sábado, 18 de janeiro de 2020

Rosa, Vegetal de Sangue, de Carlos Heitor Cony - RESENHA #120

Devia estar ainda no ensino médio quando li Rosa, Vegetal de Sangue pela primeira vez. Lembro de ter ficado tão impressionado, que desejei ler outras coisas do autor imediatamente, mas, por uma ou muitas casualidades, até hoje nunca li novos títulos do Cony. Há dois anos, quando ele morreu, fiquei pensando: “Puxa! Tenho negligenciado aquele que talvez fosse meu prosador contemporâneo favorito”. Daí, antes de passar à leitura de outras obras suas, decidi que teria de reler e reavaliar as impressões que me foram causadas por aquela primeira experiência.

A princípio de conversa, não entendo por que classificam Rosa, Vegetal de Sangue (1979) como obra infantojuvenil. Trata-se de uma novela baseada numa tragédia verídica. O tema, a linguagem, a proposta mesmo da narrativa seguem um modelo mais condizente com o público adulto. Esta impressão, que já tivera na primeira leitura, reforçou-se ainda mais na releitura.

Rosa Maria é uma jovem de vinte anos que mora com sua família num subúrbio carioca. Eles vivem de uma pensão miserável a que o pai de Rosa teve direito após uma doença cardíaca. A fim de melhorar a situação financeira da casa, Rosa abandona os estudos e vai trabalhar de recepcionista num jornal. É lá que conhece Lobianco, jornalista de meia-idade responsável pela coluna internacional.

Lobianco oferece seu apoio à garota, providenciando uma moradia mais cômoda à família dela, além de responsabilizar-se pelos estudos de Almir, irmão caçula de Rosa. Os pais desta acabam fazendo vista grossa ao fato de Lobianco ser casado, satisfeitos com os benefícios proporcionados pelo amante da filha. Mas Lobianco, desejoso de possuir Rosa mais ao seu dispor, obriga a jovem a pedir demissão e a leva para um apartamento onde ela passa a viver sozinha.

Com a maior parte do tempo sem nada para fazer, Rosa começa a escrever um diário, onde desabafa principalmente seu sentimento de solidão, ao ponto de sentir-se um vegetal naquele isolamento. Mas, pouco a pouco, outras pessoas vão entrando em sua vida, e ela vai sentindo cada vez mais necessidade de viver; até que uma fatalidade acontece, e seu diário é logo descoberto como prova fundamental para a solução de um crime.

Rosa, Vegetal de Sangue é daquelas experiências breves, mas impactantes. Os primeiros capítulos já cativam o leitor de tal forma, que é praticamente impossível deixar o livro de lado. Além do que, a trama é movida por uma linguagem que nos leva a refletir diversas questões, sobretudo as relações artificiais.

Algumas passagens do livro são angustiantes, daquelas que podem provocar incômodo em leitores mais sensíveis. Contudo, há tanta verdade e franqueza em cada página, especialmente nos registros da protagonista, que se torna inevitável uma autoanálise sobre quem nós somos, quem amamos e quem realmente queremos do nosso lado.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Psicose (Psycho), de Robert Bloch - RESENHA #119

É sempre maravilhoso quando temos boas surpresas fora da nossa zona de conforto. É o que eu sempre digo: qualquer gênero pode ser incrível, dependendo de quem o executa. O norte-americano Robert Bloch já é minha primeira descoberta do ano.

Psicose (1959) é amplamente conhecido graças ao cultuado filme de Hitchcock, que eu felizmente não tinha assistido. Isso certamente contribuiu para instigar minha curiosidade durante a leitura do romance. Mas o texto de Bloch é tão cheio de sutilezas, que, penso, filme nenhum poderia ombreá-lo.

Um escritor de talento não carece unicamente de um bom argumento, como de fato nos oferece o enredo de Psicose. É preciso uma boa técnica de condução da narrativa, a criação de um estilo ou de uma atmosfera que ponham o leitor em conexão com a trama e seus personagens. Há diversas estratégias para alcançar esse tipo de realização. O caminho escolhido por Robert Bloch foi pois o da linguagem: o esmero de seu texto, certamente melhor disposto no original, chama atenção pelo cuidado e zelo com que foi desenvolvido.

Apesar das muitas qualidades de Psicose, não deixa de ser verdade o fato de que a leitura do livro, ignorando-se todos os pormenores da trama, torna-se muito mais interessante, observação válida para qualquer obra de suspense. De todo modo, tentarei apresentar um breve resumo, a fim de deixá-los mais inteirados do que se trata.

Norman Bates é um quarentão que, ainda solteiro, vive na companhia de sua mãe, uma senhora idosa a quem pertence o Bates Motel, dirigido pelo filho. Eles vivem sozinhos e têm uma relação um tanto conflituosa, pois a mãe de Norman, bastante dominadora, exerce uma forte pressão psicológica sobre o filho que, introvertido e recluso, dedica-se basicamente à leitura de livros sobre ocultismo.

Numa noite chuvosa, Mary Crane, após ter errado o caminho que seguia, decide hospedar-se no Bates Motel. Ela trabalhava para uma firma de corretagem, de onde roubou quarenta mil dólares, com os quais pretendia saldar as dívidas de Sam, seu namorado. Usando um nome falso, ela faz seu registro, pretendendo encontrar Sam no dia seguinte, mas desde então nunca mais é vista.

Lila Crane, a irmã de Mary, decide procurar Sam, que de nada sabia. A firma para a qual Mary trabalhava contrata um detetive, o senhor Milton Arbogast, que convence Lila a não dar parte às autoridades do desaparecimento da irmã, evitando assim um escândalo e a prisão de Mary. Porém, durante as investigações, Arbogast também desaparece. Tudo leva a crer que a chave do mistério está no Bates Motel, mas Lila e Sam não têm como prová-lo.

A narrativa de Psicose é de um ritmo eletrizante, daqueles que levam a gente a ler alguns capítulos a mais do que o pretendido. Trata-se de uma leitura inevitavelmente rápida por vários motivos: qualidade do texto, construção da trama, psicologia dos personagens, além de recursos eficientes que mantêm o suspense e a curiosidade do leitor.

O autor escreveu ainda duas sequências para a trama: Psycho II (1982) e Psycho House (1990), que infelizmente ainda não ganharam tradução para o português. Não sou muito otimista em relação a continuações, mas admito que adoraria ler algo mais do senhor Robert Bloch. Alguma sugestão?

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Os Homens de Sangue, de Vicente Felix de Castro - RESENHA #118

Vicente Felix de Castro foi um dos pioneiros do romance de costumes em São Paulo. Escritor provinciano, empenhou-se em divulgar seus trabalhos literários, seja através do jornal, seja pela difícil publicação em livro. Os Homens de Sangue (1873), romance de caráter abolicionista, foi sua última obra publicada em vida.

Mesmo sendo adepto dos modelos românticos, Vicente Felix de Castro realiza forte crítica social, denunciando os abusos sofridos pelos escravos, o despotismo dos titulares do império e a impunidade nas províncias. Seu estilo é de extrema simplicidade, o que calharia bem perante seu público-alvo: as classes populares.

Consciente de suas limitações estilísticas, o autor classifica seu romance de tosco, sempre recorrendo à boa indulgência do leitor. Mas não confunda-se aqui simplicidade com desleixo. O texto do romancista é bem trabalhado em diversos aspectos, sobressaindo-se o tom de oralidade, que chega a lembrar a prosa sertaneja de Bernardo Guimarães.

Os Homens de Sangue possui aquele agradável tom de conversa, prezando por uma fluência que se ampara não poucas vezes na construção de diálogos leves e esclarecedores. Quase não há espaço para descrições ou digressões prolongadas, privilegiando-se o ritmo da narrativa, que é sempre ágil e sem grandes rodeios.

Na trama, temos Ricardo de Lima, jovem enjeitado que, logo no começo do romance, nos é apresentado como sócio de um traficante de escravos. Após uma negociação na fazenda do Campo Alegre, Ricardo é contratado como secretário particular do comendador Carlos de Almeida, homem ambicioso que rivaliza em importância com o barão do Taquaral.

Este barão, por sua vez, igualmente ambicioso, esconde um crime em seu passado, o que nos leva a outro núcleo da trama composto pela família de Leonardo, um velho pescador que no passado ajudara ao barão, sendo mais tarde desprezado por este. Leonardo, suspeitando a criminalidade do barão, decide buscar provas para denunciar o titular às autoridades.

No Campo Alegre, Ricardo toma conhecimento do cruel tratamento dado aos escravos do comendador, principalmente pelos relatos de Pai João Congo, negro cuja esposa e filho haviam sucumbido à violência de Almeida. Mas neste mesmo ambiente hostil temos a presença de Carlina, a filha comendador, de quem Ricardo se enamora.

Se por um lado o senhor do Campo Alegre é desumano com seus escravos, o barão do Taquaral não o faz por menos em sua propriedade. Alfredo, secretário do barão e amigo de Ricardo, alia-se a este num louvável desideratum: defender as vítimas da escravidão de seus inexoráveis senhores. Mas, ao tempo que este plano se formula, o passado de Ricardo vem à tona na pessoa do conselheiro André de Melo, que parece saber tudo sobre a origem do jovem enjeitado.

É nesse emaranhado de situações e personagens secundários que a história segue, num maniqueísmo um tanto pueril, permeada sempre por excessos típicos da escola romântica. O que mais incomoda, contudo, é a gama do autor por tornar tudo colorido nos capítulos finais, usando de reviravoltas inverossímeis e pouco inteligentes.

O romance de Vicente Felix de Castro é um ótimo passatempo para quem, como eu, aprecia a literatura oitocentista. Além do inquestionável mérito de ser uma obra abolicionista que entretinha relações com leitores comuns do povo, o livro transparece a dedicação e o empenho de um grande entusiasta do fazer literário.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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