Nós, que pertencemos a esta categoria rara e
sinistra dos “leitores”, estamos sujeitos a passar por experiências tenebrosas.
Nem só de Machado de Assis viverá o homem, não é mesmo? Sim, este é o prelúdio
de uma resenha daquelas!
Não à toa mencionei aqui Machado de Assis. Entre
2014 e 2015 realizei uma de minhas empreitadas literárias mais ambiciosas: ler
os contos completos do bruxo do Cosme Velho. A princípio, hesitei, imaginando o
quão cansativo seria ler 190 contos consecutivos, mas a ideia era mais
empolgante que assustadora e, por isso, resolvi-me a executá-la. O resultado
foi mais surpreendente do que o esperado. Ficava assombrado com a capacidade
que Machado tinha para contar histórias curtas; por diversas vezes, era uma
surpresa atrás da outra. Os temas eram sempre tão variados, de modo que a
leitura nunca parecia maçante ou repetitiva.
Mas não é interesse desta resenha enaltecer o
criador de Capitu; tampouco confrontar seu talento com o de Nelson Rodrigues. A
comparação me foi sugerida pela semelhança das experiências no que diz respeito
à quantidade de contos lidos. Ainda que A
Vida como Ela É... não atenda à mesma proporção (a coletânea de Nelson
contém 100 histórias), nem por isso pode ser considerada obra de pouco fôlego.
Decidi ler os contos de Nelson Rodrigues porque
os supunha leves; estava um tanto impressionado com as misérias de guerra relatadas
n’A Retirada da Laguna, do Visconde
de Taunay. Mal sabia eu que de “leve” o livro só tinha a escrita, que chega a
ser primária; e menos ainda que encontraria misérias em número maior que as do
episódio da Guerra do Paraguai. O estilo tragicômico do autor não era
exatamente o que eu imaginava, mas esta circunstância foi o que menos me
desgostou.
Tendo publicado centenas desses contos num
período de aproximadamente dez anos (desconheço a periodicidade), talvez que
Nelson pensasse que os leitores não lembrariam das histórias publicadas há um
ano, por exemplo; assim, não vê problema em repeti-las com poucas alterações;
mas algumas histórias são recontadas tantas vezes, que acredito muito no fato
de que essas “reescritas” aconteciam frequentemente num mesmo ano. Que os
leitores da coluna não lembrassem, posso entender perfeitamente! O imperdoável
mesmo é o péssimo trabalho de seleção, realizado em 1961, das cem “melhores”
histórias. Foi esta antologia que li.
Como se não bastasse o fato do autor ter
incluído nessa seleção várias versões de uma mesma história, ele não se deu ao
trabalho sequer de ordená-las numa disposição em que isso ficasse menos perceptível.
Em algumas ocasiões, a história seguinte é justamente a anterior, se é que me
entendem rs! Essas constantes repetições/variações de um mesmo tema denotam que
esses contos foram escritos ligeiramente, quase de improviso e com pouquíssima
criatividade, para não dizer nenhuma rs.
Os personagens, em sua maioria, dariam conta do
maior sanatório do país; ainda que, curiosamente, a psiquiatria seja desdenhada
em vários contos. Nelson Rodrigues parecia ser maníaco por alguns temas, dentre
os quais: obsessão, assassinato, traição e suicídio. Ouso dizer que todos os
contos do livro se enquadram num desses quatro temas, e não poucas vezes em
mais de um deles. Mas o tema mais recorrente é, sem dúvida, a “traição”: seja
entre amigos, irmãos, casais, pais e filhos, etc. Dentre essas traições, as de
infidelidade conjugal parecem ter um apreço especial por parte do autor.
Não bastassem os temas serem repetitivos, a
própria escrita é sempre a mesma. É algo mais ou menos assim...
[Atenção! O texto abaixo é uma
imitação proposital do “estilo” do contista Nelson Rodrigues.]
Tavares,
bebendo com Paiva, revela ao amigo: “Tenho que te contar uma coisa sobre tua
mulher”. O outro, meio confuso, reage. “Batata? Do que se trata?”. Tavares
pigarreia e solta: “É o cúmulo que só tu ainda não saibas! Tua mulher te trai com
o Hermes. Saem de automóvel e outros bichos.”. Paiva não podia acreditar no que
o amigo dizia de Lucila. Sua esposa, tão adorável, parecia ser a mulher mais
correta. Em solteira, era a pequena mais direita do Rio de Janeiro, segundo
diziam. “Esta pequena é pra casar”, dizia seu pai. Casados, tiveram uma
perfeita lua de mel na montanha. Hermes, então, amigo de dentro da sua casa; muito
sorridente, tinha sempre o ar de quem lavou o rosto há dez minutos. Não podia
ser verdade. “Escuta, Tavares. Sempre te considerei amigo do peito. Por isso, é
bom que tenhas provas da tua acusação, porque senão, eu juro que te mato!”.
Vocês que leram o livro devem lembrar muito bem
dessa história, até porque ela é recontada uma boa porção de vezes rs. A quem
ainda não leu, advirto: é daí pra pior!
A Vida
como Ela É..., a meu ver, deveria ter morrido no jornal.
Acredito que o próprio Nelson Rodrigues pensasse isso enquanto escrevia as
histórias. É surpreendente a repercussão da coluna, especialmente pelas várias
adaptações para rádio, TV e cinema. Não digo que a ideia do livro seja de todo
ruim. A seleção é que está malfeita. Não duvido que Nelson Rodrigues guardasse
os recortes de sua coluna, selecionasse cem deles aleatoriamente, entregasse-os
ao editor e dissesse, enquanto fumava um cigarro: “Taí, te vira!”.
Embora, no geral, todas as histórias possam ser
facilmente esquecidas, seria injusto de minha parte não destacar as que me
pareceram as melhores do livro, para não dizer as menos ruins rs. São elas: O
escravo etíope; O monstro; Noiva da morte; O sacrilégio; Uma senhora honesta;
Cemitério de bonecas; O gato cego; A morta; O menorzinho; Gagá; Justo pelo
pecador; e Caixa de Sapato. Uma coletânea com esses doze contos dispensaria,
sem grandes prejuízos, a inserção dos outros oitenta e oito rs!
As histórias d’A Vida como Ela É... têm quase sempre o mesmo número de páginas,
pois eram escritas sob medida para a coluna de Nelson Rodrigues no Última Hora. Por esse motivo, em vários
dos contos, o autor descreve situações inúteis, ou seja, que não são
posteriormente desenvolvidas e que só serviam para preencher o espaço reservado
no jornal.
Acredito que mencionei todos os motivos que me
fizeram desgostar deste que é, incontestavelmente, um dos piores livros que já
li na vida. Uma pena que minha primeira incursão à obra de Nelson Rodrigues
tenha sido assim tão desagradável! Verdade seja dita: sua celebridade deve-se
mais ao dramaturgo. Tenho aqui Vestido de
Noiva ainda para ler. Torço para que, no teatro, possa encontrar esse
grande Nelson de que tanto falam.
Avaliação: ★
Daniel Coutinho
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