Gastão Cruls (1888-1959) foi um escritor carioca
do século passado que, embora hoje bastante esquecido, surpreendeu-me bastante
com seu A Amazônia Misteriosa (1925),
que mistura aventura, ficção científica e prosa regionalista, além de outros
elementos diversos que tanto enriqueceram o dito romance.
A escrita do autor é admiravelmente bem
delineada, prezando por uma linguagem que, mesmo ataviada de termos regionais
(convenientemente esclarecidos num “elucidário” anexo à obra), mantém-se clara
e acessível. O texto é de uma correção impecável, persistindo em frases bem
elaboradas e de bom tom, remetendo-nos ao estilo clássico dos melhores prosadores
oitocentistas.
Percebe-se na escrita de Cruls uma paixão pelo
exercício de sua obra. Quase que podia pressentir o entusiasmo experimentado
por ele na construção do romance, cujo principal método era sua própria
vontade. Há uma despreocupação pelo ritmo ou mesmo quanto à pintura de
episódios fantásticos. O que temos é o relato tão minucioso quanto convincente
de um médico que, durante uma expedição pela Amazônia, acaba perdendo-se do seu
grupo, restando-lhe seguir (com dois companheiros que tiveram a mesma desdita)
sem uma direção certa.
Esse médico (cujo nome não é revelado, sendo
tratado apenas por “doutor”), juntamente com seus companheiros Piauí e Pacatuba,
acaba se deparando com os índios guacaris. Após uma rápida estada na tribo daqueles
selvagens, os três aventureiros são levados para outro aldeamento, este
constituído exclusivamente por índias. A surpresa maior, porém, consiste na
presença de um casal europeu naquele recinto.
O doutor Hartmann é um médico alemão e Rosina,
sua esposa, uma bela francesa. Os dois mantêm-se reservados quanto aos motivos
de estarem confinados naquela região. O alemão apenas compartilha com o “doutor”
sua teoria de que aquelas indígenas eram descendentes diretas das lendárias
amazonas descobertas pelo espanhol Francisco Orellana no século XVI. Mas, a
partir de suas próprias investigações, o “doutor” descobre que Hartmann é na
verdade uma espécie de “Dr. Moreau”, sendo ainda mais digno de censura por
realizar experimentos duvidosos com seres humanos.
Conhecendo-se descoberto, Hartmann, que
pretendia ajudar os perdidos no retorno ao grupo dos expedicionários, decide
mantê-los confinados na tribo das amazonas até a conclusão de seus experimentos
polêmicos. Acreditando na promessa de que sua permanência ali não seria
duradoura, o “doutor” concentra-se na cuidadosa observação daquele lugar,
estimulado sempre pela interessante Rosina, que se propõe a guiá-lo por
passeios que descobrirão, além de curiosas cenas naturais, um sentimento
correspondente entre os dois. Contudo, para a realização livre e permanente de
seus amores, há uma única e perigosíssima saída: fugir.
Poderia mencionar muitos elementos secundários
do romance de Gastão Cruls, mas, não querendo prolongar-me em excesso, destaco
o trato dado aos personagens secundários, especialmente Pacutuba e Malila. O
primeiro, um saudoso paraibano que diverte bastante o leitor com suas trapalhadas
e ditos jocosos; a outra, uma indiazinha muito jovem a quem Rosina ensinou o
francês e que, por sua conduta fiel e gentil, dá um colorido especial às cenas
das quais participa.
Uma obra assim tão completa e tão rica
seguramente sugere ser merecedora de uma avaliação mais feliz que esta que lhe
dou. Acredito que o grande problema do livro seja mesmo esse grande deslumbre
já mencionado do autor por sua obra. Certamente as muitas descrições e
passagens arrastadas do romance refletem um prazer pessoal e particular de um
artista em atividade, cujo principal interesse é regalar-se intimamente em
detrimento de ambições literárias. Independente de não compartilhar do mesmo
entusiasmo, experimentei uma leitura deliciosamente agradável. Para Gastão
Cruls, talvez, isto já fosse suficiente.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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