quinta-feira, 26 de abril de 2018

Rei Negro, de Coelho Neto - RESENHA #65 (contém spoilers)


Li por esta que é a 1ª edição da obra, de 1914.
Prevenido já estava sobre a escrita verborrágica de Coelho Neto, mas não fazia ideia da proporção que teria o vocabulário esdrúxulo do autor. A impressão que tive foi a de estar lendo noutro idioma, tantas vezes que tive de recorrer ao Aurélio rs. Levei certo tempo até me acostumar com o texto de Rei Negro (1914); após superar este primeiro obstáculo, pude então me ocupar da obra em si.

Rei Negro é o que se pode chamar romance anacrônico. Publicado num período comumente denominado Pré-modernismo, o livro de Coelho Neto seguia na contramão do que estava em voga na época; por esse motivo, alguns críticos o classificam de neoparnasiano. Tal estilo foi alvo de crítica ferrenha por parte de autores como Lima Barreto e Oswald de Andrade. A preocupação do autor com a forma chega a ser tão exagerada, que chega a constituir o primeiro plano da essência de sua obra, em detrimento do enredo e demais elementos da narrativa. É como se, indiferente à fotografia, ele estivesse obcecado pela moldura. Essa obsessão acaba prejudicando a constituição do romance que, sufocado por tantos atavios, não caminha, arrasta-se.

Não saberia dizer se o senhor Coelho Neto era desses que traziam um dicionário sempre à cabeceira ou se ele mesmo era um dicionário ambulante; o certo é que, dono de um vocabulário de incalculável dimensão (sobretudo pelos arcaísmos), ele empenha-se por fazer uso constante desta habilidade excepcional. Para que não digam que estou exagerando, aí vai um trechinho: “Era o luar que penetrava o interior da espessura coando-se pelos raros, descendo em cheio pelas abertas, aqui em fita, além alagando a jorros, ou amiudado em nimbos e em estrias que amedalhavam, reticulavam o ândito tenebroso.” Hã? E que me dizem desse: “Crebro, aos estalidos, pingava o estilicídio das folhas róridas; pipilos denunciavam o sonho dos ninhos e, alumiando a treva ferrugínea, em ronda, os pirilampos multiplicavam-se.”? Ahã rs! Só para constar: mais da metade do livro mantém-se nesse nível.

É natural encontrarmos na prosa regionalista um vocabulário peculiar que caracterize com realismo a região ambientada. Isso justificaria em parte nosso romance em questão, não fosse o fato de a maioria dos termos estranhos utilizados não serem exatamente típicos. O excesso de formalismos é um recurso visivelmente proposital. Digam o que quiserem, o estilo de Coelho Neto granjeou-lhe respeito e renome não só no Brasil, como em Portugal, onde a maioria de seus livros eram editados. Em razão desse sucesso, ele publicou quase uma centena de livros, entre romances, coletâneas de contos e crônicas, além de várias peças teatrais. Os requintes de sua escrita, contudo, não lhe asseguraram a permanência e, hoje, praticamente nem se sabe quem foi Coelho Neto. Até onde sei, só algumas de suas crônicas continuam sendo editadas.

Mas falemos agora de Rei Negro. Como já disse, o enredo e demais elementos narrativos sofrem em favor da forma minuciosamente elaborada. A questão racial é o único tema que consegue se sobressair a partir da figura de Macambira, o filho de Munza, reverenciado entre os negros. Trata-se do escravo de confiança de Manuel Gandra, o proprietário da fazenda Cachoeira. Responsável pelas transações de compra e venda de mercadorias, Macambira é temido por sua valentia e pela superioridade que lhe atribuem, por ser uma espécie de príncipe da raça. De modos reservados, sua única amizade é Balbina, velha mandingueira, que vive a lhe contar as glórias de seus antepassados da África.

Macambira, fiel à sua tradição, sente-se um defensor dos escravos, ao mesmo tempo que reprova-lhes as atitudes, especialmente as relacionadas à concupiscência. Na medida do possível, tenta impedir a corrupção de sua gente, sobretudo das mulheres que, muitas vezes, ainda impúberes, eram vítimas de abuso sexual. Manuel Gandra e seu filho Julinho dispunham das escravas a seu bel-prazer e indiscriminadamente. Julinho, contudo, acaba tendo algumas de suas aventuras malogradas, em razão da intervenção de Macambira, o que gera uma grande antipatia no garoto em relação ao negro.

Sabendo que Macambira ia juntando considerável pecúlio e temendo que o negro comprasse sua liberdade, Manuel Gandra decide casá-lo, para mantê-lo seguro na fazenda. Todos acreditavam que o escravo era averso às mulheres, por sua postura sempre austera, e atribuíam o fato às mandingas da Balbina; mas a verdade é que ele dedicava um amor ideal à mucama Lúcia, uma escrava quase branca, que gozava um tratamento especial na fazenda, além de possuir alguma instrução. Gandra, percebendo os sentimentos de Macambira, sugere o casamento, para a indignação de muitos, inclusive de Julinho.

O sinhozinho, querendo desforrar-se com o interceptor de suas aventuras, prepara uma armadilha e estupra Lúcia. Envergonhada, a mucama não tem coragem de relatar a ocorrência, consciente da inutilidade da delação, fundamentada em outras situações idênticas. O casamento é realizado e, pouco depois, Lúcia engravida. Temendo que o filho seja de Julinho, a mucama sofre horrivelmente. Macambira estava fora quando então nasce a criança, de fato, branca. A desesperação toma conta de Lúcia, que teme morrer ás mãos do marido quando este descobrisse; decide confessar tudo à Balbina, mas não resiste a uma vertigem e morre.

Balbina põe Manuel Gandra a par de tudo, e este, em defesa do filho, trata do enterro de Lúcia e exige o sumiço da criança. Sua primeira ideia é a de matar, mas um escrúpulo o convence a enjeitar a criança na porta de uma igreja, missão esta atribuída a Balbina. Uma grande tempestade impede a tarefa, circunstância que é encarada supersticiosamente pela mandingueira, que entende o imprevisto como obra da falecida. Balbina decide esconder a criança no seu rancho, mas quando Macambira retorna, acaba descobrindo tudo. O escravo decide comprar sua liberdade e abandonar a fazenda, para poupar-se da vergonha, mas Gandra convence-lhe a ficar, tentando sempre justificar o filho. Macambira, contudo, perdendo a razão, prepara uma tocaia na qual Julinho acaba assassinado por ele.

Todo esse dramático enredo é contado da maneira mais arrastada possível, combinado com descrições minuciosas derramadas em páginas e páginas. As descrições são por vezes tão excessivas que não poucas vezes o leitor precisa parar para se situar novamente na trama. Tudo é contado também com bastante distância, de maneira que muito do que atribuímos aos personagens provém do que fica subentendido, pois o autor não se dedica muito ao estudo de seus tipos, o que faz com que o leitor não simpatize muito com eles. O autor, que não dedica atenção aos personagens centrais, importa-se bem menos com os secundários; à exceção de Donária, a Vaca Brava, a participação dos outros é praticamente nula.

Rei Negro é um livro que, não obstante não ser muito longo, poderia ser bem menor. Talvez se ao invés de tantas descrições “despropositadas”, tivéssemos um desenvolvimento melhor da trama, como também dos próprios personagens, o romance renderia uma experiência mais apreciável. A obra, sem dúvida, toca em diversas temáticas que mereciam uma atenção mais cuidadosa. Não quero desmerecer a espantosa perícia estilística do autor, mas, honestamente: há tanta coisa melhor rs!

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 4 de abril de 2018

Trilhas Longínquas de Oku (Oku no Hosomichi), de Matsuo Bashō - RESENHA #64

Considerado o maior haicaísta de todos os tempos, Matsuo Bashō (1644-1694) celebrizou-se também pelos relatos que fazia de suas peregrinações. Trilhas Longínquas de Oku (1694), o mais famoso deles, é considerado sua obra-prima. Trata-se do relato de uma viagem que Bashō, acompanhado de seu discípulo Sora, realizou em 1689, por Michinoku, nome pelo qual também era conhecida a Província de Mutsu (território que hoje corresponde às prefeituras de Fukushima, Miyagi, Iwate e Aomori, e às municipalidades de Kazuno e Kosaka na prefeitura de Akita), ao norte e noroeste de Honshu, maior ilha do Japão. Calcula-se que Bashō percorreu, quase sempre a pé, cerca de 2300 km em 156 dias, na idade de 46 anos, considerada avançada para os padrões do século XVII.

Depois dessa confusa introdução rs, passemos à apreciação da obra.

Ainda que não centrado em sua pessoa, Trilhas Longínquas de Oku não deixa de ser um retrato do poeta que foi Bashō. Talvez ele tenha alcançado o grau mais elevado da essência do “ser poeta”, pois sua vida, ao que tudo indica, foi toda dedicada à poesia e à religião. O culto de Bashō pelo zen-budismo — é importante lembrar — está diretamente associado ao culto da poesia. Acho que ficou claro que a vida desse ilustre oriental foi pura poesia mesmo rs. Ainda que os biógrafos discordem bastante a seu respeito, o amor pelo haicai (desde tenra idade) acaba sendo o ponto de interseção entre todos eles.

O que chama atenção na obra máxima de Bashō não é exatamente o percurso empreendido por ele, mas suas reações diante das paisagens e pessoas que encontra. Sua sensibilidade é algo inacreditável, notadamente para o leitor contemporâneo. É interessante como o perigoso trajeto se relaciona ativa e passivamente com a poesia: ora Bashō busca intencionalmente uma imagem referida por autor clássico, ora uma imagem presenciada é logo associada pelo poeta a algum poema famoso. Claro que essas referências, geralmente mescladas com o texto, só poderiam ser atinadas por conhecedores da poesia japonesa, como Meiko Shimon (tradutora da minha edição), que através de notas de rodapé, chega a transcrever alguns dos poemas aludidos por Bashō.

Eis uma obra puramente contemplativa: para autor e leitor. A viagem tinha fins exclusivamente poéticos. Bashō buscava: matéria para seus haicais, encontrar velhos amigos poetas, conhecer outros igualmente dedicados à poesia, verificar monumentos referidos pela poesia clássica, praticar sua fé em vários templos encontrados, apreciar as variedades naturais. Acho que fiz um resumo do livro todo agora rs. Mas nada como compartilhar da sensibilidade do autor! Se por um lado ele aprecia cuidadosamente o ambiente à sua volta, o leitor aprecia seu maravilhoso senso de observação.

Trilhas Longínquas de Oku é permeado por vários haicais de Bashō e Sora, todos eles poemas circunstanciais, que expressam as emoções de momentos marcantes do trajeto; algumas vezes estes poemas eram dependurados na entrada dos locais visitados. Assim, há um poema dedicado às armas de valentes guerreiros de outro tempo, outro inspirado pela empatia para com o sofrimento de duas prostitutas, aquele pelo qual se despede de seu companheiro Sora... Enfim, são muitos haicais, alguns até atendendo a pedidos rs.

O relato de Bashō é de uma simpleza graciosa, mas que exige bastante atenção de leitores, como eu, pouco afeitos à cultura oriental. A tradução de Meiko Shimon tem o mérito de ser a primeira (no Brasil) a verter o texto do original japonês para a língua portuguesa, mas talvez por não ser a tradutora uma falante nativa do português, algumas passagens não me pareceram bem transpostas para nosso idioma, o que pode representar uma dificuldade sofrível, já que a comprometida fluidez de certos trechos não chega a interferir na compreensão da obra.

Imagino que os amantes da poesia apreciarão a prosa poética de Bashō bem mais do que eu, mas, sinceramente, aproveitei esta experiência com particular entusiasmo. Há uma pureza nas impressões do poeta viajante que chega a emocionar, por sugerir que o homem carece de fé e de arte para se manter num mundo tão materialista.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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