terça-feira, 23 de novembro de 2021

George, de Alex Gino - RESENHA #170

Um dos maiores privilégios da literatura contemporânea é o tratamento de temas que no passado eram totalmente silenciados. A transexualidade é de fato um assunto delicado até para os nossos dias, que dirá para os séculos passados. Ainda há muitas controvérsias no que se refere às pessoas “transgênero”, mas o crescente interesse sobre questões de identidade de gênero e orientação sexual tem aclarado muitos pontos obscuros e colaborado para uma melhor compreensão da população LGBT+.

Alex Gino, ficcionista estadunidense, apresenta-nos George (2015), cuja proposta é bastante ousada: uma narrativa sobre uma criança trans. A premissa do livro interessou-me instantaneamente. Desejava conferir de perto como tal história fora desenvolvida, antevendo as múltiplas e inevitáveis dificuldades de se tratar um assunto de alta complexidade com o público infantojuvenil.

Preciso confessar que fiquei deveras surpreendido com a habilidade com que Alex Gino desempenhou a escrita de George. O livro está um primor. O narrador em 3ª pessoa não se acanha em tratar George como o que é: uma menina. A simplicidade e a naturalidade com que ele encara a complexa condição de sua protagonista são reconfortantes, pois conferem ao texto uma leveza que se mantém do início ao fim.

No enredo, a pequena George, de aproximadamente dez anos, sonha poder interpretar a memorável aranha de A Teia de Charlotte, um clássico de E. B. White. No entanto, George depara-se com um empecilho: todos pensam que ela é um menino, pois seu corpo é biologicamente masculino. Quando ela se candidata ao papel, a conservadora senhora Udell enfatiza que George, a despeito de seu talento, só poderia fazer papéis “de meninos”.

A partir de situações cotidianas, Alex consegue transmitir ao leitor a insatisfação de George por não poder ser quem ela é de verdade. A garota, por exemplo, precisa esconder suas revistas adolescentes, pois eram voltadas para o público feminino. Além disso, mesmo sendo a melhor amiga de Kelly, ela é encarada como um “melhor amigo”, sendo privada portanto de demonstrar com franqueza sua verdadeira personalidade.

Alex, sempre com muita sutileza, ainda aborda questões como aceitação da família, bullying na escola e representatividade. Mesmo o processo de “transição” da personagem dá-se muito naturalmente. Mas não quero me aprofundar nesse assunto para não comprometer a experiência de leitura de ninguém.

Outro fator importante na obra é o esclarecimento que se faz da diferença entre o “homossexual” e o “transgênero”. Em determinado momento, George é encarada por alguns personagens como um “menino gay”, o que a deixa um tanto aborrecida, já que sua sexualidade ainda não aflorou. Nesse ponto, entendemos que o que a protagonista busca afirmar é sua “identidade de gênero”, cujo conceito ainda é bastante confundido com “orientação sexual”.

Por tudo que citei nesta resenha, George é sem dúvida um livro incrível, e que precisa ser mais difundido entre jovens e adultos. Acabei de saber que brevemente a obra será reeditada com um novo título, Melissa, atendendo a um desejo de Alex e de muitos leitores que ficaram inconformados com o destaque para o nome masculino. Eu, particularmente, prefiro o título original, pois, a meu ver, ele transmite melhor a temática do livro, que é justamente a insatisfação por ser “George”, como também a trajetória da personagem até finalmente tornar-se “Melissa”. Mas, com este ou aquele título, a verdade é que o livro de Alex Gino não deixa de ser o que é: simplesmente maravilhoso.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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