sábado, 5 de maio de 2018

A Vida como Ela É..., de Nelson Rodrigues - RESENHA #66

Nós, que pertencemos a esta categoria rara e sinistra dos “leitores”, estamos sujeitos a passar por experiências tenebrosas. Nem só de Machado de Assis viverá o homem, não é mesmo? Sim, este é o prelúdio de uma resenha daquelas!

Não à toa mencionei aqui Machado de Assis. Entre 2014 e 2015 realizei uma de minhas empreitadas literárias mais ambiciosas: ler os contos completos do bruxo do Cosme Velho. A princípio, hesitei, imaginando o quão cansativo seria ler 190 contos consecutivos, mas a ideia era mais empolgante que assustadora e, por isso, resolvi-me a executá-la. O resultado foi mais surpreendente do que o esperado. Ficava assombrado com a capacidade que Machado tinha para contar histórias curtas; por diversas vezes, era uma surpresa atrás da outra. Os temas eram sempre tão variados, de modo que a leitura nunca parecia maçante ou repetitiva.

Mas não é interesse desta resenha enaltecer o criador de Capitu; tampouco confrontar seu talento com o de Nelson Rodrigues. A comparação me foi sugerida pela semelhança das experiências no que diz respeito à quantidade de contos lidos. Ainda que A Vida como Ela É... não atenda à mesma proporção (a coletânea de Nelson contém 100 histórias), nem por isso pode ser considerada obra de pouco fôlego.

Decidi ler os contos de Nelson Rodrigues porque os supunha leves; estava um tanto impressionado com as misérias de guerra relatadas n’A Retirada da Laguna, do Visconde de Taunay. Mal sabia eu que de “leve” o livro só tinha a escrita, que chega a ser primária; e menos ainda que encontraria misérias em número maior que as do episódio da Guerra do Paraguai. O estilo tragicômico do autor não era exatamente o que eu imaginava, mas esta circunstância foi o que menos me desgostou.

Tendo publicado centenas desses contos num período de aproximadamente dez anos (desconheço a periodicidade), talvez que Nelson pensasse que os leitores não lembrariam das histórias publicadas há um ano, por exemplo; assim, não vê problema em repeti-las com poucas alterações; mas algumas histórias são recontadas tantas vezes, que acredito muito no fato de que essas “reescritas” aconteciam frequentemente num mesmo ano. Que os leitores da coluna não lembrassem, posso entender perfeitamente! O imperdoável mesmo é o péssimo trabalho de seleção, realizado em 1961, das cem “melhores” histórias. Foi esta antologia que li.

Como se não bastasse o fato do autor ter incluído nessa seleção várias versões de uma mesma história, ele não se deu ao trabalho sequer de ordená-las numa disposição em que isso ficasse menos perceptível. Em algumas ocasiões, a história seguinte é justamente a anterior, se é que me entendem rs! Essas constantes repetições/variações de um mesmo tema denotam que esses contos foram escritos ligeiramente, quase de improviso e com pouquíssima criatividade, para não dizer nenhuma rs.

Os personagens, em sua maioria, dariam conta do maior sanatório do país; ainda que, curiosamente, a psiquiatria seja desdenhada em vários contos. Nelson Rodrigues parecia ser maníaco por alguns temas, dentre os quais: obsessão, assassinato, traição e suicídio. Ouso dizer que todos os contos do livro se enquadram num desses quatro temas, e não poucas vezes em mais de um deles. Mas o tema mais recorrente é, sem dúvida, a “traição”: seja entre amigos, irmãos, casais, pais e filhos, etc. Dentre essas traições, as de infidelidade conjugal parecem ter um apreço especial por parte do autor.

Não bastassem os temas serem repetitivos, a própria escrita é sempre a mesma. É algo mais ou menos assim...

[Atenção! O texto abaixo é uma imitação proposital do “estilo” do contista Nelson Rodrigues.]

Tavares, bebendo com Paiva, revela ao amigo: “Tenho que te contar uma coisa sobre tua mulher”. O outro, meio confuso, reage. “Batata? Do que se trata?”. Tavares pigarreia e solta: “É o cúmulo que só tu ainda não saibas! Tua mulher te trai com o Hermes. Saem de automóvel e outros bichos.”. Paiva não podia acreditar no que o amigo dizia de Lucila. Sua esposa, tão adorável, parecia ser a mulher mais correta. Em solteira, era a pequena mais direita do Rio de Janeiro, segundo diziam. “Esta pequena é pra casar”, dizia seu pai. Casados, tiveram uma perfeita lua de mel na montanha. Hermes, então, amigo de dentro da sua casa; muito sorridente, tinha sempre o ar de quem lavou o rosto há dez minutos. Não podia ser verdade. “Escuta, Tavares. Sempre te considerei amigo do peito. Por isso, é bom que tenhas provas da tua acusação, porque senão, eu juro que te mato!”.

Vocês que leram o livro devem lembrar muito bem dessa história, até porque ela é recontada uma boa porção de vezes rs. A quem ainda não leu, advirto: é daí pra pior!

A Vida como Ela É..., a meu ver, deveria ter morrido no jornal. Acredito que o próprio Nelson Rodrigues pensasse isso enquanto escrevia as histórias. É surpreendente a repercussão da coluna, especialmente pelas várias adaptações para rádio, TV e cinema. Não digo que a ideia do livro seja de todo ruim. A seleção é que está malfeita. Não duvido que Nelson Rodrigues guardasse os recortes de sua coluna, selecionasse cem deles aleatoriamente, entregasse-os ao editor e dissesse, enquanto fumava um cigarro: “Taí, te vira!”.

Embora, no geral, todas as histórias possam ser facilmente esquecidas, seria injusto de minha parte não destacar as que me pareceram as melhores do livro, para não dizer as menos ruins rs. São elas: O escravo etíope; O monstro; Noiva da morte; O sacrilégio; Uma senhora honesta; Cemitério de bonecas; O gato cego; A morta; O menorzinho; Gagá; Justo pelo pecador; e Caixa de Sapato. Uma coletânea com esses doze contos dispensaria, sem grandes prejuízos, a inserção dos outros oitenta e oito rs!

As histórias d’A Vida como Ela É... têm quase sempre o mesmo número de páginas, pois eram escritas sob medida para a coluna de Nelson Rodrigues no Última Hora. Por esse motivo, em vários dos contos, o autor descreve situações inúteis, ou seja, que não são posteriormente desenvolvidas e que só serviam para preencher o espaço reservado no jornal.

Acredito que mencionei todos os motivos que me fizeram desgostar deste que é, incontestavelmente, um dos piores livros que já li na vida. Uma pena que minha primeira incursão à obra de Nelson Rodrigues tenha sido assim tão desagradável! Verdade seja dita: sua celebridade deve-se mais ao dramaturgo. Tenho aqui Vestido de Noiva ainda para ler. Torço para que, no teatro, possa encontrar esse grande Nelson de que tanto falam.

Avaliação:

Daniel Coutinho

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