quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Jardim Secreto (The Secret Garden), de Frances Hodgson Burnett - RESENHA #143

Cada vez me convenço mais de que tenho uma queda irresistível por clássicos infantis. Certamente por isso O Meu Pé de Laranja Lima, O Pequeno Príncipe e Marcelino Pão e Vinho estão entre os meus livros favoritos da vida.

Porém, ao mesmo tempo em que experimento um profundo deleite por essas leituras, lamento não ter tido uma infância/adolescência assessorada por um mentor literário. Fico imaginando o quanto esses livros teriam colaborado com minha formação pessoal/intelectual. Mas a vida de ninguém é perfeita, não é mesmo? E dou-me por satisfeito em estar lendo essas histórias antes tarde do que nunca.

O Jardim Secreto (1911), da inglesa Frances Hodgson Burnett, é mais um desses clássicos imortais que encantaram várias gerações de crianças no mundo todo. Mary, Colin e Dickon protagonizam uma aventura que mistura ecologia e superação, mostrando-nos como a natureza e o poder das palavras podem ser eficientes ao ponto de transformar vidas.

A pequena Mary é filha de ingleses residentes na Índia. Negligenciada pelos pais, a garota cresce mimada e malcriada, achando que todos são obrigados a satisfazê-la. Com a morte dos pais, vitimados pelo cólera, Mary é mandada para a mansão de um tio em Yorkshire, na Inglaterra. Mas o senhor Archibald Craven, além de corcunda, tornara-se bastante arredio após o falecimento da esposa, isto há dez anos.

Sentindo-se sozinha na enorme mansão de cem quartos, quase todos desabitados, Mary busca entreter-se pelos jardins que circundam a propriedade, e acaba descobrindo sobre um no qual todos são proibidos de entrar. A criada Martha confidencia à menina a história de que o senhor Craven fechara o tal jardim e enterrara a chave, pois sua esposa morrera em decorrência de um acidente acontecido lá.

Tal revelação aguça a curiosidade infantil, decidindo Mary a encontrar uma maneira de penetrar no jardim secreto, mas há outro mistério que também estimula sua imaginação: o estranho barulho de uma criança chorando pela mansão. Haveria mais alguém na casa?

Frances Hodgson Burnett realiza um trabalho quase didático em sua obra. Os ensinamentos direcionados às crianças são recomendadíssimos e contemplam métodos que são aproveitáveis até hoje. O incentivo à atividade física e a uma boa alimentação demonstra um louvável interesse da autora pela saúde física e mental de seus pequenos leitores.

Ao final do livro, deparamo-nos com aspectos religiosos/ritualísticos consequentes da fé cristã professada pela autora, mas, embora o nome de Cristo seja até mencionado numa cançoneta, o que prevalece no livro (referente a este ponto) é o que Colin chama de “Mágica”, uma metáfora devidamente explicada pela mãe de Dickon num dos capítulos finais.

Recomendo a leitura deste livro sem ressalvas. A tradução que li (Marcos Maffei, Editora 34) tem alguns probleminhas, mas nada que comprometa o ritmo maravilhoso da história, muito menos o brilho e a pureza que apreciamos em praticamente todas as páginas.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #142

Júlia Lopes de Almeida está se tornando minha musa literária favorita, uma vez que, a cada nova leitura que realizo de sua vasta obra, fico mais encantado com o talento dessa escritora primorosa que esteve por tão largo tempo injustamente esquecida dos leitores brasileiros.

Desta vez li seu primeiro romance, o subestimado Memórias de Marta (1888), que muito me surpreendeu, pois não contava que D. Júlia já desse mostras de tanta habilidade artística em sua estreia com narrativas mais longas. A obra já se inicia revelando técnicas avançadas para a época, que fazem da autora de A Falência nossa primeira prosadora “pré-modernista”.

As Memórias de Marta compreendem o relato de uma mulher madura sobre as dificuldades e restrições enfrentadas desde a infância até a vida adulta. Marta nascera num lar razoavelmente abastado, mas um roubo sofrido por seu pai durante uma viagem complica a situação financeira da família. A morte deste, pouco depois, rebaixa a viúva e a órfã à condição de miséria, obrigando a senhora Marta (mãe e filha compartilham do mesmo nome) a trabalhar como engomadeira.

A narradora, além de comentar o choque da mudança para um cortiço, descreve a nova moradia com propriedade, ressaltando os moradores que ocupam o mesmo aglomerado. D. Júlia antecipa, de certa forma, o que Aluísio Azevedo faria em sua obra-prima, O Cortiço (1890). A autora põe mesmo uns toques naturalistas em determinadas passagens, como também na criação de tipos: a ilhoa, a lavadeira bêbada, o mulatinho Lucas, o tio Bernardo, os dois rapazes tiroleses que “viviam juntos”, etc.

Marta detém-se mais sobre a família da ilhoa, pois brincava com os filhos desta. A autora aproveita o ensejo para denunciar a exploração e a marginalização de crianças, tema que seria recorrente em suas obras futuras, como Cruel Amor. Carolina, filha mais velha da ilhoa, é obrigada a trabalhar desde cedo, mas chama mais atenção o caso de seu irmão Maneco, que é alcoolizado pelo vendeiro do cortiço.

A protagonista confidencia a revolta provocada pela pobreza, principalmente quando comparada ao luxo em que viviam as filhas das freguesas de sua mãe. A entrada de Marta para a escola, no entanto, será o primeiro movimento de reação àquelas circunstâncias e, a partir daí, novas possibilidades se abrirão para mãe e filha.

O livro de D. Júlia é todo escrito num delicioso tom memorialístico, onde acompanhamos a trajetória de Marta, que encara suas contingências com uma natureza sensível e frágil. A personagem possui muitos complexos e tenta viver/encaixar-se numa sociedade que, para ela, representa um padrão inatingível. A passagem da juventude para a vida adulta é um dos momentos mais interessantes da obra, envolvendo dilemas e lances amorosos que repercutirão significativamente no futuro da protagonista.

Foi de fato uma enorme surpresa ter encontrado uma obra desse porte na estreia de D. Júlia como romancista. Em menos de duzentas páginas, a autora nos entrega matéria suficiente para entreter e reverberar. A prosadora de Memórias de Marta não precisou engatinhar, andou livremente desde seus primeiros passos.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 15 de agosto de 2020

A Beata Maria do Egito, de Rachel de Queiroz - RESENHA #141

Logo em seguida à leitura de Lampião, pela qual pude constatar o talento de Rachel enquanto dramaturga, passei à segunda e última peça da grande autora cearense: A Beata Maria do Egito (1958), que me agradou ainda mais que a anterior.

Publicada cinco anos depois de Lampião, A Beata Maria do Egito revela uma teatróloga mais concisa e exuberante na realização de sua dramaturgia. Inspirada na história de uma religiosa que vendeu o próprio corpo para obter liberdade, a peça nos transporta para uma delegacia de polícia no interior do Ceará dos tempos do Padre Cícero.

Inconformado com a eleição de Franco Rabelo, o Padre Cícero se rebela contra o governo, valendo-se do auxílio de cangaceiros e jagunços. Carecendo de fortificar ainda mais o seu exército particular no Juazeiro, o padre convoca o apoio de seus incontáveis fiéis. Dentre eles destaca-se Maria, uma jovem beata, tida como santa milagreira, que peregrina pelo sertão em busca de homens que se aliem à causa do seu mestre.

As autoridades do estado, preocupadas com a grande adesão conquistada pela beata, decidem prendê-la, ficando a religiosa sob os cuidados do tenente João. Ao ver aquela mulher bela e jovem, João não compreende como a mesma possa se submeter a uma vida penitente, peregrina e cheia de restrições.

A grande força dramática da peça está na paixão que a beata desperta no coração do tenente. Este, dividido entre o cumprimento do dever e as inclinações da carne, trava uma difícil relação de amor e ódio com Maria que, mesmo revestida de fanatismo religioso, possui encantos que tiram o sono do tenente. À parte deste conflito emocional, a pressão popular pela liberdade da beata dificulta ainda mais toda esta situação.

Eis uma peça praticamente irretocável. Cada um dos três atos é brilhantemente desenvolvido e com uma carga dramática impressionante. Os diálogos são admiráveis e conduzidos com maestria, de modo que, quando lidos, já antecipam a forte impressão que seguramente causam em cena.

Para mim, apenas a figura do coronel Chico Lopes não teve um desenvolvimento tão satisfatório quanto os demais personagens. Ainda que representasse um papel importante enquanto autoridade local, sua participação na peça não reverbera desdobramentos notáveis. A dramaticidade fica por conta dos outros três personagens: o tenente, a beata e o cabo Lucas, além da voz popular, que nos aparece de forma indireta.

De todo modo, A Beata Maria do Egito é sem dúvida uma pérola do teatro cearense e, com ela, temos mais uma prova do inquestionável talento de nossa eterna Rachelzinha.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Lampião, de Rachel de Queiroz - RESENHA #140

Depois de ter esgotado a obra romanesca de Rachel de Queiroz, decidi me aventurar pelo teatro da autora de O Quinze. Para os palcos nossa Rachelzinha escreveu Lampião (1953), objeto desta resenha, e A Beata Maria do Egito (1958), da qual falaremos na próxima postagem.

Dentre minhas particularidades de leitor, no que se refere a gosto pessoal, está o fato de que não simpatizo com histórias cujo tema central é o banditismo. Certamente por isso não apreciei tanto quanto desejava o Memorial de Maria Moura.

Lampião, conquanto seja uma figura representativa que conquistou o imaginário popular, não me representa enquanto nordestino. Não tenho nenhuma admiração por ele e não posso mesmo entender o fascínio que algumas pessoas sentem perante sua imagem asquerosa. Foi um bandido idiota que morreu como um porco. Nada mais.

Só mesmo a criadora de Dôra, Doralina para me fazer acompanhar alguns dos episódios mais lendários do famigerado cangaceiro pernambucano. A peça Lampião é divida em cinco quadros cheios de ação e violência. Por ela temos uma imagem bem próxima do que fora realmente o Rei do Cangaço. Rachel explora ainda com propriedade a também lendária figura de Maria Bonita.

A peça se inicia justamente com o episódio no qual Maria Déa abandona o marido e os filhos para seguir Lampião, tornando-se a partir daí Maria Bonita, a mulher do terrível bandido. Nos quadros seguintes acompanhamos o cangaceiro e seu bando em suas peregrinações pelo sertão.

Lampião, na tentativa de livrar-se da perseguição do governo, tenta um “acordo de paz” enviando uma carta para o interventor de Recife através de dois viajantes que são abordados por seus homens. Além da expectativa pela resposta, acompanhamos os conflitos que se desdobram entre os cangaceiros, os principais deles envolvendo Antônio Ferreira e Ezequiel, irmãos de Lampião.

Lampião é uma peça movimentada e bastante violenta. Embora o tema não me empolgasse, não pude deixar de apreciar a maestria com que Rachel organiza cada um dos quadros, cujo principal defeito, a meu ver, é a desproporção. Mesmo assim temos uma sequência muito pertinente e coerente para uma apresentação teatral.

No que diz respeito ao texto da peça, pareceu-me desnecessário o acúmulo de detalhes e informações. Rachel especifica até as aves que devem cantar em determinadas cenas, além de enumerar minuciosamente objetos e acessórios de palco, vestuário, etc. Não acredito que os cenógrafos e figurinistas sigam à risca tantos pormenores numa possível montagem. Defendo a ideia de que o dramaturgo deve estar mais focado na construção das falas e na sequência cênica, minimizando ao máximo os aspectos suplementares, concedendo assim mais liberdade artística às companhias teatrais.

Rachel de Queiroz revela-se com Lampião uma excelente dramaturga. Eu certamente teria apreciado mais seus dotes teatrais a partir de um tema mais ameno. Vamos ver se encontro algo do tipo na segunda e última peça que ela escreveu. Mas isto será matéria para outra publicação rs. Encontro vocês lá!

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A Casa do Ódio, de Maria José Dupré - RESENHA #139

Maria José Dupré, ao longo de sua carreira literária, dedicou-se basicamente ao romance e à literatura infantil. No entanto, publicou em 1951 este volume A Casa do Ódio que, além da novela homônima, continha quatro contos e mais um episódio extraído de seu primeiro livro infantil.

Não percebi nas breves composições deste livro qualidades que superassem as da romancista. “A casa do ódio” segue o estilo que tornou conhecida a autora de Éramos Seis, oscilando por um ritmo inconstante e desigual. Quanto aos contos, ainda que agradáveis, à exceção de “O divórcio”, pouco ou nada dizem.

O volume abre-se com a novela que o intitula. Trata-se da história de José Spadini, ou simplesmente Beppe, descendente de imigrantes italianos que, após a morte dos pais, abandona o cultivo dos cafezais e emprega-se numa alfaiataria, da qual torna-se legítimo proprietário em pouquíssimo tempo.

Beppe contrai casamento com Marta, uma viúva de péssima reputação que vivia com duas filhas pequenas. Desta união nascem José, Júlio e Ida. A família passa a ter uma vida tranquila e confortável, mas a conduta questionável de Marta, negligente enquanto mãe e esposa, contribui para a desestruturação do lar.

Incomodou-me o destino dado às filhas de Marta nesta novela, especialmente pela maneira quase mecânica como os fatos se dão: uma após a outra vai trilhando caminhos parecidos. No caso de Ida a autora detém-se um pouco mais; no entanto, a filha caçula é só mais uma vítima das circunstâncias como suas irmãs.

A indolência dos dois irmãos também é um tanto incompreensível. Ambos tinham projetos pessoais para o futuro, mas acabam abandonando seus sonhos para seguirem o pai numa vida monótona e fastidiosa. Quanto à Marta, embora funcione como uma espécie de maldição do lar, suas leviandades não são suficientemente explicitadas, o que dificulta o entendimento de todo o ódio que ela inspira em Beppe e nos próprios filhos.

“A casa do ódio” vale mais pela fase anterior à Marta, onde a autora nos dá detalhes sobre a infância do protagonista, e pela fase posterior ao caso de Ida, quando finalmente chegamos à casa aludida pelo título. É nessa fase final, sobretudo, que a narrativa ganha uma atmosfera mais sombria e carregada, distanciando-se dos dramalhões anteriores e concentrando-se numa prosa mais introspectiva e poética.

“Faltou o ‘X’” é um episódio bobo que se passa num convento sobre um engano cometido por uma das freiras. “Meninas tristes”, embora mais interessante, resume-se numa tela triste onde o que sobressai é a vida tediosa de três meninas subjugadas pelo patriarcalismo.

“Nobreza” é a faixa bonitinha do disco, aquela música que não é grande coisa, mas que causa boa impressão. É sobre a postura de uma esposa perante a antiga amante de seu marido. “O divórcio” é seguramente o mais substancioso dos contos, mostrando os traumas de um homem perante a separação dos pais. “O casamento do pintassilgo” encerra o volume com um toque de fofura, mas, como já foi dito, trata-se de um excerto do livro Aventuras de Vera, Lúcia, Pingo e Pipoca.

Embora eu tivesse expectativas maiores por esta leitura, não a considero decepcionante. Se tivesse lido apenas “A casa do ódio”, teria ficado bem mais insatisfeito, mas “O divórcio” e “Nobreza”, e talvez até “Meninas tristes”, enriqueceram a experiência como um todo, mostrando-me algumas facetas da senhora Dupré que eu ainda não conhecia.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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