*
Quando
soube que Oscar e Amanda (1796), de
Regina Maria Roche rivalizou a popularidade de Os Mistérios de Udolpho (1794), de Ann Radcliffe, e eu já tinha
lido o primeiro, fiquei bastante curioso para ler o tal Udolpho, imaginando que seria tão bom quanto o outro.
Coincidentemente, a Editora Pedrazul tinha acabado de lançar, ano passado, numa
edição em 2 volumes, Os Mistérios de
Udolpho, que é mais conhecido por ter sido citado em A Abadia de Northanger, por Jane Austen. Desejo ardentemente que Oscar e Amanda também seja lançado, uma
vez que, assim como Udolpho, também é
citado no já referido livro da Jane Austen (com o título original, é claro: The Children of the Abbey).
Finalmente
li Udolpho e não... Não foi melhor
que Oscar e Amanda que, a meu ver,
possui um enredo muito mais interessante e inteligente. O romance da Radcliffe
não é ruim, mas possui uma série de defeitos que acabam comprometendo a integridade
da obra. Por outro lado, reconheço que o livro possui certas qualidades, a
começar por ser um dos primeiros romances góticos escritos por uma autora
inglesa. O pior defeito da obra é ser demasiadamente extensa por conta de
episódios desnecessários que em nada contribuem para o desenvolvimento da
narrativa. Passemos então ao enredo para melhor identificar minhas
considerações acerca desse livro.
Em
1584, na província da Gasconha, na França, morava a família de Monsieur St.
Aubert no castelo denominado La Valée. Antigamente, era bastante comum nomear
as grandes propriedades da nobreza, especialmente na Europa. Em La Valée,
residiam St. Aubert, sua esposa, seus três filhos e alguns criados. St. Aubert
é um homem simples e apaixonado por botânica; daí sua ideia de abandonar os
progressos da capital para residir num ambiente todo cercado pelas belezas e
paisagens naturais. De uma moral bastante elevada, ele educa os filhos de
acordo com seus princípios mais nobres, até ser fulminado pela morte de dois
deles, restando-lhe somente a jovem e bela Emily, a quem St. Aubert passa a
dedicar-se com máximo empenho.
Esses
três entes queridos amam-se com dedicação e compartilham das mesmas afeições,
sobretudo a paixão pela natureza. Os primeiros capítulos de Udolpho descrevem minuciosamente
diversas cenas contemplativas, em que nossos três personagens apreciam os
detalhes das belezas naturais: as árvores, flores, penhascos, vales, bosques...
Radcliffe é uma verdadeira paisagista; ela escreve dezenas de páginas dedicadas
às descrições das paisagens, o que torna a leitura bastante cansativa e quase
dormi em alguns momentos rsrsrsrs. Até gosto e aprecio paisagens, mas as
descrições da autora são bastante exageradas mesmo, e acredito que isso chega a
ser um defeito. (E dizem que José de Alencar descrevia paisagens... Leiam Udolpho, que vocês verão!) Um fato
interessante é que, num desses passeios, Emily descobre ter um admirador
secreto, ao ver uns versos escritos numa cabine de pesca da família.
A
morte da mãe de Emily é outro acontecimento que abala a família St. Aubert.
Emily, porém, fica intrigada, por esse tempo, ao surpreender o pai chorando e
beijando a fotografia de uma mulher que não era Madame St. Aubert; a garota, em
respeito ao pai, prefere silenciar o caso. O viúvo acaba tendo sua saúde
agravada e é recomendado por um médico a viajar para respirar os ares de
Languedoc. Naquele tempo, o ar de certos lugares era um forte lenitivo rsrsrs.
St. Aubert atende o conselho médico e prepara carros e cavalos para seguir uma
jornada até Languedoc. Mas não pensem que ele segue o caminho convencional e
mais direto; antes, prefere fazer um arrodeio que torna a viagem muito mais
longa, com o fim de apreciar paisagens e mais paisagens românticas. Vocês devem
imaginar o que acontece agora, sim?! Exatamente: descrições, descrições e mais
descrições de toda a jornada, de cada galhinho dos vários tufos agrestes, de
cada ladeira íngreme... Tudo isso me fez pensar que a Sra. Radcliffe daria uma
perfeita escritora de livros de viagens, daqueles que eram bastante comuns até
meados do século passado. Outro defeito: a lentidão da narrativa. É necessária
muita paciência neste ponto do enredo.
Durante
a jornada, St. Aubert é surpreendido por um estranho caçador que aparece no
meio do caminho. Trata-se de Valancourt, que acaba fazendo-se amigo de todos.
Esse moço é uma espécie de aventureiro que pratica a caça mais por diversão do
que por necessidade, e é outro admirador de paisagens naturais; daí a fácil
interação com St. Aubert. Valancourt decide acompanhar aqueles novos amigos até
certo ponto da viagem, fazendo-lhes orientações e tirando certas dúvidas em
relação ao caminho. Acabei esquecendo de dizer que outro fator que permeia toda
a obra de Radcliffe é a poesia. Todos os capítulos são introduzidos por trechos
de poemas de escritores famosos, além do que, por diversas vezes, a autora
completa ideias que formula a partir de citações diretas de poetas, sobretudo
Thomson, Milton e Shakespeare. Em várias das cenas contemplativas, Emily compõe
poemas, além de estar sempre acompanhada de algum livro de Ariosto, passando
também a apreciar Petrarca por influência de Valancourt que, nem preciso dizer,
é o mocinho da história: um dos mais
chatos que já conheci também, e logo direi por quê.
Para
não perder o ar fúnebre da história, St. Aubert acaba morrendo num dos vários
chalés em que sua comitiva se hospeda. Essas hospedagens constituem o defeito
que já citei das cenas desnecessárias e que só servem para dar volume ao livro
que possui mais de 600 páginas daquelas que não poupam papel mesmo rsrsrsrs. O
chalé onde morre St. Aubert fica próximo a um tenebroso castelo, que não é
Udolpho! Trata-se do mal-assombrado Chateau-le-Blanc, que está desabitado desde
a morte de uma tal Marquesa de Villeroi, que quando citada pelo dono do chalé,
causa uma medonha impressão em St. Aubert, o que talvez tenha até colaborado
para sua morte. Antes de morrer, St. Aubert incumbe sua filha de voltar a La
Valée para destruir certos documentos que não deveriam ser lidos nem pela
própria Emily. Nossa heroína fica ainda mais intrigada com o pedido do pai,
pois também observara a reação dele quando feita alguma menção à Marquesa de
Villeroi. St. Aubert pedira ainda que Emily fosse morar com sua tia: Madame
Cheron; e que sepultassem seu corpo num convento próximo dali, junto ao túmulo
dos Villeroi.
Emily
regressa a La Valée para cumprir o pedido de seu pai, mas antes de destruir os
tais papéis, involuntariamente passa os olhos por eles, e percebe algo que lhe
faz estremecer. Ao longo de todo o romance, a autora vai acumulando inúmeros
mistérios que só serão solucionados nos capítulos finais do livro; e isso dá
muita raiva no leitor, porque o entendimento de diversas passagens da obra fica
sempre comprometido pela falta dessas revelações, mas percebo claramente que
essa era a intenção da autora: perturbar o leitor. Em La Valée, quem aparece
inesperadamente? Valancourt, que finalmente declara seu amor por Emily. A
tímida garota fica ainda mais desconcertada com a surpreendente aparição de
Madame Cheron, que logo faz um mau julgamento da sobrinha, por ela estar a sós
com um homem.
Emily
recebe as censuras de sua tia e vai morar com ela em Toulouse (residência de
Madame Cheron). A austera tia proíbe encontros entre sua sobrinha e Valancourt,
pois descobre ser ele mais ou menos um pé-rapado, que vive sob a proteção de um
irmão mais velho. Após ficar sabendo, contudo, sobre um parentesco entre o
amado de Emily e Madame Clairval, uma influente senhora, Madame Cheron consente
em que o distinto moço visite sua
sobrinha. Essa fase é uma das mais agradáveis de Udolpho; quero dizer: depois de tanta lentidão e contemplação,
temos finalmente um pouco de movimento e animosidade no enredo. A relação entre
Emily e Valancourt se fortalece nesse período e os dois desejam casar-se
urgentemente. Mas como estamos diante de um movimentado
romance do século XVIII, nada se consegue tão fácil. A viúva Madame Cheron que,
ainda um tanto jovem, tem lá suas necessidades carnais, recebe os galanteios de
Montoni, um cavalheiro italiano com ares de rico, e acaba casando-se com ele.
Agora,
por favor, permitam que me detenha um pouco nesse importante personagem;
deixem-me defendê-lo também, pois o diabo não é tão feio como se pinta. Digo
isso porque, antes de ler Udolpho,
percebi certa propagação da figura de Montoni como um ser perverso, abominável
e um terrível vilão. Esperava, portanto, um vilão daqueles! Mas a verdade é que
Montoni é tão fraco vilão quanto fraco herói é Valancourt. A vilania de Montoni
se manifesta unicamente através de sua exacerbada ambição. O desejo de ser mais
e mais rico foi que o levou a casar-se com Madame Cheron que, por sua vez,
casou-se com ele, vislumbrando também alguma fortuna. Quando Montoni percebe
que a viúva nem era tão rica assim, e quando ela toma conhecimento da real
condição de seu adorável marido, o casamento dos dois acaba se tornando
insuportável. O plano de Montoni, portanto, é apoderar-se dos bens de Madame
Montoni (Madame Cheron passa a ser denominada assim) e tirar algum proveito de
Emily, a partir de uma aliança vantajosa que deseja obter para ela.
Definitivamente, Valancourt não corresponde aos interesses de Montoni; por isso
mesmo, ele proíbe o casamento dos apaixonados, decidindo ainda levar toda a sua
nova família para morar no castelo de Udolpho, na Itália. Aceito que ele não
agiu bem, que é um mau-caráter, um homem egoísta, ganancioso e tudo o mais; mas
não me pareceu o cruel vilão que muita gente pintou. O coronel Belgrave (de Oscar e Amanda) e a Condessa de Roskelin
(de Saint-Clair das Ilhas) são muito
piores no que diz respeito à realização de maldades e baixezas.
Valancourt
propõe uma fuga a Emily, que é impedida por seus escrúpulos de optar por tal
atitude. O casalzinho se despede e Emily vai para seu calvário em Udolpho.
Algumas pessoas atribuem esse calvário unicamente a Montoni, por ter sido ele
quem levou Emily para lá, mas percebi que considerável parte dos sofrimentos e
aflições passados pela jovem é provocada por outros fatores e personagens, como
o Conde Morano, que julgo muito mais vil e detestável que o próprio Montoni.
Esse Conde Morano, do círculo de amizades do novo tio de Emily, acaba se apaixonando pela garota, e é o
pretendente favorito de Montoni, pois ele pensa que o Conde é possuidor de
grande fortuna. Quando, porém, é descoberta a real situação do Conde, Montoni
prefere descartá-lo, o que deixa Morano bastante revoltado e decidido a optar
por um ardiloso e hostil plano para raptar Emily.
Montoni
insiste que sua Madame passe para seu nome suas propriedades imediatamente,
temendo que, com a morte dela, Emily herde esses bens. Madame Montoni não
atende às relutâncias do marido, o que torna o comportamento dele ainda mais
áspero para com ela. Logo, Emily e sua tia percebem que estão praticamente
encarceradas em Udolpho, sob o julgo de Montoni que, ainda em seus planos de
fazer fortuna, forma uma espécie de banco de soldados para atender às
necessidades guerrilheiras da época, mas o bando acaba investindo de maneira
ilegal por onde passa, ganhando inclusive fama de saqueador. Uma tentativa de
envenenamento faz Montoni desconfiar de todos em Udolpho, mas ele tem uma
suspeita maior sobre sua mulher; por esse motivo, ele a encarcera num quarto
isolado do castelo, abandonando-a à sua própria sorte. De todas as maldades de
Montoni, essa foi a mais grave. Os paratextos da edição da Pedrazul dão a
informação de que Montoni privou sua senhora de água e comida, mas penso que
isso foi um equívoco da editora, pois não percebi nenhuma passagem que
afirmasse tal privação. Do que Montoni realmente privou sua senhora foram de cuidados
e remédios quando a mesma adoeceu em seu isolamento.
Agora,
detenhamo-nos na pressão sobrenatural do castelo de Udolpho sobre Emily. Além
da inevitável preocupação com sua tia, Emily tem grandes sustos ao longo de
toda sua estadia em Udolpho, a começar pelo seu próprio quarto que possui uma
porta de comunicação com uma escadaria secreta, o que parece muito suspeito e
perigoso. Eis um talento que Radcliffe deixou bastante evidenciado em seu
romance: a tenuidade entre o real e o sobrenatural. Passos misteriosos,
passagens secretas, vozes soturnas, aparições não identificadas, sons de música
em horários inviáveis, relatos sobrenaturais; todos esses recursos típicos do
romance gótico foram muito bem utilizados na construção de cenas de suspense
muito bem realizadas. Todos esses elementos do gótico unidos às inquietações de
Emily sobre a misteriosa relação entre seu pai, a Marquesa de Villeroi e o
castelo de Udolpho dão ao livro uma atmosfera bastante instigante (em
momentos). Enquanto Emily padece horrores em Udolpho, Valancourt vai se
divertir na boemia e no mundo do jogo, pois desesperançado em relação a Emily,
acredita ser necessário esquecê-la. Acho que isso já deixa bem claro o quão
chato ele é! Senti falta de um herói de verdade em alguns momentos, e como a
própria autora parecia ser consciente do fracasso do seu herói, ela encarrega personagens secundários (como Ludovico e
Monsieur Du Pont) de algumas missões heroicas.
Outra
coisa que me incomodou bastante no livro foi a falta de criatividade da autora
na confecção de personagens e espaços importantes, de maneira que temos
repetições constantes de várias figuras, elementos e situações. A tensão
perturbadora passada por Emily em Udolpho assemelha-se bastante à que a mesma
passará em Chateau-le-Blanc, em outro momento do livro. O mistério sobre o
destino da Marquesa de Villeroi também se assemelha ao inexplicável fim de Lady
Laurentini, antiga moradora de Udolpho. Em suma: temos dois castelos
mal-assombrados que encobrem segredos sobre suas antigas moradoras. Em alguns
momentos, eu confundia muito as duas damas e seus mistérios, dada a semelhança
das histórias e ao elo obscuro entre elas. Em outro momento, o livro apresenta
a família do Conde de Villefort, homem cujo caráter é bastante semelhante ao do
falecido St. Aubert; e de sobra, ele tem uma filha, Lady Blanche, que é a
própria Emily, com seus instrumentos musicais, contemplações da natureza e
poemas de inspiração paisagística. Essa família herdou o castelo de
Chateau-le-Blanc com a morte do Marquês de Villeroi, pois o Conde de Villefort
era primo dele. Monsieur Du Pont, que já citei como personagem secundário, é o
próprio Valancourt antes da perversão. E poderia citar mais exemplos, mas esse
negócio já está me saindo maior do que previ. E vocês não devem estar
entendendo mais nada rsrsrs.
Agora,
finalmente, deixem-me fazer este desabafo final sobre minha reação daquilo que
julguei ser um defeito incorrigível em Udolpho,
e um dos que mais me incomodaram também. Além da forma como Radcliffe construiu
sua narrativa ser um tanto inconveniente, especialmente pelas cansativas
descrições de paisagens e hiatos totalmente desnecessários, a força do romance,
que está de certo modo nos mistérios que vão sendo acumulados durante MUITO TEMPO
ao longo de TODO O LIVRO, acaba fraquejando, e a obra meio que desmorona ante o
descontentamento do leitor. Isto porque a solução e explicações que deslindam
todos os mistérios não me pareceram muito convincentes, ou pelo menos foram insuficientes,
pois depois que você lê um livro que faz mil especulações sobre aquilo que
parece ser um dos maiores mistérios do mundo, e que você se depara com uma
solução tão boba (eu diria), todo o resto da história parece ter sido irrelevante.
Deixo claro que esta e todas as demais impressões relatadas anteriormente são
de cunho estritamente pessoal.
Pronto!
Acho que deixei bem claro o que vi de bom e ruim em Udolpho, sem revelar o fabuloso
segredo do livro. Apesar dos defeitos apontados, imagino que tenha ficado
perceptível o valor da obra e até mesmo alguma novidade que ela trouxe, não só
por ter sido uma das pioneiras do romance gótico, mas por todas suas sutilezas.
Se vale a pena ler? Isso depende de quem for ler. Pra mim, não foi ótimo ou excelente,
mas foi bom. Se Radcliffe tivesse melhor enxugado sua obra, excluindo as
descrições e hiatos desnecessários, o livro continuaria sendo só isso: bom; mas,
ao menos, teria me poupado um tempão! No mais, a experiência, sendo positiva ou
negativa, é sempre válida; e isto é o que conta, não? Mas esse,
definitivamente, não é um livro que eu pretenda reler!
Desculpem-me
por ter me estendido tanto! Precisava disso... rsrsrsrs.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
***
Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798 Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário