sexta-feira, 12 de outubro de 2018

As Três Marias, de Rachel de Queiroz - RESENHA #79

Cada livro de Rachel é uma surpresa. Quando penso que não há mais nada que possa me mostrar, ela revela uma nova faceta, um novo recanto de sua escrita. É verdade que deixa de ser extraordinário depois de um tempo, mas sem nunca perder o encanto.

As tramas de Rachel geralmente são simples e sem grandes episódios. O seu segredo está na forma como ela as reproduz, seguindo livremente o curso de sua prosa, que é sempre (e sempre mesmo) fluida e empática. Para cada romance seu, há um método específico de construção; para todos eles, a mesma escrita sedutora e simpática.

Em As Três Marias (1939), aproveitando-se de algumas experiências pessoais, ela nos dá o relato intimista de uma mulher frágil, mas resistente. Esta, Maria Augusta, ou simplesmente Guta, conta-nos diversos episódios do processo de sua formação enquanto mulher. Vamos tomando nota, no ritmo despretensioso da personagem, deste caderno de memórias suas e dos outros.

Guta não esconde seus sentimentos nos registros que dispõe, ainda os mais íntimos. Fala abertamente de sua condição de garota órfã, cuja relação com a madrasta, não obstante ser amigável, mantém reservas. Faz ainda uma análise da postura do pai em cada um dos casamentos, apontando as diferenças observadas. Dá-nos, finalmente, dentre outros perfis, os de outras duas “Marias”: Maria da Glória e Maria José, suas amigas de internato.

Encerradas num colégio de freiras, “as três Marias” vão delineando distintas personalidades, assistidas por uma disciplina rigorosa de uma sociedade patriarcal. O mundo, lá fora, é um fascinante mistério que, paulatinamente, vai se revelando para elas, com seus encantos, preconceitos, misérias e convenções. Glória, órfã de pai e mãe, altiva e orgulhosa, é a mais disposta a encarar a vida sem maiores preocupações; Maria José, medrosa e carola, rege seu destino pelos princípios de sua fé; e nossa Guta, meditativa e incrédula, permite-se levar por caminhos desconhecidos, à procura de realização pessoal.

Socorro Acioli, em seu ensaio biográfico Rachel de Queiroz (Demócrito Rocha, 2003), designa As Três Marias como o mais lírico dos romances da autora de O Quinze, no que estou plenamente de acordo. Da primeira à última página, somos tragados pela poesia que acompanha todo o relato de Guta. A maneira como a protagonista expressa profundas divagações transporta-nos para seu interior, tornando-a desnuda aos nossos olhos. Assim, temos acesso direto às expectativas e conclusões dela sobre, principalmente, os homens com quem se relaciona: Raul, Aluísio e Isaac.

A trajetória de Maria Augusta é mais intuitiva que planejada. Como já mencionei, ela prefere deixar-se levar pelo incerto, pelas circunstâncias de cada momento, esteja a salvo ou não das dificuldades. Certamente o que mais me incomodava nela era sua disposição melancólica, que lhe suscitava ideias suicidas e uma visão menos otimista de seu amor-próprio. Enquanto Glória refugiava-se na ternura do casamento e Maria José na austeridade religiosa, à Guta faltava um apoio similar, talvez a confiança de alguém que iluminasse sua direção.

Eis um livro que carecia mais espaço. Maria da Glória e Maria José que o digam! Infelizmente não contamos com uma visão mais esclarecedora do desenvolvimento das companheiras de Maria Augusta. Outros personagens secundários acabam tomando a cena, a partir do que neles sugere interesse à narradora. Tal desconformidade não prejudica felizmente o sabor da obra, mas também não evita que fiquemos de certo modo insaciados.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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2 comentários:

  1. Saudações de novo Daniel. Sobre tua leitura sempre que podia comprava ou baixava da internet um livro de Rachel mas nunca surgiu a oportunidade de fato para começar a leitura de sua obra (o que é até um pouco vergonhoso), vi uma matéria ontem sobre uma entrevista que ela deu e agora leio sua resenha e estou empolgado para iniciar uma leitura de Rachel.
    Minha única dúvida seria sobre qual seria o melhor começo: As três Marias ou O Quinze?
    Um abraço.

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    1. Oi, Deison. Rachel é uma autora que com certeza merece ser lida. Se eu fosse você, começaria com "João Miguel", depois passaria para "O Quinze" e "Dôra, Doralina". Há quem goste muito da "Maria Moura" também, mas como antipatizei a protagonista, prefiro recomendar os outros rs. Não aconselharia que começasse com "As Três Marias", por ter uma proposta diferenciada. No mais, nenhum livro da Rachel (dos que eu li rs) será tempo perdido. Abraço!

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