sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Tentação, de Adolfo Caminha - RESENHA #123

O cearense Adolfo Caminha foi um dos maiores nomes do Naturalismo no Brasil, imortalizado por grandes obras como A Normalista e Bom-Crioulo. Ambos me causaram excelente impressão, tornando Caminha um dos meus prosadores favoritos do final do século XIX, não obstante sua morte prematura aos vinte e nove anos ter impedido a continuação de sua parca obra. Dela consegui reunir praticamente tudo, faltando-me apenas Voos Incertos, coletânea de poemas que marca sua estreia literária. [Agradeço desde já a quem puder me fornecer uma cópia impressa ou digital.]

Tentação (1896) era uma de minhas leituras mais ansiadas, pois meu último contato com a prosa de Caminha data de muitos anos, quando li um compilado dos seus contos, que saiu em 2002 pelas Edições UFC. Por outro lado também estive guardando este último romance, receoso de ficar órfão de tão querido autor; mas, felizmente, obtive há certo tempo Judite e Lágrimas de um Crente, seus primeiros trabalhos em prosa, integrando meu estoque de sua ficção.

A leitura de Tentação foi plenamente satisfatória, como um reencontro agradável com um velho amigo. Nele não temos os escândalos dos romances mais populares de Caminha, que preferiu neste seu último trabalho apelar para o pudor feminino. O livro é de uma leveza aconchegante, que fascina por sua atmosfera de simplicidade. A cena mais lúbrica é a de um beijo na mão de uma senhora casada, e a mais dramática corresponde a uma crise nervosa desta mesma senhora.

Evaristo é um bacharel em Direito que deseja ardentemente abandonar a vida provinciana em Coqueiros para tentar carreira no Rio de Janeiro. Por intermédio de seu amigo Luís Furtado, ele obtém emprego de escriturário no Banco Industrial, o que o decide a mudar-se com sua esposa Adelaide para a Cidade Maravilhosa.

Luís Furtado oferece sua casa em Botafogo para acolher o amigo e sua esposa. Eles ocupam o primeiro andar da residência, sendo o segundo ocupado por estrangeiros que estão prestes a deixar o local. Com a partida destes, Evaristo e Adelaide decidem alugar o segundo andar. Os dois casais gozam a mais perfeita harmonia, e dona Branca, esposa de Luís, torna-se companheira inseparável de Adelaide.

As relações do casal Furtado, porém, acabam por impressionar Adelaide, que se sente deslocada naquele meio de aristocratas. Consciente de sua posição social, ela lamenta não poder desfrutar das joias e fazendas das mulheres que frequentam a casa de dona Branca. O Rio de Janeiro vai se descobrindo, pouco a pouco, como um lugar onde predominam as aparências e vícios sociais.

Evaristo, de sua parte, logo entre em conflito com os amigos de Luís Furtado, predominantemente monarquistas. O jovem bacharel, inclinado às ideias republicanas, repudia os excessos e costumes da nobreza, reprovando a existência de titulares (viscondes, barões...), como também a hipocrisia de muitos burgueses em ascensão.

As amabilidades de Luís Furtado para com Adelaide, cada vez mais acentuadas, dão lugar à “tentação” aludida pelo título do romance. O conservadorismo da esposa do bacharel atiçam o desejo de Furtado, que sente-se mais atraído à cada nova esquivança de Adelaide. Esta, mesmo mostrando-se firme em sua fidelidade, não é livre de pensamentos imorais. O exemplo de dona Branca, que trai o marido com o visconde de Santa Quitéria, atiça-lhe a imaginação, trazendo-lhe sempre à lembrança a sedutora imagem de Luís Furtado.

Eis um livro em tudo despretensioso, mas que agrada justamente por manter-se num ritmo regular e cativante. Não há aqui uma sucessão de fatos empolgantes ou um crescente de emoções que ameacem explodir. O que há é um passeio pela sociedade fluminense dos últimos anos do Império, com direito a piqueniques no Jardim Botânico e andanças pela Rua do Ouvidor.

O último romance de Adolfo Caminha é quase uma remissão de suas histórias atribuladas. É quando temos um Naturalismo tão sutil, que chega a ser romântico.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

As Alegrias da Maternidade (The Joys of Motherhood), de Buchi Emecheta - RESENHA #122

Tencionando sair da minha zona de conforto, decidi encarar pela primeira vez uma obra da literatura nigeriana. O livro escolhido, As Alegrias da Maternidade (1979), de Buchi Emecheta, não me empolgou da forma como gostaria, mas trouxe-me uma experiência inegavelmente curiosa por me apresentar costumes e hábitos tão diferentes dos nossos.

Nosso imaginário automaticamente associa o continente africano à extrema pobreza. O livro de Buchi Emecheta reitera esta má impressão, apresentando-nos uma história de miséria e sofrimento. Talvez fosse melhor ter procurado uma obra menos infeliz quanto aos acontecimentos narrados. Estou aceitando sugestões, pois não quero crer que todos os africanos são uns pobres sofredores.

Nnu Ego é a filha principal do chefe Nwokocha Agbadi, pois nascera de sua amante mais querida, a bela e voluntariosa Ona. Após casar-se com Amatokwu, sente-se infeliz por não conseguir gerar filhos, o que leva seu marido a procurar outra esposa. Menosprezada e maltratada em seu próprio lar, Nnu Ego volta para a cabana de seu pai, onde todos acreditam que sua infertilidade deve-se à escrava que fora sacrificada para ser enterrada junto à esposa mais velha de Agbadi.

Algum tempo depois, Agbadi contrata um novo casamento para sua filha, entregando-a a Nnaife, filho mais moço da família Owulum, que residia em Lagos (então capital da Nigéria), onde trabalhava como lavadeiro para uma família inglesa. Mesmo não aprovando o escolhido de seu pai, Nnu Ego alimenta um sentimento de gratidão por Nnaife torná-la mãe. Cada nova gravidez de Nnu Ego constitui novos desafios para o casal, que deverá lidar com uma série de dificuldades e imprevistos ao longo dos anos para assegurar o sustento e educação dos filhos.

As Alegrias da Maternidade foi uma leitura bastante incômoda, pois o choque de cultura perturbou-me em vários momentos. A cena do sacrifício da escrava logo nos capítulos iniciais causou-me profunda indignação. O tratamento dado às mulheres, rebaixando-as à qualidade de “máquinas para procriar”, é outro fator difícil de absorver. O despotismo dos colonizadores ingleses, finalmente, completa o quadro de injustiças denunciadas no livro.

Comparar Buchi Emecheta com Lima Barreto, a meu ver, seria depreciá-la enquanto romancista, mas não posso negar que algumas passagens de seu livro evocavam-me o autor de Clara dos Anjos, especialmente quando percebia a intenção militante preponderando sobre a intenção artística. É bem verdade que seu texto, de linguagem simples e desataviada, não revela qualidades notáveis, limitando-se a entregar um enredo limpo, seco e sobretudo áspero.

Como já antecipei ao princípio desta resenha, livros desta classe não costumam me empolgar, mas, uma vez que a ideia era sair da tal zona de conforto, penso que o objetivo não se perdeu.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A Providência, de Teixeira e Sousa - RESENHA #121

Teixeira e Sousa já havia me dado boas mostras de sua prolixidade nas memoráveis Tardes de um Pintor. Em A Providência ele se supera, compondo o maior romance de sua lavra literária. A obra saiu em folhetins do Correio Mercantil entre 26 de janeiro e 17 de junho de 1854, sendo publicada em livro pouco tempo depois.

A trama é das mais intricadas, entrelaçando diversas histórias e inúmeros personagens. Como o autor antecipa no prólogo, torna-se difícil determinar um protagonista. Seria mais acertado dizer que a própria Providência revela-se como personagem central, uma vez que, tratando-se de um livro cristão, a ela são atribuídos vários acontecimentos.

Observando contudo o ponto comum a todas as histórias, deparamo-nos com o personagem Batista, mesmo que, tal como os outros, ele não represente um protagonista. Apaixonado por uma mulher casada, Batista acaba tendo um filho desta relação extraconjugal, sendo a criança confiada a um amigo seu.

Vicente, filho de Batista, é criado por pais adotivos condescendentes ao extremo. Em virtude dessa má educação e da péssima influência de Justino, de quem se tornara amigo inseparável, o garoto acaba tendo uma vida estroina e desregrada, dissipando a fortuna dos pais. Após a morte destes, decide acompanhar o amigo de farras, perdendo-se completamente das vistas de seu verdadeiro pai.

Batista, além deste filho perdido, carrega uma grande culpa em sua consciência, um segredo que nunca pôde revelar a ninguém. Para expiar seus pecados, aceita casar-se com Branca, mesmo esta já sendo mãe. Benedito, o filho bastardo, é confiado ao pai de Branca, o padre Chagas, que enviuvara precocemente antes de consagrar-se à vida religiosa. Benedito é enviado ainda criança para Portugal, onde completa seus estudos e adquire formação em Direito. Batista e Branca têm uma filha juntos: Rosa Branca, que cedo ficaria órfã de sua mãe.

Rosa Branca é a típica heroína romântica: belíssima, ingênua, pudica, religiosa e repleta de tantas outras virtudes. Arcanjo, filho de Renato, vizinho e amigo de Batista, é seu inseparável companheiro de infância, mesmo sendo consideravelmente mais velho. Embora Renato anseie a vida eclesiástica para Arcanjo, o jovem nutre por Rosa Branca uma sincera paixão, mas terá um rival em D. Geraldo de Pina, um sobrinho do padre Chagas, que chegado há pouco da Europa, apaixona-se pela filha de Batista.

Julgando-se ainda em idade de contrair matrimônio, Batista pede Narcisa em casamento. Trata-se de uma bela jovem, pouco mais velha que Rosa Branca, que aceita a proposta de seu pretendente, tendo em vista as riquezas deste, não obstante sua paixão por Pedro, um forasteiro que recebera acolhida em sua casa e que lhe ensinara a ler.

Quando todos esses assuntos estão sendo tratados, Benedito retorna de Portugal, surpreendendo a todos, principalmente a Rosa Branca, que acaba apaixonada por ele e vice-versa, já que ambos desconhecem que são filhos da mesma mãe. O padre Chagas e Batista logo veem-se na contingência de descobrir-se o passado de Branca, mas tentarão contornar a situação atribuindo a paternidade de Benedito a Batista.

Narcisa e Pedro concebem planos perversos para com a família de Batista, pois desejam desfrutar juntos no futuro das riquezas do pai de Rosa Branca. Entretanto, este possui um inimigo muito mais perigoso que, sem que o percebam, mantém-se a par de tudo o que diz respeito a Batista, empenhado em lançar sobre ele uma terrível vingança acalentada há mais de trinta anos.

Sei que esta resenha pode soar meio confusa, mas o ritmo do livro de Teixeira e Sousa é bem este mesmo, saltando sempre de uma história a outra entre seus três núcleos principais, contando ainda com várias digressões, além de idas e vindas no tempo. Nesta intricada teia narrativa, a já mencionada prolixidade do autor pode compreender o mais difícil obstáculo do livro, fazendo-o parecer arrastado por diversas vezes, não obstante as inúmeras ocorrências e lances imprevistos.

Quanto às digressões, algumas podem ser bem maçantes, sobretudo duas: a passagem em que Filipe, o pai de Narcisa, refere a entrada da religião cristã no Japão; e aquela em que o padre Chagas tão minuciosamente descreve sua visita à Terra Santa. Contudo, o autor realiza alguns artifícios interessantes, como aqueles em que firma um diálogo direto com o leitor, recurso que seria melhor executado mais tarde num Machado de Assis.

A Providência pode sim ser uma leitura um tanto cansativa, seja por seus exageros, como por sua extensão, mas nem por isso deixa de ser uma experiência interessantíssima, pois, além de trazer os vários clichês dos populares folhetins, põe-nos em contado com uma trama curiosamente inusitada.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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