sábado, 30 de dezembro de 2023

A Princesinha (A Little Princess), de Frances Hodgson Burnett - RESENHA #204

A feliz experiência que tive com O Jardim Secreto, da inglesa Frances Hodgson Burnett, levou-me a querer conhecer outros títulos da autora. Seguindo o caminho mais óbvio, escolhi A Princesinha (1905) como próxima leitura. E, mais uma vez, Frances me mostrou o que é literatura infantil de alta qualidade.

A primeira versão deste clássico saiu com o título Sara Crewe (1888) em formato de conto. Os editores de Frances, no entanto, sugeriram um desenvolvimento melhor para a irresistível história da orfãzinha, o que resultou no livro que temos hoje, publicado mais de quinze anos depois em formato de romance.

A Princesinha, tal como O Jardim Secreto, é uma narrativa que explora valores como bondade, generosidade e esperança. Cada capítulo é uma espécie de lição que nos leva a refletir na riqueza que são os bons sentimentos. Sara é uma criança tão perfeita, que chega a ser difícil admitir sua existência, mas, ao longo do livro, acabamos conhecendo seu lado frágil em momentos de vulnerabilidade.

Sara é uma menina rica, filha do capitão Crewe, um importante negociante indiano. Órfã de mãe, aquela filha única sempre teve de tudo, sendo mimada pelo pai nos mínimos detalhes; mas, por conta dos negócios, o capitão decide matriculá-la num renomado colégio interno em Londres. A senhorita Minchin, diretora do internato, recebe Sara com bastante cordialidade, oferecendo-lhe todos os confortos disponíveis em sua escola, mas sua conduta é sempre guiada pela situação financeira avantajada daquele pai tão generoso.

A princípio, tudo parece correr bem para Sara que, com seu jeito doce e meigo, conquista muitas amizades, mas também inveja e antipatia de umas poucas garotas. Um funesto acontecimento, porém, muda a posição social de Sara do dia para a noite, transformando-a de princesinha em pobre serviçal. A repentina mudança gera um grande desafio para ela, que precisará adaptar-se a um novo cenário nada convidativo, mas que se tornará suportável graças ao poder de sua imaginação.

Lendo A Princesinha, tive o mesmo pensamento de quando li O Jardim Secreto: “O mundo inteiro precisa ler e praticar as lições deste livro”. As mensagens contidas nas obras de Frances não se aplicam somente às crianças. A verdade é que nós, adultos, carecemos muito mais da aplicação delas em nossas vidas.

É muito interessante como as páginas d’A Princesinha conversam com os nossos bons sentimentos. É como se o que há de melhor em nós reagisse aos episódios do livro, exclamando em nosso interior: “É isso mesmo! É assim que se faz!”, e desse modo confirmando que também somos pessoas boas e capazes de fazer o bem.

Livros como O Jardim Secreto e A Princesinha são renovadores de esperança. Eu me refiro à esperança em nós mesmos. A leitura deles nos faz pensar que, ao invés de olharmos para a humanidade como juízes, devemos fazer a nossa parte, e isso, de certa forma, bastará.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 9 de dezembro de 2023

A Viúva Simões, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #203

D. Júlia é um talento inegável. Dentre todas as escritoras brasileiras que já li, sua obra tem ressaltado com um viço e uma potência impressionantes, e isto vem se confirmando com mais força a cada nova leitura. A Viúva Simões (1895) é minha sexta experiência com a autora e, como já esperado, o livro caiu na minha graça.

É simplesmente maravilhoso quando lemos um autor pelo qual nos apaixonamos, principalmente quando, a cada novo livro, essa paixão só aumenta. Os livros de Júlia Lopes de Almeida conversam comigo de uma forma encantadora, pois o estilo deles vai diretamente ao encontro do meu gosto pessoal. A escolha dos temas, a construção dos enredos, a caracterização e atuação dos personagens, a condução da narrativa, o estilo de escrita... Tudo isso me agrada. Talvez o uso de alguns estrangeirismos seja o único ponto incômodo, mas nada que tire o brilho desses livros tão preciosos que a autora nos deixou.

Em A Viúva Simões, acompanhamos o drama de Ernestina que, tendo enviuvado muito jovem, renova suas antigas inclinações por Luciano, seu primeiro amor. O antigo namorado, porém, embora atraído pela viúva, é um homem mundano, avesso a compromissos. Depois de uma longa ausência, tendo vivido muitos anos na Europa, Luciano retorna ainda solteiro e passa a frequentar a casa de Ernestina, com quem flerta descaradamente.

Ernestina, contudo, possui uma filha já crescida, a jovem Sara, que em tudo lembra o falecido comendador Simões. Luciano antipatiza a garota à primeira vista, e não se esforça em nada por esconder da mãe sua opinião em relação à filha, mesmo o que diz respeito à aparência dela. Ernestina esforça-se ao máximo por apaziguar a situação, especialmente depois que Sara começa a perceber um movimento de mudanças acontecendo em sua casa.

Fiel à memória do pai, Sara encara pessimamente as atitudes da mãe, que interrompe o luto em menos de um ano. Mas essa alteração de cores no visual da família faz ressaltar a beleza de Sara, que já não é mais tão desinteressante aos olhos de Luciano. Uma aproximação inevitável entre os dois desencadeia uma série de acontecimentos dramáticos e até trágicos.

Uma qualidade das mais excelentes em D. Júlia é o manejo dos personagens secundários, sempre valorizados em seus romances. A caracterização que ela nos dá faz com que os enxerguemos tão nitidamente quanto as figuras centrais, e o movimento deles em cena confere um toque bastante realista aos episódios da trama. Os empregados de Ernestina não são meros figurantes. Ainda que a autora não se atenha a todos por igual, conhecemos suas existências, suas rotinas e suas aspirações.

Outra característica já percebida em leituras anteriores, e que considero muito positiva, é esse “efeito crescente” nos seus romances. À medida que avançamos no texto, a trama parece ganhar mais consistência, como um caldo que vai engrossando até atingir o ponto ideal. Quando finalmente chegamos ao desfecho, temos a imagem final de uma obra belamente acabada, onde, de modo geral, tudo está no seu devido lugar e nada mais precisa ser dito.

A Viúva Simões me deixou ainda mais apaixonado por sua autora. D. Júlia é hoje para mim um porto seguro, um lugar aconchegante onde sempre serei bem recebido. É um alento saber que ainda tenho vários livros dela para desfrutar. São essas alegrias que nos mantêm sendo leitores. E como isso é bom!

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 11 de novembro de 2023

O Capote e outras histórias, de Nikolai Gógol - RESENHA #202

Eis que retorno à literatura russa! Se com Púchkin meus olhos de leitor não brilharam suficientemente, com Nikolai Gógol a experiência foi bem mais compensadora. Mas a questão é: podemos considerar russo o autor de “O capote”? Eu, particularmente, acredito que sim. Apesar de nascido na Ucrânia (numa época em que o país integrava o Império Russo) e de seus primeiros escritos tecerem sobre costumes e mitos de sua terra natal, Gógol viveu na Rússia, que serviu de cenário às suas obras mais importantes.

A literatura de Gógol é fantástica, nos dois sentidos. Seus textos são de uma qualidade artística impressionante que exerce sobre o leitor o fascínio característico das obras-primas. A universalidade dos temas, a escrita excelente e o bom humor em doses convenientes são alguns dos fatores que fazem da obra de Gógol atemporal. Mesmo quando um tema ou uma escolha me desagradavam, o talento mantinha-se evidente em qualquer das narrativas que li.

Quanto ao uso do fantástico, podemos dizer que Gógol antecipou em sua ficção o que mais tarde, no século XX, seria chamado de “realismo mágico”. Seus elementos fantasiosos, principalmente em sua “fase russa”, são nitidamente empenhados em servir uma crítica realista. É como se o “estranho” e o “maravilhoso” funcionassem como toques artísticos em sua obra, conferindo uma impressão final mais literária.

A seleta de contos e novelas que li, da Editora 34, está excelente, principalmente por trazer textos que revelam as múltiplas facetas do autor. “O capote”, que abre o volume, pode ser considerado a síntese do talento de Gógol. Há tanto o que dizer sobre ele, que seria justo escrever outra resenha à parte; mas, como não disponho de tempo para tal, contentemo-nos com um pequeno comentário.

O protagonista de “O capote” é um homem obcecado por seu trabalho. Na função de conselheiro titular, mesmo sendo ridicularizado por seus companheiros de repartição, Akáki Akákievitch sente-se intimamente realizado, a tal ponto, que concentra todos os prazeres de sua vida miserável no exercício de sua profissão. Quando, porém, vê-se obrigado a adquirir um novo capote, o foco de seus esforços acaba mudando e, com ele, sua própria vida.

A partir daí, muitas leituras podem ser feitas, tendo em vista os desdobramentos da narrativa. A figura do homem alienado, que concentra todos os seus anseios num único “lugar”, nos mostra o quão triste e perigoso pode ser esse modo de vida, especialmente quando o “lugar” para onde convergem todos os seus esforços deixa de existir.

“Diário de um louco” é o conto mais triste do conjunto. A genialidade de Gógol na construção desse trabalho torna-se ainda mais admirável pela época em que o escreveu. Um fator digno de nota é a mudança de tom que a narrativa assume do meio para o final. A história que começa leve e bem-humorada torna-se trágica e melancólica; mas tal mudança não chega a ser abrupta, pois o formato de “diário” permite uma sucessão mais livre dos acontecimentos.

“O nariz” é um dos contos mais estranhos que já li. A estratégia usada por Gógol para criticar o funcionalismo público de seu tempo é das mais inusitadas. Mas o conto não se limita a isso. Tal como “O capote”, é capaz de render várias interpretações. A meu ver, “o nariz” de Kovaliov é o objeto, concreto ou abstrato, que eleva o ego do homem vaidoso, conferindo-lhe status social. Pode ser o carro do ano, uma roupa de marca ou até um título acadêmico. Uma vez perdido esse objeto, perde-se o valor da própria vida. Eis outro conto que suscita amplas reflexões.

“Noite de natal” é divertidíssimo. É a comédia pastelão do século XIX. As peripécias divertidas, que envolvem o próprio diabo, fizeram-me rir por diversas vezes, nesta que é a maior história do conjunto. Em compensação, “Viy” não ganhou minha simpatia. Trata-se de um conto de terror, totalmente baseado numa lenda ucraniana. Definitivamente não é um texto ruim, mas o enredo não soube prender minha atenção como nas narrativas anteriores.

A excelência do trabalho de Gógol já é, para mim, o grande momento das leituras do ano; e, a essa altura, dificilmente outro autor poderá superá-lo. Se me tivessem dito que em 2023 eu leria Jane Austen, Charlote Brontë e um autor russo, e que este último seria preferido às outras duas, eu certamente não teria acreditado. Como é a vida, hem?

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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domingo, 22 de outubro de 2023

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior - RESENHA #201

O romance nacional mais aclamado dos últimos anos é indiscutivelmente Torto Arado (2019), do baiano Itamar Vieira Junior. O porquê dos tambores rufarem tão alto em torno deste livro é que não posso compreender. Mas quem explica o sucesso? Essa loteria que, de tempos em tempos, premia este ou aquele sem determinar métodos.

Torto Arado é nitidamente o romance de um neófito das letras. Os primeiros capítulos são carregados de um tom infantojuvenil, mas que não soa como recurso estilístico proposital, e sim como texto em processo de autodescoberta, que ainda não tem segurança do rumo que vai tomar. De fato, a narrativa me pareceu hesitante em praticamente todo o livro.

A frase simples de Itamar até que se esforça por atingir uma fluidez textual, mas a falta de apuro em vários trechos e muitas ambiguidades bobas, por exemplo, prejudicam bastante o ritmo. Se, por outro lado, o plano ficcional compensasse esses defeitos, a impressão final poderia ser melhor, mas o enredo é tão problemático quanto o texto.

Entendo que a narrativa fragmentada, essa colcha de retalhos tão querida dos autores contemporâneos, seja uma marca muito forte na literatura do nosso tempo. No entanto, tal recurso, se não manejado por dedos de artesão, pode comprometer seriamente uma obra literária.

Logo no início do romance temos um exemplo claro dessa costura mal executada: quando o episódio das gêmeas Crispina e Crispiniana interfere bruscamente o fluxo de uma narrativa que teve um bom começo. Em seguida, quando a história de Bibiana já ganhava um bom desenvolvimento, o foco muda para Belonísia e, daí por diante, a meu ver, o livro se perde cada vez mais.

Outro ponto delicado, ao qual não poderei dar o espaço merecido nesta resenha, é o engajamento do texto. Em poucas palavras, toda literatura é livre para dizer o que quer, mas sou dos que pensam que, quando a intenção artística não está em primeiro plano, a obra literária tende a se descaracterizar. É o que ocorre com Torto Arado, onde a militância não aparece de forma sutil, mas nitidamente escancarada.

Há várias passagens no livro que apostam por uma prosa poética, recurso que poderia ter tido um efeito melhor, não fosse a impressão de estarem ali para suavizar a pregação ativista de capítulos anteriores. No entanto, grave mesmo é quando a mesma técnica é aplicada no desfecho do romance, a fim de pôr panos quentes no “olho por olho” defendido na polêmica frase final.

Torto Arado é daquele tipo de livro que poderia ter sido muito melhor, desde que outras escolhas fossem tomadas na composição da obra. Não estou aqui para ditar as escolhas certas para este ou qualquer outro texto que seja. Apenas reflito sobre possibilidades diversas que teriam dado um acabamento mais satisfatório ao romance, sem desmerecer seu mérito por ter (na forma concebida) funcionado para tantos leitores.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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sábado, 30 de setembro de 2023

Jane Eyre, de Charlotte Brontë - RESENHA #200

Sou fascinado por certos casos peculiares que fazem parte da história da Literatura Universal. As irmãs Brontë são um grande exemplo disso. É de intrigar a qualquer um que três irmãs nascidas no interior da Inglaterra tenham sido privilegiadas com um talento literário tão potente que as eternizou na memória popular.

Charlottë, Emily e Anne: três mulheres aparentemente simples e com limitado conhecimento de mundo (salvo aquele adquirido pela leitura), mas que deixaram uma contribuição ímpar para a ficção inglesa. Delas, só havia lido a Emily até então, que muito me impressionou com seu perturbador O Morro dos Ventos Uivantes: um livro visceral, cheio de camadas e repleto de exageros mais dignos de comoção que de censura.

Jane Eyre (1847), a meu ver, embora substancioso, não consegue ser tão impressionante. É um romance visivelmente autobiográfico, como já denuncia o subtítulo. O texto trescala um desabafo íntimo de sua autora. Há revolta, indignação, desejo, paixão, sonho e muito mais, tudo aparentemente escrito com o coração e sentimento à flor da pele. São essas emoções tão autênticas que possivelmente fizeram do livro um sucesso.

Logo de início somos dominados pela impetuosidade da pequena Jane que, muito criança, já revelava uma força admirável para enfrentar os seus opressores. Órfã de pai e mãe, Jane é confiada a um tio, cuja esposa não a recebe bem, e muito menos após enviuvar. Os primos, de idade semelhante, igualmente a desprezam. Salvo uma das empregadas da casa, Jane Eyre sofre a antipatia de todos à sua volta.

Mandada para um colégio interno, a garota enfrentará outros desafios, como fome e insalubridade. É dessa época sua amizade com Helen Burns, que marcará Jane por toda sua vida. Penso que tal amizade constitui um dos melhores momentos do livro, principalmente porque, nos capítulos seguintes, não aparecerão outros tipos tão interessantes quanto Helen. Devo confessar, inclusive, que, após a saída de Jane do internato, há uma queda considerável de ritmo, salvo pelos episódios bizarros protagonizados por Bertha Mason, personagem da qual não devo dizer muito.

Jane Eyre torna-se preceptora de uma menina numa casa rica. Adéle é uma garotinha adorável e que, penso, poderia ter sido melhor aproveitada no enredo. A propósito, o mesmo vale para muitos outros personagens, que certamente teriam tornado a parte central do livro mais fluida.

As conquistas amorosas de Jane Eyre infelizmente não me cativaram. A primeira delas, o senhor Rochester, pareceu-me um Heathcliff melhorado ou algo parecido. Também achei bastante automático o interesse súbito entre os dois, mas o fato de que Rochester foi a primeira figura masculina (um namorado em potencial) com quem Jane Eyre travou relações depois de adulta justifica de certa forma a ligeireza da paixão.

Sobre a paixão em Jane Eyre, preciso admitir que, principalmente considerando o ano de publicação da obra, é apresentada com uma franqueza impressionante. A autora, sempre muito clara em seus posicionamentos (o que renderia assunto para um texto à parte), não se intimida em revelar sua protagonista plenamente apaixonada e mesmo capaz de atitudes ousadas para a época.

Uma reviravolta na história promete tornar o livro novamente interessante, mas o segundo pretendente de Jane é um dos personagens mais chatos que tenho visto na literatura inglesa. St. John, por trás de uma capa religiosa cuidadosamente preservada, revela-se um homem presumido e egoísta, capaz de sugerir o sacrifício dos interesses de Jane em benefício dos seus. É nesse ponto que Rochester, como o diabo, parece não ser mais tão feio quanto se pinta.

Jane Eyre, tal como Orgulho e Preconceito, não me agradou da forma esperada, mas conversou comigo bem mais que o romance de Jane Austen. Os primeiros e os últimos capítulos me arrancaram lágrimas, o que por si só já é um mérito em se tratando de critério pessoal. Não se tornou um “livro da vida”, mas me mostrou uma protagonista grande e bela, ao contrário de como a consideravam os outros personagens do romance.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 5 de julho de 2023

O Bandido do Rio das Mortes, de Bernardo Guimarães - RESENHA #199

Não pude esperar muito tempo para ler a continuação do Maurício, tão curioso que eu estava para saber mais dos desdobramentos da trama de Bernardo Guimarães. O Bandido do Rio das Mortes (1905) infelizmente não chegou a ser concluído pelo autor. O romance foi finalizado por sua viúva, dona Tereza Guimarães, que, diga-se de passagem, não era escritora. Mas tratemos disso depois.

Os primeiros capítulos d’O Bandido do Rio das Mortes transportam facilmente os apreciadores de Maurício para aquele delicioso universo mineiro que tão bem conhecemos. Há tanta viveza e colorido nas descrições como na feitura dos episódios, que quase podemos sentir a empolgação do próprio romancista ao trazer seus personagens de volta.

O livro segue, portanto, num ritmo maravilhoso, à altura dos melhores capítulos do volume anterior, fascinando com aquela linguagem rancheira tão marcante do autor d’A Escrava Isaura. É lamentável que Bernardo Guimarães não tenha concluído O Bandido do Rio das Mortes, obra cujo poder seria equiparável ou mesmo superior ao romance de 1877.

Mesmo diante de um texto consideravelmente menor em número de páginas, são muitos os episódios dignos de nota neste romance póstumo. A passagem em que Maurício proporciona o reencontro entre Antônio e seu velho pai, por si só, já justifica a leitura desse livro que tanto prometia, mas que teve um destino tão deplorável.

Considerando a parte boa do caso, o que temos são os vinte capítulos mal-acabados e não revisados, saídos todos da pena do próprio Bernardo Guimarães. É um material que, mesmo incompleto, pode ser apreciado com interesse e empolgação, principalmente pelos admiradores do autor d’O Seminarista.

Quanto aos dois últimos capítulos que integram a edição, escritos por dona Tereza Guimarães, são simplesmente ridículos assim associados a uma obra literária. Não consta que a viúva do romancista tivesse qualquer inclinação para as Letras. Ela certamente assumiu a tarefa de terminar a obra de seu marido mais pelo desejo de homenageá-lo que pelo talento literário (que evidentemente não tinha).

Esses dois capítulos finais fazem uma espécie de resumo do que, acredita-se, Bernardo Guimarães teria esboçado para a segunda metade do seu último romance. As situações são dispostas, no entanto, tão deliberadamente, num tom que em nada lembra a prosa lida nos capítulos anteriores, que mais acertado teria sido separar em apêndice esse texto que pretende ordenar os fragmentos esboçados pelo autor.

Apesar de todas as circunstâncias ruins em torno da publicação de O Bandido do Rio das Mortes, louvo que mesmo assim o tenham publicado e nos doado um pouco mais desse inesquecível gênio da prosa sertaneja.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 24 de junho de 2023

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), de Anthony Burgess - RESENHA #198

A cada ano eu me descubro mais enquanto leitor. Desde muito que a literatura faz parte da minha vida e, em todo esse tempo, tem sido motivo de grande entusiasmo. Daí, obviamente, tive muitas fases legais: a fase das descobertas, a fase da formação do gosto pessoal, a fase de querer ler todos os clássicos mais conhecidos, a fase de comprar livros desenfreadamente, e por aí vai.

Dessa fase de comprar muitos livros herdei uma biblioteca gigantesca que não parava de crescer. Mas uma outra fase maravilhosa chegou para mim: a do desapego. Desde então, sou um novo homem. Os livros desinteressantes (que já eram ou que se tornaram com meu amadurecimento) foram todos indo embora, o que era bom, pois cediam espaço aos novos que nunca param de chegar.

Às vezes, admito, dá pena passar adiante algumas edições especiais, como é o caso desta de Laranja Mecânica: comemorativa dos 50 anos da obra. Mas como nunca mais devo ler este negócio medonho novamente, não faz sentido mantê-lo aqui parado na estante. Talvez esteja sendo inoportuno com uma introdução já demasiado longa para uma resenha, mas esta última leitura me fez repensar bastante sobre livros e leitores de forma geral.

Para mim, Laranja Mecânica (1962) é um livro ruim, mas esta é só uma opinião pessoal. Um livro que há mais de cinquenta anos permanece sendo reeditado e traduzido no mundo todo sem interrupção certamente terá algo de bom, e isso não posso negar. Mas o mundo é muito diverso e é impossível agradar a todos com a nossa conversa. E o que são os livros se não longas conversas compostas artisticamente por seus autores?

Já estou lendo outro livro, O Bandido do Rio das Mortes, de Bernardo Guimarães, e quando menos percebi já estava na metade. É que a conversa estava fluindo agradavelmente, preservando sempre o meu interesse. Laranja Mecânica não conversou comigo da mesma forma. O problema não era a escrita do Burgess, tampouco a gíria nadsat criada por ele e que pode sim ser um obstáculo nos primeiros capítulos. O problema não era nem mesmo o tema, que de fato não é dos meus preferidos, mas sim o tratamento dado a ele.

Em resumo, as escolhas de Burgess para sua obra mais famosa não conversaram comigo da forma como gostaria. E, agora sim, após este longo introito, podemos nos concentrar finalmente no livro em si.

Laranja Mecânica é um romance distópico que nos leva para uma Londres devastada pela violência juvenil. Alex é um adolescente de quinze anos que, juntamente com seus parceiros de gangue, realiza diversos atos criminosos: assaltos, espancamentos, depredações e até estupros. Esses jovens atuam deliberadamente, isentos de qualquer sentimento de empatia ou compaixão.

Mesmo entre os parceiros de gangue há desentendimentos e, numa determinada situação, Alex é traído pelos companheiros e capturado pela polícia. A vítima do crime em questão acaba falecendo e Alex é condenado a vários anos de prisão.

Desejoso de recuperar sua liberdade o quanto antes, Alex aceita se submeter a uma nova técnica correcional, ainda em desenvolvimento, e que prometia curá-lo de seus maus instintos no inacreditável período de duas semanas. É a partir daí que o autor completa o repertório necessário para chegar à crítica central pretendida pelo livro.

Agora passemos aos diversos problemas narrativos da obra de Burgess. Podemos começar pela construção dos personagens, que beira o ridículo, de tão rasa que é. Afora Alex, os demais personagens mais parecem marionetes programadas para cumprirem seus objetivos essenciais no livro. Fica claro que os pais de Alex, desatenciosos e omissos, têm bastante culpa quanto à péssima formação de caráter do garoto. Eis uma pauta, a meu ver, essencial e que certamente poderia conferir mais substância ao romance, mas que no entanto foi negligenciada de modo imperdoável.

Os demais personagens de relativa importância, como o escritor que é assaltado pela gangue de Alex e o capelão da cadeia, são igualmente pouco aproveitados, não rendendo episódios interessantes que colaborassem à trama. As participações deles são pontuais e não chegam a formar enredos secundários, tornando a narrativa toda centrada no próprio Alex, o que para mim tornou o livro insuficiente e pouco lúdico. Verdade seja dita: subtramas já salvaram muitos livros.

Algumas situações também ficaram muito mal explicadas, seja a morte de um personagem ou mesmo o destino de outros que assumem profissões improváveis do dia para a noite. E o que dizer do capítulo final? É perfeitamente compreensível a decisão dos editores americanos de o deixarem de fora do livro. O capítulo final de Laranja Mecânica é tão forçado, que não pude evitar concluir a leitura na força do ódio. Pareceu-me simplesmente inconcebível, e talvez que a obra me parecesse em geral mais regular se concluída até onde os americanos a divulgaram, inclusive no filme de 1971.

Laranja Mecânica, além dos problemas já apontados, é do início ao fim uma leitura incômoda: seja pela violência exagerada, pelos métodos radicais aplicados em Alex, ou pela falta de algum personagem ou situação que de certo modo compensassem o leitor por tantos incômodos. Se o capítulo final pretendia dar essa compensação, o objetivo não foi alcançado. O que fica pois de positivo de toda essa experiência é a conclusão de que uma nova fase está chegando por aqui: a de abandonar livros que não conversam comigo.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 19 de maio de 2023

Maurício, de Bernardo Guimarães - RESENHA #197

Todo leitor que se preze ampara-se numa rede de autores infalíveis, cujos livros jamais podem decepcionar. Bernardo Guimarães, para mim, encaixa-se perfeitamente nesse perfil. Mesmo num livro menos inspirado, como é este Maurício, o autor dá conta de nos deixar sob o efeito fascinante de seus sortilégios literários.

Maurício ou Os Paulistas em S. João del-Rei (1877) é o romance mais extenso do autor mineiro. Sente-se nele, de fato, uma pena mais arrastada e sem a mínima pressa no relato de seus episódios. Mas Bernardo Guimarães nem se quisesse poderia ser desinteressante, para suplício eterno de homens como Alcântara Machado, que o subestimava.

O livro pretendia ser o primeiro de uma série de romances históricos ambientados em Minas Gerais, mas o bom autor d’A Escrava Isaura, que não chegaria aos sessenta, não pôde ir além do segundo título, este mesmo ficando inacabado e concluído anos mais tarde por sua viúva.

Maurício é um jovem paulista que fora criado por Diogo Mendes, ilustre português que se tornaria capitão-mor no povoado que viria a ser, anos mais tarde, S. João del-Rei. Tendo recebido educação distinta, o moço torna-se o homem de confiança de seu amo, ficando responsável pela edificação da nova moradia em território mineiro, como também por mediar a relação entre os emboabas (portugueses) e os paulistas.

A intimidade com a família do capitão-mor propicia a inevitável paixão entre Maurício e Leonor, a filha de Diogo Mendes. Os dois jovens idealizam um sonho de amor, mas veem dificuldades na diferença social e, posteriormente, na chegada de Fernando, primo de Leonor que deseja casar-se com ela.

Fernando é aqui o vilão inescrupuloso, tipo indispensável aos romances de Bernardo Guimarães. Com seu poder de persuasão, ilude o tio e assume o controle do povoado, incentivando a discórdia entre paulistas e emboabas. Maurício acaba sendo seu alvo principal, pois Fernando não demora a perceber as preferências da prima sobre o irmão de criação.

A partir desse esboço geral, o autor divide sua obra em duas partes. A primeira (A Mina Misteriosa) concentra-se na descoberta de um novo Eldorado pelo índio Irabussú, o que desperta a cobiça dos portugueses, embora o velho selvagem mantenha seu tesouro no mais inviolável segredo. A segunda parte (A Insurreição), menos interessante que a primeira, trata de como os ânimos entre paulistas e emboabas se exaltaram ao ponto de se formar uma conflagração.

A proposta de Maurício é excelente e, a meu ver, o mesmo seria tão bom quanto O Ermitão do Muquém, se tivesse a extensão deste. O romance lembrou-me aquelas novelas esticadas da TV, cheias de capítulos que reforçam acontecimentos passados. Principalmente na segunda metade, a narrativa avança muito lentamente, o que pode impacientar um pouco o leitor.

Outro aspecto negativo é a qualidade da escrita, e talvez Maurício seja o romance mais desleixado do autor nesse sentido. Embora a prosa seja excelente, é muito perceptível que Bernardo Guimarães negligenciou a revisão do texto final.

Por outro lado, o dilema de consciência criado pelo autor para seu protagonista é digno dos grandes romances, e é impossível não nos compadecermos de Maurício, dividido entre o amor e o dever. Confesso que os desdobramentos desse dilema me surpreenderam bastante e quase me fizeram partir imediatamente para o segundo livro, que seguramente será lido ainda este ano.

No mais, entendam que Maurício é puro entretenimento, e dos bons! Mesmo com altos e baixos, pude aproveitar e me divertir do primeiro ao último capítulo, e a experiência foi maravilhosa, funcionando perfeitamente em dias tão atarefados como têm sido os últimos rs.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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domingo, 19 de março de 2023

Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice), de Jane Austen - RESENHA #196

É uma verdade universalmente conhecida que não amar um livro popular resulta em ser julgado ferozmente por muitas pessoas. Então..., eu não amei Orgulho e Preconceito, a obra-prima de Jane Austen, livro cujo grande mérito é, além de continuar sendo popular depois de duzentos anos, ser uma porta de entrada à literatura clássica para grande número de leitores.

Não vim aqui gastar meu precioso tempo falando mal de uma obra literária incontestavelmente importante. Até porque não penso que Orgulho e Preconceito (1813) seja um livro ruim. Para mim, de fato, foi uma grande surpresa que o romance não tenha me empolgado da forma esperada, levando em conta todos os prós que o cercavam: clássico inglês, romance romântico, amado por milhões de leitores no mundo todo, inspiração para diversas adaptações, etc.

Diante de todo esse contexto animador, era muito natural que expectativas fossem criadas. Quando li Razão e Sensibilidade anos atrás, não tendo amado igualmente, pensei: “Mas Orgulho e Preconceito será a glória!”. Mal sabia eu que o sol austeniano derreteria minhas asas de cera.

Não sei por que até hoje me impressiono com esse tipo de situação. Por mais que seja frustrante, é muito natural e compreensível que as pessoas revelem gostos variados e que, portanto, tenham a sensibilidade tocada em diferentes pontos. O que está parecendo é que Jane Austen não será a santa da minha devoção, embora ainda restem mais quatro romances por ler, além de outras obras menores. Sim, este leitor teimoso pretende ler todas elas, e preserva a esperança de trazer boas notícias nos próximos anos.

Precisarei fazer o resumo da obra? Em linhas gerais, o romance é sobre o orgulhoso Mr. Darcy e a maravilhosa Elizabeth Bennet, que não vou chamar de preconceituosa simplesmente por julgar as pessoas a partir de uma primeira impressão. Quem não fizer o mesmo, que atire a primeira pedra! Mr. Darcy, de classe superior, a princípio rejeita Elizabeth, tratando-a com desdém, mas, pouco a pouco, vê-se obrigado a reconhecer o quão superiores são as qualidades morais da bela jovem, apesar da baixa posição social e de pertencer a uma família censurável.

Agora, senhoras e senhores fãs de Jane Austen e apaixonados por Mr. Darcy, precisamos conversar. Uma conversa séria, lógica e racional, aos moldes da que tive com os apreciadores de Heathcliff anos atrás. Longe de mim comparar esses dois “mocinhos”! Mr. Darcy é a personificação do bem ao lado do odioso personagem de Emily Brontë. Porém, não posso compreender toda essa “lambeção” pelo proprietário de Pemberley. Eu o achei chatíssimo, desinteressante e uma companhia tediosa. Elizabeth seguramente merecia alguém melhor.

Elizabeth Bennet, preciso admitir, é uma personagem grandiosa e possivelmente a melhor criação de Jane Austen. É uma moça inteligente, sagaz e observadora, além de prudente e educada sem ser bobinha ou controlável. A postura dela em relação aos pais, mesmo conhecendo seus defeitos, é admirável. Seu olhar atento às irmãs não é menos digno de elogio. Sua postura firme e empoderada, diante de personagens detestáveis como Miss Bingley e Lady Catherine, rende os episódios mais catárticos do romance.

A meu ver, os maiores pecados de Orgulho e Preconceito são dois. O primeiro é a falta de dinâmica na construção dos episódios. O ritmo do livro, em diversos momentos, parecia arrastar-se por capítulos inteiros. Essa má impressão certamente foi agravada pelo fato de me parecerem enfadonhos alguns episódios que talvez tenham funcionado melhor para outros leitores, como o casamento de Mr. Collins e a fuga de Lydia. O outro senão, talvez ainda mais grave, é o tratamento dado à transição dos sentimentos de Elizabeth por Mr. Darcy; o que nos faz crer que Jane Austen era defensora daquela máxima de que o amor está mais perto do ódio do que a gente geralmente supõe.

Imagino ter conseguido apontar as impressões mais marcantes da minha leitura de Orgulho e Preconceito. Próximo ano devo ler Mansfield Park. Digam-me lá, caros entusiastas da autora inglesa: posso acreditar num futuro risonho e promissor?

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O Almirante, de Domingos Olímpio - RESENHA #195

Eu tinha treze anos quando a minha vida mudou. O livro era Luzia-Homem, de Domingos Olímpio: uma obra bastante desafiadora para alguém da minha idade/maturidade intelectual, mas inexplicavelmente convidativa e atraente. Essa leitura, posso dizer, levou-me por um caminho sem volta: o da literatura clássica. Até então eu só conhecia livros infantojuvenis, que já me divertiam bastante naquela época; mas Luzia-Homem revelou-me um caminho mais escabroso, porém indiscutivelmente recompensador.

Aquela primeira leitura da obra-prima de Domingos Olímpio, obviamente, não foi devidamente aproveitada. Foi a leitura do deslumbre, e eu pouco devo ter absorvido do romance. Contudo, a camada mais superficial da obra já havia me causado forte impressão, ao ponto de me motivar a conhecer outros clássicos.

Sempre que gostava de um livro, empenhava-me por encontrar outros títulos do mesmo autor. Foi assim com José de Alencar, Adolfo Caminha, Machado de Assis e tantos outros. Era raro o autor do qual não encontrasse novos títulos para ler. Domingos Olímpio, infelizmente, encaixava-se nesse pequeno grupo. As bibliografias indicavam um segundo romance, O Almirante, publicado em folhetins d’Os Annaes entre 1904 e 1906. Na mesma folha apareceria O Uirapuru, que ficou inacabado devido à morte do autor. Encontrar essas obras, sobretudo O Almirante (que estava completo), tornou-se um sonho que eu julgava irrealizável.

Anos se passaram e, em 2017, como quem não quer nada, acabei me deparando com as digitalizações d’Os Annaes, disponibilizadas pelo portal Brasiliana da USP, fonte esta que já me proporcionou grandes alegrias. Estavam lá O Almirante, na íntegra, mais os onze capítulos d’O Uirapuru; e eu mal podia acreditar.

Impossível seria não criar expectativas quanto àquela leitura; mas a ideia de ler algo novo de Domingos Olímpio, por si só, já era incrivelmente empolgante. Agora que isso finalmente aconteceu, não posso negar a intensidade da experiência, mas também preciso admitir que o livro não me agradou da forma como esperava, além de ser evidente sua distância da grandeza que foi Luzia-Homem.

O Almirante é um romance ambientado no Rio de Janeiro. Apesar de tratar e refletir importantes questões humanas, o grande foco do livro é a situação política do Brasil que vai do fim do Império aos primeiros anos da República. Mesmo dando largo espaço a um tema pouco interessante para mim, o livro surpreendentemente conseguiu prender minha atenção, pois era visível a preocupação do autor em manter um equilíbrio entre a política e os elementos mais romanescos da trama.

No centro da narrativa temos Guilhermina, a marquesa de Uberaba. Ela é sem dúvida a personagem mais interessante do livro, além de ser uma das poucas por quem alimentei alguma simpatia. Após ser educada num convento, Guilhermina, por arranjo do pai, casa-se com o coronel João Francisco, um negociante em ascensão. Ela e o esposo são mestiços, mas, por esbanjarem uma considerável fortuna, não deparam dificuldades em se relacionarem socialmente.

Guilhermina é uma mulher forte, ativa, sonhadora e ambiciosa. Através de sua inteligência, o marido ascende cada vez mais socialmente e ambos se tornam marqueses. Somando a fortuna herdada do pai com o pecúlio de João Francisco, os marqueses estão entre as famílias mais ricas do Rio de Janeiro.

Há contudo um véu de tristeza que nubla a felicidade do casal: eles não conseguem ter filhos sadios, e todos acabam morrendo precocemente. Para suprir seus frustrados sonhos maternais, a marquesa adota Oscar, um órfão promissor, que recebe todas as vantagens de uma boa educação, tornando-se um marinheiro de destaque, o que lhe confere o epíteto carinhoso de “almirante” do próprio imperador.

Anos mais tarde, uma nova perda irreparável abala a felicidade da marquesa: falece João Francisco. Viúva e com seu único filho distante, a marquesa de Uberaba, para vencer a solidão, regressa ao primitivo sítio mineiro do finado esposo e propõe-se a realizar um grande projeto: a construção de um núcleo agrícola totalmente modernizado e sem trabalho escravo.

Esse é o primeiro ponto alto do livro que, a meu ver, poderia ter sido melhor explorado. O capítulo que narra a chegada dos imigrantes que trabalhariam no núcleo é um dos mais interessantes de toda a obra. De fato, é impressionante a coragem e a pertinácia da marquesa em fazer acontecer o seu sonhado projeto a todo custo, mesmo contra a opinião pública, que considera tudo aquilo uma loucura.

Mas eis que chega o dia 15 de novembro de 1889. A marquesa de Uberaba, monarquista confessa, sofre novo abalo com o fantasma da República que se aproxima. É com grande pesar que ela vê seus amigos próximos tendo que se curvar ao novo regime pelo bem de suas famílias. O próprio Oscar, seu filho do coração, parece render-se ao novo modelo político, desinteressado por manifestar resistência.

Oscar, personagem aludido pelo título do romance, é que não me pareceu bem delineado. Trata-se de um homem grave, disciplinado e inteiramente focado na própria carreira. Nos capítulos iniciais fica subentendido que ele se envolveria com uma das filhas de dona Eugênia, uma amiga da marquesa.

A propósito dessas meninas, as três também não foram devidamente exploradas pelo autor. Amélia, a mais velha, de idade um tanto avançada para o casamento, é beata e recatada, parecendo assim a candidata mais condizente com o temperamento de Oscar. Laura, a irmã do meio, é praticamente invisível no romance, e o que sabemos dela diz respeito à sua ingenuidade e modos infantis. Hortênsia, a caçula, é uma menina sonhadora e ambiciosa, além de ser uma espécie de pupila da marquesa.

Domingos Olímpio enriquece o livro com outros personagens que contribuem com o andamento da narrativa. O autor, neste romance, dispõe de uma galeria de figuras excelentes, com a qual poderia ter realizado um trabalho significativamente melhor. Tive essa impressão de que O Almirante foi escrito mais “ao correr da pena”, sem as preocupações estéticas que vemos em Luzia-Homem.

O romance contém personagens e episódios que poderiam ter sido melhor aproveitados, visto que espaço não faltou à obra, que é demasiado longa. Senti uma falta de equilíbrio no tratamento dado aos temas, como também aos personagens de primeiro plano. O próprio Oscar é bastante invisível na primeira metade do livro, por exemplo.

Por falar nessa primeira metade, a ênfase dada ao contexto político é um tanto exaustiva, especialmente nos longos debates que se dão nos serões da marquesa. Como já mencionado, o autor, ainda assim, estabelece uma dinâmica que não torna a leitura cansativa. Todavia, pareceu-me incoerente que, na segunda metade da obra, essa marca tão característica e identitária do romance fosse quase que inteiramente apagada, uma vez que o foco muda para os aspectos romanescos que vinham sendo moldados, a conta-gotas, desde os capítulos iniciais.

Em resumo, O Almirante é um livro que, com sua incrível galeria de personagens e seus vários momentos e episódios dramáticos, poderia ter rendido uma obra melhor acabada ou pelo menos melhor acomodada nos seus trinta capítulos. O fator tempo deve ter pesado bastante em sua composição. Mas, tendo em vista que Domingos Olímpio infelizmente não nos deixou outros títulos, eu já me senti presenteado pela oportunidade de ter essa experiência que me mostrou uma nova faceta do inesquecível autor de Luzia-Homem.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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