sábado, 1 de junho de 2019

A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls - RESENHA #98

Gastão Cruls (1888-1959) foi um escritor carioca do século passado que, embora hoje bastante esquecido, surpreendeu-me bastante com seu A Amazônia Misteriosa (1925), que mistura aventura, ficção científica e prosa regionalista, além de outros elementos diversos que tanto enriqueceram o dito romance.

A escrita do autor é admiravelmente bem delineada, prezando por uma linguagem que, mesmo ataviada de termos regionais (convenientemente esclarecidos num “elucidário” anexo à obra), mantém-se clara e acessível. O texto é de uma correção impecável, persistindo em frases bem elaboradas e de bom tom, remetendo-nos ao estilo clássico dos melhores prosadores oitocentistas.

Percebe-se na escrita de Cruls uma paixão pelo exercício de sua obra. Quase que podia pressentir o entusiasmo experimentado por ele na construção do romance, cujo principal método era sua própria vontade. Há uma despreocupação pelo ritmo ou mesmo quanto à pintura de episódios fantásticos. O que temos é o relato tão minucioso quanto convincente de um médico que, durante uma expedição pela Amazônia, acaba perdendo-se do seu grupo, restando-lhe seguir (com dois companheiros que tiveram a mesma desdita) sem uma direção certa.

Esse médico (cujo nome não é revelado, sendo tratado apenas por “doutor”), juntamente com seus companheiros Piauí e Pacatuba, acaba se deparando com os índios guacaris. Após uma rápida estada na tribo daqueles selvagens, os três aventureiros são levados para outro aldeamento, este constituído exclusivamente por índias. A surpresa maior, porém, consiste na presença de um casal europeu naquele recinto.

O doutor Hartmann é um médico alemão e Rosina, sua esposa, uma bela francesa. Os dois mantêm-se reservados quanto aos motivos de estarem confinados naquela região. O alemão apenas compartilha com o “doutor” sua teoria de que aquelas indígenas eram descendentes diretas das lendárias amazonas descobertas pelo espanhol Francisco Orellana no século XVI. Mas, a partir de suas próprias investigações, o “doutor” descobre que Hartmann é na verdade uma espécie de “Dr. Moreau”, sendo ainda mais digno de censura por realizar experimentos duvidosos com seres humanos.

Conhecendo-se descoberto, Hartmann, que pretendia ajudar os perdidos no retorno ao grupo dos expedicionários, decide mantê-los confinados na tribo das amazonas até a conclusão de seus experimentos polêmicos. Acreditando na promessa de que sua permanência ali não seria duradoura, o “doutor” concentra-se na cuidadosa observação daquele lugar, estimulado sempre pela interessante Rosina, que se propõe a guiá-lo por passeios que descobrirão, além de curiosas cenas naturais, um sentimento correspondente entre os dois. Contudo, para a realização livre e permanente de seus amores, há uma única e perigosíssima saída: fugir.

Poderia mencionar muitos elementos secundários do romance de Gastão Cruls, mas, não querendo prolongar-me em excesso, destaco o trato dado aos personagens secundários, especialmente Pacutuba e Malila. O primeiro, um saudoso paraibano que diverte bastante o leitor com suas trapalhadas e ditos jocosos; a outra, uma indiazinha muito jovem a quem Rosina ensinou o francês e que, por sua conduta fiel e gentil, dá um colorido especial às cenas das quais participa.

Uma obra assim tão completa e tão rica seguramente sugere ser merecedora de uma avaliação mais feliz que esta que lhe dou. Acredito que o grande problema do livro seja mesmo esse grande deslumbre já mencionado do autor por sua obra. Certamente as muitas descrições e passagens arrastadas do romance refletem um prazer pessoal e particular de um artista em atividade, cujo principal interesse é regalar-se intimamente em detrimento de ambições literárias. Independente de não compartilhar do mesmo entusiasmo, experimentei uma leitura deliciosamente agradável. Para Gastão Cruls, talvez, isto já fosse suficiente.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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