pareceu-me incoerente que, dadas as circunstâncias descritas, a cozinheira desse a boneca à Monica; como também nada fizessem (ela, a arrumadeira e Madame Jodzka) para desfazer-se do brinquedo após a constatação do perigo; e, finalmente, a atitude do coronel Masters perante o caso, especialmente por não ignorar os pormenores em torno da terrível boneca.

Blackwood flerta ainda com o gênero de ficção científica, construindo mundos paralelos em histórias como “O caso Pikestaffe” e, ainda que mais sutilmente, em “Os salgueiros”. Outra peculiaridade de sua prosa é o toque de sensualidade que permeia alguns de seus contos, mais perceptível na primeira metade do volume.

Quanto aos outros contos, ainda que não tenham me parecido ruins, julguei-os pouco cômodos para uma “antologia”, mas atribuí o fato à dificuldade de acesso à obra de Blackwood, alegada pela organizadora em prefácio. Gostei mesmo assim, de modo geral, de todas as histórias, até as mais bobinhas, como “A ala Norte” e “O homem que era Milligan”.

Não consegui sentir medo lendo Algernon Blackwood. Tá bem: talvez só um pouquinho, quando lia “A boneca”, que meu celular começou a tocar sem aparecer nada na tela rs. Em compensação, apreciei de verdade o esteta que ele mostrou ser em seus textos, tão cheios dele mesmo: de suas paixões, de suas fantasias e, sobretudo, de seus medos.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 20 de outubro de 2018

A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco - RESENHA #81

Evitei por muito tempo este livro de Camilo, antipático que sou ao assunto “política”, sem descuidar do valor que ele (o livro) representa na colossal bibliografia do imortal português. Após conhecer os lances passionais do autor de Amor de Perdição, reconhecia a necessidade de encarar outras tendências cultivadas pelo mestre lusitano. A Queda dum Anjo (1866) certamente não foi a leitura mais agradável que Camilo me entregou, mas deu-me a felicidade de constatar que a febre dos amores, na qual ardia o romancista, impediu que a abordagem política empanasse os elementos mais simpáticos da novela.

Eu poderia ter apreciado mais este romance. Eis minha sensação final. O entrave maior, desta vez, não foi o hermetismo já tão conhecido na obra camiliana. O autor, autoconsciente de sua capacidade vocabular, e talvez criticado por seus excessos linguísticos, quis mostrar que o diabo pode ser muito mais feio do que se pinta. Decidiu pois que era necessário revelar a verdadeira verborragia: o vernáculo adornado de pretensões, o palanflório prolixo que nada diz. Para tal demonstração, ele nos dá o presunçoso Dr. Libório de Meireles, que rouba a paciência de Calisto Elói, o protagonista, tanto quanto dos leitores, com seus discursos incompreensíveis.

Os debates nas sessões parlamentares, onde se despeja a enfadonha demonstração do genuíno discurso verborrágico, foi o entrave maior de que falei. Ficava mesmo tentado a fechar o livro ou fazer leitura dinâmica rs. Compreendo as boas intenções do linguista, mas reprovei o exagerado método adotado para convencer-nos de que: “As laranjas, espremidas demais, dão sumo azedo, que corta a língua.” Tirante o enfado destas passagens irritantes, A Queda dum Anjo, se não toma ares de perfeição, admite uma leitura mais feliz.

Passando à narrativa, o autor nos apresenta Calisto Elói, um raro exemplar e representante do velho Portugal, cujos costumes são os mais antiquados possíveis, notados desde seu traje, do começo do século, até seus livros, nenhum deles com menos de cento e cinquenta anos. Este austero senhor é casado com uma prima, dona Teodora, senhora empenhada numa meticulosa economia doméstica. Logo de início somos levados a crer que o matrimônio dos dois é puramente convencional, não implicando sentimentalismo algum.

Calisto, com quarenta e quatro anos, sempre tivera o instinto do dever, combatendo com excessivas leituras os impulsos e afoitamentos da juventude. Sua louvada reputação faz dele um provinciano de destaque, sendo elegido, quase que por unanimidade, deputado de Miranda. Partindo para Lisboa, ele depara-se com uma realidade bem diversa daquela rezada em seus alfarrábios. A corte dá-lhe ensejo para o exercício de suas virtudes, que são logo alvo de censura pelos parlamentares liberais. A conduta do "anjo”, no entanto, acaba cedendo aos sintomas de uma “mocidade serôdia”.

O coração de Calisto, ainda virgem das paixões espontâneas, acaba incendiando naquele novo terreno, em contato com as damas elegantes da sociedade. Adelaide é a primeira mulher a fazê-lo perceber os encantos da paixão, que tiram-lhe o sono, que fazem-no cismar e compor versos. Calisto experimenta o ciúme, pelo pretendente jovem da donzela, e sofre o desprezo da mesma, que prefere ao outro. Eis os lances de uma mocidade tardia que, segundo o narrador, independente de tempo, é inevitável para todo e qualquer homem.

A impossibilidade do amor com Adelaide libera os sentimentos de Calisto para uma nova inclinação. É aí que surge Ifigênia, uma prima distante do deputado que, viúva, jovem e desamparada, recebe com acolhimento a proteção deste. Semelhante a Calisto, Ifigênia nunca conhecera o amor, tendo dedicado a seu marido um afeto paternal. Diante pois daquele coração igualmente virgem, não creio ser necessário explicar a qualidade da “queda” de que trata o título do romance.

Camilo, um brincalhão de primeira, já no título da obra reflete os preconceitos de sua época. Mas o que poderia ser uma “queda” para o público, a atitude de Calisto, para ele, era exemplo de libertação. De fato, não é um processo de perversão o que sofre o personagem; é antes um reconhecimento advindo de uma análise pessoal que o faz mudar. São os interesses pessoais que estão em jogo, bem aos olhos do leitor. O comportamento dos personagens é apenas reflexo desses interesses. O que poderia ser considerado uma “imoralidade” corresponderia ao ideal de “felicidade” de Calisto Elói.

Assim como no Amor de Salvação, a companhia de Camilo melhora consideravelmente a experiência de leitura, porque seu narrador traz marcas notadamente pessoais, o que nos faz senti-lo próximo e presente. Humor e ironia são ingredientes bem utilizados neste romance que, para minha surpresa, tirou-me boas gargalhadas, mesmo quando tratava de “política” rs.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Pequenos Assombros, de Bruno Paulino - RESENHA #80

Preparando-me psicologicamente para encarar as macabras histórias de Algernon Blackwood, que devo ler em breve, decidi dar uma chance a este livrinho que caiu-me às mãos recentemente (presente de um amigo poeta), cuja proposta muito me interessou.

Lançamento deste ano, Pequenos Assombros, do cearense Bruno Paulino, encerra contos e crônicas que exploram o universo do terror, seja através do reconto de causos populares, como também da expressão pessoal de um aficionado do gênero.

Os dez trabalhos publicados na coletânea atendem, todos eles, a uma concisão que beira mesmo o sobrenatural rs. Esse limitado espaço assentou mais às narrativas de caráter pessoal, como “Visagem”, “Um velho gato”, “O exterminador de lagartixas” e “O despertar dos cassacos”, que não por coincidência figuram entre os melhores textos do conjunto.

Por outro lado, a tentativa de registrar casos conhecidos, especialmente de nossa região, não vingou com a mesma comodidade no livro, dada a força dos argumentos que exigiam um desenvolvimento mais destacado. “O mistério no céu do Salva-Vidas”, por exemplo, recordou-me uma das histórias mais antigas contadas por meu pai, com pormenores mais significativos até. Estou mesmo embirrando porque não consigo lembrar o nome que se dava ao tal objeto voador aludido na história dele. Prometo perguntar de novo assim que possível e publicar nos comentários rs.

Também já conhecia (e acho que todo mundo rs) as lendárias botijas que faziam enriquecer os sortudos que as encontrassem. Um episódio similar é ricamente registrado por Franklin Távora em “O tesouro do rio”, nas suas esquecidas Lendas e Tradições Populares do Norte, já resenhadas por aqui também. O curioso do conto de Bruno, “A botija de dona Guidinha”, é justamente o aproveitamento da figura histórica de Marica Lessa, imortalizada como Margarida, ou simplesmente Guidinha, na obra máxima de Oliveira Paiva.

Destaco ainda “Excertos do estranho diário do Dr. Albuquerque”, que apresenta uma história de lobisomem por um artifício que me pareceu bastante conveniente, principalmente pela sugestão sutil de uma confissão, uma revelação que poderia implicar (quem sabe) um sentimento de culpa. As demais narrativas, conquanto mereçam algum interesse, sufocaram na concisão exagerada, como um sapato que nos aperta o pé.

Pequenos Assombros, com o talento demonstrado por seu autor, poderia ter saído muito melhor com umas cem páginas a mais. Irritou-me ver num livro tão curtinho aqueles bobos erros de revisão, com que sempre implico; mas, felizmente, longe (muito longe) de superar o recordista História entre Mundos. Lembram-se dele rs?

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

As Três Marias, de Rachel de Queiroz - RESENHA #79

Cada livro de Rachel é uma surpresa. Quando penso que não há mais nada que possa me mostrar, ela revela uma nova faceta, um novo recanto de sua escrita. É verdade que deixa de ser extraordinário depois de um tempo, mas sem nunca perder o encanto.

As tramas de Rachel geralmente são simples e sem grandes episódios. O seu segredo está na forma como ela as reproduz, seguindo livremente o curso de sua prosa, que é sempre (e sempre mesmo) fluida e empática. Para cada romance seu, há um método específico de construção; para todos eles, a mesma escrita sedutora e simpática.

Em As Três Marias (1939), aproveitando-se de algumas experiências pessoais, ela nos dá o relato intimista de uma mulher frágil, mas resistente. Esta, Maria Augusta, ou simplesmente Guta, conta-nos diversos episódios do processo de sua formação enquanto mulher. Vamos tomando nota, no ritmo despretensioso da personagem, deste caderno de memórias suas e dos outros.

Guta não esconde seus sentimentos nos registros que dispõe, ainda os mais íntimos. Fala abertamente de sua condição de garota órfã, cuja relação com a madrasta, não obstante ser amigável, mantém reservas. Faz ainda uma análise da postura do pai em cada um dos casamentos, apontando as diferenças observadas. Dá-nos, finalmente, dentre outros perfis, os de outras duas “Marias”: Maria da Glória e Maria José, suas amigas de internato.

Encerradas num colégio de freiras, “as três Marias” vão delineando distintas personalidades, assistidas por uma disciplina rigorosa de uma sociedade patriarcal. O mundo, lá fora, é um fascinante mistério que, paulatinamente, vai se revelando para elas, com seus encantos, preconceitos, misérias e convenções. Glória, órfã de pai e mãe, altiva e orgulhosa, é a mais disposta a encarar a vida sem maiores preocupações; Maria José, medrosa e carola, rege seu destino pelos princípios de sua fé; e nossa Guta, meditativa e incrédula, permite-se levar por caminhos desconhecidos, à procura de realização pessoal.

Socorro Acioli, em seu ensaio biográfico Rachel de Queiroz (Demócrito Rocha, 2003), designa As Três Marias como o mais lírico dos romances da autora de O Quinze, no que estou plenamente de acordo. Da primeira à última página, somos tragados pela poesia que acompanha todo o relato de Guta. A maneira como a protagonista expressa profundas divagações transporta-nos para seu interior, tornando-a desnuda aos nossos olhos. Assim, temos acesso direto às expectativas e conclusões dela sobre, principalmente, os homens com quem se relaciona: Raul, Aluísio e Isaac.

A trajetória de Maria Augusta é mais intuitiva que planejada. Como já mencionei, ela prefere deixar-se levar pelo incerto, pelas circunstâncias de cada momento, esteja a salvo ou não das dificuldades. Certamente o que mais me incomodava nela era sua disposição melancólica, que lhe suscitava ideias suicidas e uma visão menos otimista de seu amor-próprio. Enquanto Glória refugiava-se na ternura do casamento e Maria José na austeridade religiosa, à Guta faltava um apoio similar, talvez a confiança de alguém que iluminasse sua direção.

Eis um livro que carecia mais espaço. Maria da Glória e Maria José que o digam! Infelizmente não contamos com uma visão mais esclarecedora do desenvolvimento das companheiras de Maria Augusta. Outros personagens secundários acabam tomando a cena, a partir do que neles sugere interesse à narradora. Tal desconformidade não prejudica felizmente o sabor da obra, mas também não evita que fiquemos de certo modo insaciados.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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