sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O Alquimista, de Paulo Coelho - RESENHA #146

“Paulo Coelho não é literatura”, bradavam meus professores. Isto soa familiar? Parece que sim, uma vez que já é quase convenção entre muitos estudiosos da Literatura depreciar a obra do escritor brasileiro mais traduzido no mundo todo.

Como deve ter acontecido a muita gente, fiquei desestimulado a conhecer os livros do célebre autor carioca, deixando-me persuadir por opiniões até então dignas da minha confiança. Agora que finalmente li O Alquimista (1988), descobri que Paulo Coelho é sim um bom prosador. Se é dos que repetem fórmulas e revelam pouca criatividade (considerando-se o conjunto de sua produção ficcional), isso já não sei.

Minha recente experiência com O Alquimista veio reiterar um antigo pensamento que faço questão de compartilhar com meus leitores: Leiam tudo que vocês tiverem vontade, independente do que digam a respeito, seja literatura infantil, seja romance erótico, seja autoajuda, seja livro best-seller, seja o rótulo do detergente rs. Se deu vontade, leia! E apenas pela leitura tire suas próprias conclusões.

Passando ao objeto desta resenha, O Alquimista é uma extensa fábula sobre um jovem pastor de ovelhas que, após ter o mesmo sonho duas vezes, procura uma cigana, na tentativa de descobrir o seu significado. No sonho, Santiago encontra uma criança que pretende lhe mostrar um tesouro escondido nas pirâmides do Egito, mas o pastor acaba acordando antes de chegar ao lugar exato.

A cigana revela que o tesouro será encontrado, mas, antes, exige a promessa de que Santiago lhe dará a décima parte do achado. Incrédulo de tal interpretação, o pastor acaba encontrando, pouco depois, um velho que se apresenta como o rei de Salém. O estranho ancião, além de demonstrar conhecer o passado de Santiago, promete ajudá-lo a encontrar seu tesouro em troca de um décimo de suas ovelhas.

Assim ajustados, o rapaz recebe duas pedras místicas do rei de Salém, que, segundo o velho, serviriam de auxílio durante a jornada até as pirâmides. Santiago deixa então a Espanha e segue em busca do que ele acredita ser sua Lenda Pessoal. A segunda parte do livro conduz o leitor por esta peregrinação espiritualista até seu surpreendente desfecho.

O maior mérito d’O Alquimista está na capacidade que teve seu autor em fazer uso de uma linguagem simples e objetiva que nos remete aos grandes fabulistas clássicos cujos textos eram marcados por um poder de oralidade fascinante. Dessa forma, o livro consegue atingir um público vasto e diversificado, podendo ser lido com deleite por crianças e adultos.

Quanto aos aspectos religiosos/espiritualistas, que permeiam toda a obra, se entendidos como fruto da formação do narrador, em nada comprometem as qualidades literárias da narrativa. Se uma história é narrada sob o ponto de vista de um católico, um islamita ou mesmo um bruxo, ela poderá ser boa ou ruim, a depender do quanto a crença do autor interfere no texto. Se a ficção perde terreno para a pregação, o texto deixa de ser literário, o que não é o caso d’O Alquimista.

Conquanto esta minha primeira experiência com Paulo Coelho não tenha provocado o entusiasmo que me é comum diante de meus ficcionistas favoritos, a surpresa de encontrar algo aproveitável naquilo que eu julgava ser uma escória incorrigível deixou-me bastante satisfeito e até mesmo curioso por conhecer outros títulos do autor.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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domingo, 13 de setembro de 2020

Casamento e Mortalha no Céu se Talha, de Júlio César Leal - RESENHA #145

Júlio César Leal (1837-1897) foi um prolífico escritor baiano, mais conhecido por ter sido um dos primeiros divulgadores do Espiritismo no Brasil. Enquanto literato, dedicou-se principalmente ao teatro, mas cultivou outros gêneros como a poesia e o romance. Casamento e Mortalha no Céu se Talha (1876) pertence a esse último.

É um livrinho bobinho, sem dúvida, escrito num estilo piegas e sentimental, superado há muito pelos nossos melhores prosadores românticos, como José de Alencar. No entanto, trata-se de uma novelinha de ritmo formidável, dessas que se leem rapidamente e com relativo interesse.

Se desconsiderarmos exageros do tipo: amores à primeira vista, mocinhas sequestradas e vilões facinorosos, teremos uma história quase ótima. Mas como esses clichês românticos eram garantia de público, compreende-se melhor o estilo adotado por um ficcionista que buscava tornar-se conhecido.

Paulo de Oliveira é o “mendigo do Lavradio”. Após sofrer um desmaio, o pobre homem é logo socorrido pelo generoso Carlos Augusto, que, além de conduzi-lo de volta para casa, presta assistência ao enfermo durante toda a noite. Nesse intervalo de tempo, Carlos enamora-se de Celina, a filha do mendigo.

A jovem Celina, por sua vez, encanta-se pelo salvador de seu pai, e vibra de felicidade ao ouvir Carlos pedir sua mão. Mas o experiente Paulo, sabendo ser aquele moço filho de um visconde, desacredita que este possa dar seu consentimento à união dos jovens. Com efeito, o pai de Carlos nega-se terminantemente à aprovação de um casamento tão desigual e convence o filho a partir para a Europa.

Entretanto, novas circunstâncias conduzirão a família do mendigo do Lavradio a Portugal, onde o encontro com Carlos será inevitável. Mas a bela Celina acaba acendendo paixões em outros dois personagens: o velho José Basílio, um solteirão milionário; e Leonidas, o inescrupuloso conde de Manzanares.

É por essa teia de lances amorosos que o ficcionista conduz sua trama, regada a envenenamentos, roubos, entrevistas noturnas, aparições sobrenaturais, assassinatos, dentre outros ingredientes folhetinescos.

A influência da doutrina espírita é bastante evidente no texto de Júlio César Leal. Em determinado momento, quando da explicação de uma cena sobrenatural, temos uma série de “relatos verídicos” sobre experiências que “confirmam” a vida após a morte. Mas não temos aqui, felizmente, nenhum tipo de pregação religiosa. O livro, enquanto obra visivelmente despretensiosa, limita-se a mostrar uma sequência de situações segundo um ponto de vista que não se impõe como verdade absoluta.

Casamento e Mortalha no Céu se Talha funciona mesmo como divertido passatempo para quem, como eu, aprecia a literatura brasileira dos oitocentos. É um entretenimento deveras interessante e que não exige muito tempo ou esforço. A prosa de Júlio César Leal, se não revela grandes qualidades estilísticas, ao menos entrega um texto bem cuidado e de ritmo regular, o que pra mim já é alguma coisa.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 5 de setembro de 2020

Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco - RESENHA #144 (contém alguns spoilers)

Volto ao grande Camilo com mais uma de suas novelas satíricas, a redescoberta Coração, Cabeça e Estômago (1862), que nos últimos anos tem sido mais divulgada graças à sua inclusão dentre as leituras obrigatórias de alguns vestibulares.

Trata-se de obra que vale principalmente pela agudeza do humor, além dos artifícios já tão comuns à ficção camiliana. Não obstante a presença de um prosador seguro e convicto, desgostou-me o pessimismo presente em todo o livro. Definitivamente esta não é uma leitura para se resgatar a fé na humanidade.

O volume abre-se com um preâmbulo, técnica muito usual na obra de Camilo, onde o editor do livro, em conversa com o poeta Faustino Xavier de Novais, confessa-se depositário dos manuscritos de um amigo comum, Silvestre da Silva, falecido há seis meses. Estes papéis, organizados em três volumes, acabam sofrendo diversas intervenções pelo editor, até adquirirem a forma final de que se constitui Coração, Cabeça e Estômago.

Os manuscritos de Silvestre da Silva tencionam compartilhar uma longa sequência de desilusões amorosas, cujo final é enganosamente feliz. Como disse, trata-se de um livro excessivamente pessimista, mas que ganha tons amenos em virtude do bom humor do prosador, que nos arranca boas risadas da primeira à última página.

Essa estratégica divisão pela qual Silvestre dispôs seus papéis evidencia três momentos de sua vida pessoal: juventude, vida adulta e maturidade. No primeiro deles, tendo as paixões inspiradas pelo “coração”, Silvestre passa por experiências efêmeras, dessas que todos vivemos na adolescência. A primeira parte do livro, contudo, encerra-se com dois casos que ganham atenção especial por parte do narrador.

O primeiro deles refere-se a Paula, “a mulher que o mundo respeita”. Silvestre, como tantos outros, acaba apaixonado pela bela donzela que, mesmo comprometida, alimenta esperanças em vários outros pretendentes, até finalmente decidir-se a fugir com um deles. Resguardo-me de contar o desfecho desta aventura que é, sem dúvida, digno da pena de Camilo.

Quanto ao outro caso especial, arrisco dizer que talvez compreenda o momento mais interessante de todo o livro. Marcolina, “a mulher que o mundo despreza”, aparece de maneira fortuita na vida de Silvestre, que logo se interessa por conhecer sua trágica história, repleta de lances dramáticos que culminam na sua prostituição. Esta pobre infeliz foi possivelmente o único amor verdadeiro de nosso autobiógrafo.

Na segunda parte, Silvestre nos relata suas intenções amorosas regidas pela ‘cabeça”, todas elas malogradas por circunstâncias adversas, mas cheias de chiste. Na parte final, de volta aos sítios de seus ascendentes, Silvestre conhece Tomásia: moça simples, de pouca instrução, trabalhadeira, acima do peso (mas de ótima saúde) e de muitas prendas domésticas.

Embora desprovida de maiores atrativos, Tomásia conquista Silvério pelo “estômago”, fazendo-o mudar de hábitos em todos os aspectos. Nosso protagonista rende-se a uma vida bucólica, longe das polêmicas da imprensa e do tumulto das grandes cidades, mas, em se tratando de uma novela satírica do autor d’A Queda dum Anjo, a ironia fala mais alto e nosso Silvestre termina seus dias como vítima de suas novas inclinações.

Não fossem as digressões maçantes onde o hermetismo de Camilo ganha mais força, poderia dizer que este foi o melhor livro que já li do autor. Mesmo considerando as passagens tediosas e o pessimismo predominante da narrativa, Coração, Cabeça e Estômago mantém-se como leitura divertida e cujo interesse se preserva até os dias de hoje.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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