domingo, 21 de abril de 2024

Tragédia no Mar (The Poseidon Adventure), de Paul Gallico - RESENHA #208

Sou de uma geração da qual o navio Poseidon fazia parte do imaginário popular. Lembro de ter assistido pelo menos três versões cinematográficas da história do transatlântico que ficou à deriva no oceano, virado de ponta-cabeça. Mas somente depois de adulto descobri que todas aquelas histórias provinham de um romance norte-americano do escritor Paul Gallico, obra que, aliás, tendo sido um sucesso na época de sua publicação (1969), está hoje bastante esquecida. Depois de finalmente lê-la, consigo entender o porquê.

Iniciei a leitura de Tragédia no Mar (minha tradução, de Primavera das Neves, optou por este título) bastante empolgado com o estilo da narrativa, mas principalmente com a galeria de personagens criada pelo autor. Ali estavam, logo nos primeiros capítulos, todos os ingredientes que constituem os grandes livros de aventura: uma premissa fantástica, personagens misteriosos que escondem segredos, um casalzinho que se forma em meio ao caos, figuras simpáticas e de alívio cômico, além de muitos outros elementos que despertam a curiosidade e o interesse do leitor.

Sobre a premissa, em linhas gerais, o livro conta a história de um luxuoso transatlântico que, durante um cruzeiro que deveria compreender o natal e o réveillon, é atingido por um maremoto que o faz virar de ponta-cabeça. Os vários espaços vazios em compartimentos internos, no entanto, fazem com que o navio permaneça flutuando com o fundo do casco acima da superfície.

Uma tragédia de tal proporção, como se supõe, faz muitas vítimas instantaneamente. Quanto aos sobreviventes, além de traumatizados, estão todos muito confusos e indecisos quanto ao que fazer dali por diante. Dentre eles está o reverendo Scott, um dos primeiros a manifestar espírito de liderança, com o qual influenciará o pequeno grupo que vamos acompanhar durante toda a narrativa.

Julgo pertinente apresentar essa galeria de personagens, porque de fato ela constitui um dos maiores acertos do romance. O reverendo Frank Scott, por si só, já é um tipo muito misterioso. Proveniente de família rica e com um passado laureado de méritos no mundo dos esportes, ele abandona tudo para seguir carreira religiosa. Os demais passageiros não compreendem ao certo as razões que o levaram a fazer o cruzeiro do Poseidon, mas acreditam que o fato esteja ligado ao boato de que o reverendo havia sido desligado da igreja à qual pertencia.

Temos em seguida os Shelby, que são aparentemente uma família perfeita e exemplar. Richard e Jane parecem ser um casal modelo, pais de dois filhos muito promissores: a bela Susan e o pequeno Robin, espécie de menino-prodígio com inteligência acima da média. Ao longo do livro, porém, vamos descobrindo uma esposa frustrada e insatisfeita com um marido que ela julgava covarde e pusilânime de caráter.

O casal Rogo, por sua vez, não é menos interessante. Mike Rogo é um detetive da polícia americana que está de férias com a esposa Linda, mas todos desconfiam que ele esteja realizando alguma investigação secreta. Linda Rogo é uma mulher desprezível, que está sempre xingando todo mundo, inclusive o próprio marido, a quem culpa por ter abandonado a carreira de atriz.

Temos também o casal Rosen, que compreende o núcleo cômico de que já falei. Manny e Belle Rosen são comerciantes aposentados. Belle, em sua juventude, fora campeã de natação, mas, depois do casamento, dedicada à vida doméstica, foi ganhando cada vez mais peso. Além de serem naturalmente engraçados, os Rosen ganham facilmente a simpatia do leitor, mas justamente por isso também rendem cenas em que ficamos com o coração na mão.

James Martin é um empresário americano de alfaiataria masculina. Casado, ele está curtindo férias com sua amante. Após a tragédia, Martin entra numa crise de consciência, atormentado pela ideia de que não merecia ter sobrevivido. Mary Kinsale é uma incógnita. Trata-se de uma solteirona de poucas palavras, de caráter religioso e de muita discrição.

Tony Bates é um alcóolatra inglês, que está sempre bebendo na companhia de Pamela, que ele conheceu no navio e que, assim como ele, é capaz de beber descontroladamente sem se embriagar. Junto a eles está o americano solteirão Hubie Muller, um homem descrente no amor, mas que acabará apaixonado por Nonnie, uma dançarina que também sobrevive à tragédia. Fechando o grupo, temos o turco Kemal, membro da tripulação, que decide seguir o reverendo Scott em seu plano de salvamento.

A fórmula praticada por Gallico é fazer esse grupo avançar sempre acima pelos deques invertidos do Poseidon. Cada deque oferece um novo desafio que precisará ser vencido, e essa fórmula vai se repetindo por quase todo o livro, interrompida ocasionalmente por outras circunstâncias. Essa repetição às vezes torna-se um pouco cansativa, mas este não é nem de longe o problema mais grave do livro.

Na segunda metade da obra, infelizmente, o autor parece perder a mão no desenvolvimento da narrativa. Talvez na tentativa de surpreender o leitor com cenas chocantes, algumas situações saem por demais exageradas e até incoerentes. Acredito que o livro desanda de fato a partir de uma cena de estupro no capítulo XIII. Além do horror da cena, o mais difícil de digerir é o desenrolar estranhamente inusitado do episódio, onde os papéis se invertem e temos a vítima consolando o agressor.

Como se não bastasse essa situação inconcebível e repugnante, o autor consegue ir além ao criar uma cena de suicídio que me pareceu bastante incoerente. Dada a importância do personagem que se suicida e levando-se em conta a maneira súbita como tudo ocorre, a cena beira o ridículo, de tão improvável. A narrativa, a partir daí, fica insustentável, tornando difícil e arrastada a leitura dos capítulos finais.

O último capítulo, finalmente, ainda traz a cereja do bolo: a constatação de que todo o sofrimento vivido pelos personagens poderia ter sido diminuído se outras escolhas tivessem sido feitas. E se acham que essa novela não pode ficar pior, o livro termina com a vítima de estupro desejando ficar grávida do seu agressor. Sim, você não leu errado.

Esses momentos desagradáveis da segunda metade de Tragédia no Mar fizeram-me querer lançar o livro pela janela, não nego; mas não posso negar o grau de envolvimento que a narrativa alcança em mais de dois terços da obra. Foram realmente as escolhas questionáveis do autor que prejudicaram a constituição do livro, como também sua sobrevivência, já que o mesmo não envelheceu bem. É lamentável que tenha sido assim, pois Tragédia no Mar perdeu a grande chance de se tornar um clássico.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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