Júlia Lopes
de Almeida está se tornando minha musa literária favorita, uma vez que, a cada
nova leitura que realizo de sua vasta obra, fico mais encantado com o talento
dessa escritora primorosa que esteve por tão largo tempo injustamente esquecida
dos leitores brasileiros.
Desta vez li
seu primeiro romance, o subestimado Memórias
de Marta (1888), que muito me surpreendeu, pois não contava que D. Júlia já
desse mostras de tanta habilidade artística em sua estreia com narrativas mais
longas. A obra já se inicia revelando técnicas avançadas para a época, que
fazem da autora de A Falência nossa
primeira prosadora “pré-modernista”.
As Memórias de Marta compreendem o relato
de uma mulher madura sobre as dificuldades e restrições enfrentadas desde a
infância até a vida adulta. Marta nascera num lar razoavelmente abastado, mas
um roubo sofrido por seu pai durante uma viagem complica a situação financeira
da família. A morte deste, pouco depois, rebaixa a viúva e a órfã à condição de
miséria, obrigando a senhora Marta (mãe e filha compartilham do mesmo nome) a
trabalhar como engomadeira.
A narradora,
além de comentar o choque da mudança para um cortiço, descreve a nova moradia
com propriedade, ressaltando os moradores que ocupam o mesmo aglomerado. D. Júlia
antecipa, de certa forma, o que Aluísio Azevedo faria em sua obra-prima, O Cortiço (1890). A autora põe mesmo uns
toques naturalistas em determinadas passagens, como também na criação de tipos:
a ilhoa, a lavadeira bêbada, o mulatinho Lucas, o tio Bernardo, os dois rapazes
tiroleses que “viviam juntos”, etc.
Marta
detém-se mais sobre a família da ilhoa, pois brincava com os filhos desta. A
autora aproveita o ensejo para denunciar a exploração e a marginalização de
crianças, tema que seria recorrente em suas obras futuras, como Cruel Amor. Carolina, filha mais velha
da ilhoa, é obrigada a trabalhar desde cedo, mas chama mais atenção o caso de
seu irmão Maneco, que é alcoolizado pelo vendeiro do cortiço.
A
protagonista confidencia a revolta provocada pela pobreza, principalmente
quando comparada ao luxo em que viviam as filhas das freguesas de sua mãe. A
entrada de Marta para a escola, no entanto, será o primeiro movimento de reação
àquelas circunstâncias e, a partir daí, novas possibilidades se abrirão para
mãe e filha.
O livro de
D. Júlia é todo escrito num delicioso tom memorialístico, onde acompanhamos a
trajetória de Marta, que encara suas contingências com uma natureza sensível e
frágil. A personagem possui muitos complexos e tenta viver/encaixar-se numa
sociedade que, para ela, representa um padrão inatingível. A passagem da
juventude para a vida adulta é um dos momentos mais interessantes da obra,
envolvendo dilemas e lances amorosos que repercutirão significativamente no
futuro da protagonista.
Foi de fato
uma enorme surpresa ter encontrado uma obra desse porte na estreia de D. Júlia
como romancista. Em menos de duzentas páginas, a autora nos entrega matéria
suficiente para entreter e reverberar. A prosadora de Memórias de Marta não precisou engatinhar, andou livremente desde
seus primeiros passos.
Avaliação: ★★★★★
Daniel Coutinho
***
Parece maravilhoso, assim como os 4 livros dela que li em 2020, incluindo Cruel Amor, da antiga coleção Saraiva. E pela sua resenha, preciso tratar de comprá-lo rápido. E lá vou eu para a Estante Virtual rsrs Obrigado pelas indicações.
ResponderExcluirEu também li quatro livros dela. Quais foram os seus? Este ano devo ler "A Família Medeiros". Imagino que seja tão bom quanto os outros. Boa sorte na procura deste "Memórias de Marta". É um livro realmente admirável! Abraço ;)
ExcluirOi Daniel! Li A intrusa, Falência, A viúva Simões e Cruel Amor, este na coleção Saraiva. Uma pena só ter ele na coleção.
ResponderExcluirImagino que Memórias de Marta deve ser raro.
Meu exemplar é da extinta editora Mulheres, que reeditou boa parte da obra da Júlia. Atualmente existe uma edição nova pela editora Delirium. E também é possível achar em PDF.
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