segunda-feira, 30 de maio de 2016

Os Mistérios de Udolpho (The Mysteries of Udolpho), de Ann Radcliffe - RESENHA #14


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Quando soube que Oscar e Amanda (1796), de Regina Maria Roche rivalizou a popularidade de Os Mistérios de Udolpho (1794), de Ann Radcliffe, e eu já tinha lido o primeiro, fiquei bastante curioso para ler o tal Udolpho, imaginando que seria tão bom quanto o outro. Coincidentemente, a Editora Pedrazul tinha acabado de lançar, ano passado, numa edição em 2 volumes, Os Mistérios de Udolpho, que é mais conhecido por ter sido citado em A Abadia de Northanger, por Jane Austen. Desejo ardentemente que Oscar e Amanda também seja lançado, uma vez que, assim como Udolpho, também é citado no já referido livro da Jane Austen (com o título original, é claro: The Children of the Abbey).

Finalmente li Udolpho e não... Não foi melhor que Oscar e Amanda que, a meu ver, possui um enredo muito mais interessante e inteligente. O romance da Radcliffe não é ruim, mas possui uma série de defeitos que acabam comprometendo a integridade da obra. Por outro lado, reconheço que o livro possui certas qualidades, a começar por ser um dos primeiros romances góticos escritos por uma autora inglesa. O pior defeito da obra é ser demasiadamente extensa por conta de episódios desnecessários que em nada contribuem para o desenvolvimento da narrativa. Passemos então ao enredo para melhor identificar minhas considerações acerca desse livro.

Em 1584, na província da Gasconha, na França, morava a família de Monsieur St. Aubert no castelo denominado La Valée. Antigamente, era bastante comum nomear as grandes propriedades da nobreza, especialmente na Europa. Em La Valée, residiam St. Aubert, sua esposa, seus três filhos e alguns criados. St. Aubert é um homem simples e apaixonado por botânica; daí sua ideia de abandonar os progressos da capital para residir num ambiente todo cercado pelas belezas e paisagens naturais. De uma moral bastante elevada, ele educa os filhos de acordo com seus princípios mais nobres, até ser fulminado pela morte de dois deles, restando-lhe somente a jovem e bela Emily, a quem St. Aubert passa a dedicar-se com máximo empenho.

Esses três entes queridos amam-se com dedicação e compartilham das mesmas afeições, sobretudo a paixão pela natureza. Os primeiros capítulos de Udolpho descrevem minuciosamente diversas cenas contemplativas, em que nossos três personagens apreciam os detalhes das belezas naturais: as árvores, flores, penhascos, vales, bosques... Radcliffe é uma verdadeira paisagista; ela escreve dezenas de páginas dedicadas às descrições das paisagens, o que torna a leitura bastante cansativa e quase dormi em alguns momentos rsrsrsrs. Até gosto e aprecio paisagens, mas as descrições da autora são bastante exageradas mesmo, e acredito que isso chega a ser um defeito. (E dizem que José de Alencar descrevia paisagens... Leiam Udolpho, que vocês verão!) Um fato interessante é que, num desses passeios, Emily descobre ter um admirador secreto, ao ver uns versos escritos numa cabine de pesca da família.

A morte da mãe de Emily é outro acontecimento que abala a família St. Aubert. Emily, porém, fica intrigada, por esse tempo, ao surpreender o pai chorando e beijando a fotografia de uma mulher que não era Madame St. Aubert; a garota, em respeito ao pai, prefere silenciar o caso. O viúvo acaba tendo sua saúde agravada e é recomendado por um médico a viajar para respirar os ares de Languedoc. Naquele tempo, o ar de certos lugares era um forte lenitivo rsrsrs. St. Aubert atende o conselho médico e prepara carros e cavalos para seguir uma jornada até Languedoc. Mas não pensem que ele segue o caminho convencional e mais direto; antes, prefere fazer um arrodeio que torna a viagem muito mais longa, com o fim de apreciar paisagens e mais paisagens românticas. Vocês devem imaginar o que acontece agora, sim?! Exatamente: descrições, descrições e mais descrições de toda a jornada, de cada galhinho dos vários tufos agrestes, de cada ladeira íngreme... Tudo isso me fez pensar que a Sra. Radcliffe daria uma perfeita escritora de livros de viagens, daqueles que eram bastante comuns até meados do século passado. Outro defeito: a lentidão da narrativa. É necessária muita paciência neste ponto do enredo.

Durante a jornada, St. Aubert é surpreendido por um estranho caçador que aparece no meio do caminho. Trata-se de Valancourt, que acaba fazendo-se amigo de todos. Esse moço é uma espécie de aventureiro que pratica a caça mais por diversão do que por necessidade, e é outro admirador de paisagens naturais; daí a fácil interação com St. Aubert. Valancourt decide acompanhar aqueles novos amigos até certo ponto da viagem, fazendo-lhes orientações e tirando certas dúvidas em relação ao caminho. Acabei esquecendo de dizer que outro fator que permeia toda a obra de Radcliffe é a poesia. Todos os capítulos são introduzidos por trechos de poemas de escritores famosos, além do que, por diversas vezes, a autora completa ideias que formula a partir de citações diretas de poetas, sobretudo Thomson, Milton e Shakespeare. Em várias das cenas contemplativas, Emily compõe poemas, além de estar sempre acompanhada de algum livro de Ariosto, passando também a apreciar Petrarca por influência de Valancourt que, nem preciso dizer, é o mocinho da história: um dos mais chatos que já conheci também, e logo direi por quê.

Para não perder o ar fúnebre da história, St. Aubert acaba morrendo num dos vários chalés em que sua comitiva se hospeda. Essas hospedagens constituem o defeito que já citei das cenas desnecessárias e que só servem para dar volume ao livro que possui mais de 600 páginas daquelas que não poupam papel mesmo rsrsrsrs. O chalé onde morre St. Aubert fica próximo a um tenebroso castelo, que não é Udolpho! Trata-se do mal-assombrado Chateau-le-Blanc, que está desabitado desde a morte de uma tal Marquesa de Villeroi, que quando citada pelo dono do chalé, causa uma medonha impressão em St. Aubert, o que talvez tenha até colaborado para sua morte. Antes de morrer, St. Aubert incumbe sua filha de voltar a La Valée para destruir certos documentos que não deveriam ser lidos nem pela própria Emily. Nossa heroína fica ainda mais intrigada com o pedido do pai, pois também observara a reação dele quando feita alguma menção à Marquesa de Villeroi. St. Aubert pedira ainda que Emily fosse morar com sua tia: Madame Cheron; e que sepultassem seu corpo num convento próximo dali, junto ao túmulo dos Villeroi.

Emily regressa a La Valée para cumprir o pedido de seu pai, mas antes de destruir os tais papéis, involuntariamente passa os olhos por eles, e percebe algo que lhe faz estremecer. Ao longo de todo o romance, a autora vai acumulando inúmeros mistérios que só serão solucionados nos capítulos finais do livro; e isso dá muita raiva no leitor, porque o entendimento de diversas passagens da obra fica sempre comprometido pela falta dessas revelações, mas percebo claramente que essa era a intenção da autora: perturbar o leitor. Em La Valée, quem aparece inesperadamente? Valancourt, que finalmente declara seu amor por Emily. A tímida garota fica ainda mais desconcertada com a surpreendente aparição de Madame Cheron, que logo faz um mau julgamento da sobrinha, por ela estar a sós com um homem.

Emily recebe as censuras de sua tia e vai morar com ela em Toulouse (residência de Madame Cheron). A austera tia proíbe encontros entre sua sobrinha e Valancourt, pois descobre ser ele mais ou menos um pé-rapado, que vive sob a proteção de um irmão mais velho. Após ficar sabendo, contudo, sobre um parentesco entre o amado de Emily e Madame Clairval, uma influente senhora, Madame Cheron consente em que o distinto moço visite sua sobrinha. Essa fase é uma das mais agradáveis de Udolpho; quero dizer: depois de tanta lentidão e contemplação, temos finalmente um pouco de movimento e animosidade no enredo. A relação entre Emily e Valancourt se fortalece nesse período e os dois desejam casar-se urgentemente. Mas como estamos diante de um movimentado romance do século XVIII, nada se consegue tão fácil. A viúva Madame Cheron que, ainda um tanto jovem, tem lá suas necessidades carnais, recebe os galanteios de Montoni, um cavalheiro italiano com ares de rico, e acaba casando-se com ele.

Agora, por favor, permitam que me detenha um pouco nesse importante personagem; deixem-me defendê-lo também, pois o diabo não é tão feio como se pinta. Digo isso porque, antes de ler Udolpho, percebi certa propagação da figura de Montoni como um ser perverso, abominável e um terrível vilão. Esperava, portanto, um vilão daqueles! Mas a verdade é que Montoni é tão fraco vilão quanto fraco herói é Valancourt. A vilania de Montoni se manifesta unicamente através de sua exacerbada ambição. O desejo de ser mais e mais rico foi que o levou a casar-se com Madame Cheron que, por sua vez, casou-se com ele, vislumbrando também alguma fortuna. Quando Montoni percebe que a viúva nem era tão rica assim, e quando ela toma conhecimento da real condição de seu adorável marido, o casamento dos dois acaba se tornando insuportável. O plano de Montoni, portanto, é apoderar-se dos bens de Madame Montoni (Madame Cheron passa a ser denominada assim) e tirar algum proveito de Emily, a partir de uma aliança vantajosa que deseja obter para ela. Definitivamente, Valancourt não corresponde aos interesses de Montoni; por isso mesmo, ele proíbe o casamento dos apaixonados, decidindo ainda levar toda a sua nova família para morar no castelo de Udolpho, na Itália. Aceito que ele não agiu bem, que é um mau-caráter, um homem egoísta, ganancioso e tudo o mais; mas não me pareceu o cruel vilão que muita gente pintou. O coronel Belgrave (de Oscar e Amanda) e a Condessa de Roskelin (de Saint-Clair das Ilhas) são muito piores no que diz respeito à realização de maldades e baixezas.

Valancourt propõe uma fuga a Emily, que é impedida por seus escrúpulos de optar por tal atitude. O casalzinho se despede e Emily vai para seu calvário em Udolpho. Algumas pessoas atribuem esse calvário unicamente a Montoni, por ter sido ele quem levou Emily para lá, mas percebi que considerável parte dos sofrimentos e aflições passados pela jovem é provocada por outros fatores e personagens, como o Conde Morano, que julgo muito mais vil e detestável que o próprio Montoni. Esse Conde Morano, do círculo de amizades do novo tio de Emily, acaba se apaixonando pela garota, e é o pretendente favorito de Montoni, pois ele pensa que o Conde é possuidor de grande fortuna. Quando, porém, é descoberta a real situação do Conde, Montoni prefere descartá-lo, o que deixa Morano bastante revoltado e decidido a optar por um ardiloso e hostil plano para raptar Emily.

Montoni insiste que sua Madame passe para seu nome suas propriedades imediatamente, temendo que, com a morte dela, Emily herde esses bens. Madame Montoni não atende às relutâncias do marido, o que torna o comportamento dele ainda mais áspero para com ela. Logo, Emily e sua tia percebem que estão praticamente encarceradas em Udolpho, sob o julgo de Montoni que, ainda em seus planos de fazer fortuna, forma uma espécie de banco de soldados para atender às necessidades guerrilheiras da época, mas o bando acaba investindo de maneira ilegal por onde passa, ganhando inclusive fama de saqueador. Uma tentativa de envenenamento faz Montoni desconfiar de todos em Udolpho, mas ele tem uma suspeita maior sobre sua mulher; por esse motivo, ele a encarcera num quarto isolado do castelo, abandonando-a à sua própria sorte. De todas as maldades de Montoni, essa foi a mais grave. Os paratextos da edição da Pedrazul dão a informação de que Montoni privou sua senhora de água e comida, mas penso que isso foi um equívoco da editora, pois não percebi nenhuma passagem que afirmasse tal privação. Do que Montoni realmente privou sua senhora foram de cuidados e remédios quando a mesma adoeceu em seu isolamento.

Agora, detenhamo-nos na pressão sobrenatural do castelo de Udolpho sobre Emily. Além da inevitável preocupação com sua tia, Emily tem grandes sustos ao longo de toda sua estadia em Udolpho, a começar pelo seu próprio quarto que possui uma porta de comunicação com uma escadaria secreta, o que parece muito suspeito e perigoso. Eis um talento que Radcliffe deixou bastante evidenciado em seu romance: a tenuidade entre o real e o sobrenatural. Passos misteriosos, passagens secretas, vozes soturnas, aparições não identificadas, sons de música em horários inviáveis, relatos sobrenaturais; todos esses recursos típicos do romance gótico foram muito bem utilizados na construção de cenas de suspense muito bem realizadas. Todos esses elementos do gótico unidos às inquietações de Emily sobre a misteriosa relação entre seu pai, a Marquesa de Villeroi e o castelo de Udolpho dão ao livro uma atmosfera bastante instigante (em momentos). Enquanto Emily padece horrores em Udolpho, Valancourt vai se divertir na boemia e no mundo do jogo, pois desesperançado em relação a Emily, acredita ser necessário esquecê-la. Acho que isso já deixa bem claro o quão chato ele é! Senti falta de um herói de verdade em alguns momentos, e como a própria autora parecia ser consciente do fracasso do seu herói, ela encarrega personagens secundários (como Ludovico e Monsieur Du Pont) de algumas missões heroicas.

Outra coisa que me incomodou bastante no livro foi a falta de criatividade da autora na confecção de personagens e espaços importantes, de maneira que temos repetições constantes de várias figuras, elementos e situações. A tensão perturbadora passada por Emily em Udolpho assemelha-se bastante à que a mesma passará em Chateau-le-Blanc, em outro momento do livro. O mistério sobre o destino da Marquesa de Villeroi também se assemelha ao inexplicável fim de Lady Laurentini, antiga moradora de Udolpho. Em suma: temos dois castelos mal-assombrados que encobrem segredos sobre suas antigas moradoras. Em alguns momentos, eu confundia muito as duas damas e seus mistérios, dada a semelhança das histórias e ao elo obscuro entre elas. Em outro momento, o livro apresenta a família do Conde de Villefort, homem cujo caráter é bastante semelhante ao do falecido St. Aubert; e de sobra, ele tem uma filha, Lady Blanche, que é a própria Emily, com seus instrumentos musicais, contemplações da natureza e poemas de inspiração paisagística. Essa família herdou o castelo de Chateau-le-Blanc com a morte do Marquês de Villeroi, pois o Conde de Villefort era primo dele. Monsieur Du Pont, que já citei como personagem secundário, é o próprio Valancourt antes da perversão. E poderia citar mais exemplos, mas esse negócio já está me saindo maior do que previ. E vocês não devem estar entendendo mais nada rsrsrs.

Agora, finalmente, deixem-me fazer este desabafo final sobre minha reação daquilo que julguei ser um defeito incorrigível em Udolpho, e um dos que mais me incomodaram também. Além da forma como Radcliffe construiu sua narrativa ser um tanto inconveniente, especialmente pelas cansativas descrições de paisagens e hiatos totalmente desnecessários, a força do romance, que está de certo modo nos mistérios que vão sendo acumulados durante MUITO TEMPO ao longo de TODO O LIVRO, acaba fraquejando, e a obra meio que desmorona ante o descontentamento do leitor. Isto porque a solução e explicações que deslindam todos os mistérios não me pareceram muito convincentes, ou pelo menos foram insuficientes, pois depois que você lê um livro que faz mil especulações sobre aquilo que parece ser um dos maiores mistérios do mundo, e que você se depara com uma solução tão boba (eu diria), todo o resto da história parece ter sido irrelevante. Deixo claro que esta e todas as demais impressões relatadas anteriormente são de cunho estritamente pessoal.

Pronto! Acho que deixei bem claro o que vi de bom e ruim em Udolpho, sem revelar o fabuloso segredo do livro. Apesar dos defeitos apontados, imagino que tenha ficado perceptível o valor da obra e até mesmo alguma novidade que ela trouxe, não só por ter sido uma das pioneiras do romance gótico, mas por todas suas sutilezas. Se vale a pena ler? Isso depende de quem for ler. Pra mim, não foi ótimo ou excelente, mas foi bom. Se Radcliffe tivesse melhor enxugado sua obra, excluindo as descrições e hiatos desnecessários, o livro continuaria sendo só isso: bom; mas, ao menos, teria me poupado um tempão! No mais, a experiência, sendo positiva ou negativa, é sempre válida; e isto é o que conta, não? Mas esse, definitivamente, não é um livro que eu pretenda reler!

Desculpem-me por ter me estendido tanto! Precisava disso... rsrsrsrs.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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