quarta-feira, 29 de abril de 2020

O Índio Afonso, de Bernardo Guimarães - RESENHA #127

Enfadado com as sátiras políticas de Macedo, resolvi-me a espairecer com uma novelinha picaresca do sempre querido Bernardo Guimarães, de quem já teci por aqui comentários rasgados de elogio e louvação (Cf. as resenhas de A Ilha Maldita, O Ermitão do Muquém e Rosaura, a Enjeitada).

O Índio Afonso (1872) é desses livrinhos que podem ser lidos numa sentada só. A linguagem ágil – e sempre marcada pela oralidade – do texto de Bernardo Guimarães leva-nos a percorrer as poucas páginas da novela sem maiores dificuldades. Prevalece ainda aquela sensação de história de rancho, ouvida da boca de velho sertanejo, daqueles que se deleitam em relatar causos do passado.

É importante frisar que o termo “índio” é aqui empregado, segundo o uso popular, no sentido de caboclo de vida selvagem/aventureira. Afonso é um mestiço influenciado pelas culturas indígena e europeia. Vivendo em harmonia com a natureza, valendo-se da caça e da pesca, apesar do culto instintivo pelo rio Paranaíba, professa fé cristã, ainda que esta não o impeça de exercer sua selvageria nata.

O tipo é inspirado em figura real, segundo o autor, que alega ter conhecido pessoalmente o original que lhe serviu de modelo. Contudo, a narrativa, como também os principais personagens que a integram, são fruto da fantasia do romancista, conforme revela no introito da primeira edição em livro (Garnier, 1873).

Afonso é um foragido da polícia, mas a novela se propõe a convencer o leitor de que ele não é um criminoso. Vivendo unicamente na companhia da irmã (Caluta), do cunhado (Batista) e dos sobrinhos, Afonso segue uma vida simples e primitiva, assenhoreando-se do rio Paranaíba e andando sempre armado.

Toruna é o facínora que vai interferir na paz doméstica daquela família. Consumido de desejos por Caluta, em ocasião planejada, quando Batista e Afonso estavam à distância de uma légua, ele tenta um estupro, mas a fiel esposa, preferindo a morte à desonra, precipita-se nas águas do Paranaíba.

Após ouvir o relato dos sobrinhos, Afonso exige que Batista vá em busca do corpo de Caluta, incumbindo-se ele mesmo de vingar a irmã vitimada. Seguindo o rasto de Toruna, Afonso persegue-o incansavelmente, mas não é sua intenção matá-lo. Afonso pretende uma vingança muito pior.

A segunda parte da narrativa segue mais leve, concentrando-se nas tentativas malfadadas da polícia de prender o astuto Afonso que, por conta de suas admiráveis força e esperteza, é alvo das mais diversas cogitações populares: há quem acredite que o índio seja filho de uma gentia com um bicho d’água, ou mesmo que tenha pacto com o demo. Seria Afonso um irmão de Regina rs?

O que sabemos com certeza é que o Afonso de Bernardo Guimarães é mais um desses heróis maravilhosos da ficção brasileira, dentre os quais Peri talvez seja o mais emblemático representante. Se n’O Índio Afonso não temos entrementes a grandeza d’O Guarani, contamos ao menos com um excelente passatempo ao melhor sabor mineiro.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

*** 

Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Um Lugar Bem Longe Daqui (Where the Crawdads Sing), de Delia Owens - RESENHA #126

Para mim, é sempre uma grata surpresa quando me deparo com grandes talentos da atualidade. Não escondo minha preferência pelos autores clássicos, aqueles que já passaram pelo crivo do tempo e da crítica, mas isso não me impede de reconhecer um talento autêntico quando o tenho à vista.

É o caso da senhora Delia Owens e seu inegável talento literário, sendo este já perceptível em seu primeiro romance, Um Lugar Bem Longe Daqui (2018), que é sucesso de público desde seu lançamento. Trata-se de uma escritora norte-americana que já havia divulgado alguns frutos de seu trabalho enquanto cientista, mas que só tornou-se conhecida do grande público a partir de sua incursão pela Literatura.

Mulher inteligente, Delia Owens aproveitou seus conhecimentos científicos para emoldurar sua obra com cores vivas e brilhantes. Às primeiras linhas de seu trabalho, já nos deparamos com uma estilista fina e observadora, sensível e meticulosa, sem deixar de estar atenta ao ritmo de sua narrativa, cujo maior desafio é manter o interesse do leitor valendo-se quase que unicamente de Kya, a protagonista.

O leitor que antipatizar Kya certamente desgostará deste romance, uma vez que a “Menina do Brejo” é o ponto central para onde convergem todos os demais aspectos da narrativa. Um Lugar Bem Longe Daqui é uma história sobre solidão. Se estar a sós com Kya for desagradável para o leitor, provavelmente este aborrecerá o livro de Delia. Ainda bem que comigo não aconteceu rs.

Kya é abandonada ainda criança por toda sua família num brejo onde fica o seu barracão. Sozinha, tendo por únicas companheiras as gaivotas, ela mantém-se esquiva ao contato com outras pessoas, negando-se a ir à escola e restringindo ao máximo a comunicação com os moradores da cidade. Amparando-se em tudo que aprendera com a mãe e Jodie, seu irmão mais próximo, Kya aprende a se virar sozinha, fazendo tudo do seu jeito e tendo a natureza como principal referência.

A ligação que se estabelece entre a menina e o brejo permite que ela adquira um conhecimento autodidático, que será devidamente aperfeiçoado graças aos ensinamentos de Tate, um garoto que fora amigo de Jodie e que a orienta numa ocasião em que Kya acaba se perdendo enquanto passeava no barco que herdara do pai.

Os ensinamentos de Tate e as atenções de Pulinho, com quem Kya mantém transações comerciais, levam a Menina do Brejo a refletir sobre o quanto é importante entreter relações com outras pessoas. Estar sozinha já não parece ser a escolha mais acertada, mas as decepções com que se depara em seguida fazem-na repensar sobre o quão mais seguro pode ser um lugar bem distante, onde cantam os lagostins.

É admirável a preocupação da autora em tornar sua história crível. Sempre que Kya, por exemplo, revela um conhecimento improvável para sua idade, o narrador justifica as habilidades da garota, principalmente com menções ao passado da personagem. Delia não subestima a inteligência do leitor; antes a sobeja com seu conhecimento científico.

Mas como em todo brejo sempre há uma lama mais escorregadia, não devemos admirar que nossa estreante tenha se sujado um pouco no próprio pântano. Não me pareceu muito lógico que os pais mais os quatro irmãos de Kya a tenham abandonado à própria sorte. Não digo que seja impossível, mas é um tanto extraordinário que todos tenham agido da mesma forma, mesmo considerando as circunstâncias em que vivia a família. O caso é que, para o bem da proposta do romance, Kya precisava ficar sozinha. Penso que teria sido mais acertado se a autora tivesse trilhado um caminho “menos fácil”: um irmão que foi para a guerra, a outra que morreu de tifo, outro que se perdeu no pântano... Todo mundo precisava só ir embora?

Outro problema que me incomodou foi o possível assassinato de Chase Andrews, do qual tomamos conhecimento logo no começo do livro. A investigação deste caso dá-se concomitantemente ao prosseguimento da história de Kya. Até o desfecho da obra, algumas lacunas são deixadas pela autora. Talvez Delia propositalmente optasse por manter uma aura de mistério, deixando à imaginação do leitor uma ou outra explicação; ou talvez ela possa usar isso como desculpa por não ter uma explicação plausível para uma morte tão mal explicada rs.

Minha experiência com Um Lugar Bem Longe Daqui foi amplamente satisfatória. Penso que, para um romance de estreia, o livro está excelente, além de contar com uma escrita que poderá agradar diferentes públicos. Vamos torcer para que brevemente Delia nos brinde com outras produções deste nível, e que Reese Witherspoon não estrague tudo rs.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

*** 

Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798
Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com