sábado, 20 de outubro de 2018

A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco - RESENHA #81

Evitei por muito tempo este livro de Camilo, antipático que sou ao assunto “política”, sem descuidar do valor que ele (o livro) representa na colossal bibliografia do imortal português. Após conhecer os lances passionais do autor de Amor de Perdição, reconhecia a necessidade de encarar outras tendências cultivadas pelo mestre lusitano. A Queda dum Anjo (1866) certamente não foi a leitura mais agradável que Camilo me entregou, mas deu-me a felicidade de constatar que a febre dos amores, na qual ardia o romancista, impediu que a abordagem política empanasse os elementos mais simpáticos da novela.

Eu poderia ter apreciado mais este romance. Eis minha sensação final. O entrave maior, desta vez, não foi o hermetismo já tão conhecido na obra camiliana. O autor, autoconsciente de sua capacidade vocabular, e talvez criticado por seus excessos linguísticos, quis mostrar que o diabo pode ser muito mais feio do que se pinta. Decidiu pois que era necessário revelar a verdadeira verborragia: o vernáculo adornado de pretensões, o palanflório prolixo que nada diz. Para tal demonstração, ele nos dá o presunçoso Dr. Libório de Meireles, que rouba a paciência de Calisto Elói, o protagonista, tanto quanto dos leitores, com seus discursos incompreensíveis.

Os debates nas sessões parlamentares, onde se despeja a enfadonha demonstração do genuíno discurso verborrágico, foi o entrave maior de que falei. Ficava mesmo tentado a fechar o livro ou fazer leitura dinâmica rs. Compreendo as boas intenções do linguista, mas reprovei o exagerado método adotado para convencer-nos de que: “As laranjas, espremidas demais, dão sumo azedo, que corta a língua.” Tirante o enfado destas passagens irritantes, A Queda dum Anjo, se não toma ares de perfeição, admite uma leitura mais feliz.

Passando à narrativa, o autor nos apresenta Calisto Elói, um raro exemplar e representante do velho Portugal, cujos costumes são os mais antiquados possíveis, notados desde seu traje, do começo do século, até seus livros, nenhum deles com menos de cento e cinquenta anos. Este austero senhor é casado com uma prima, dona Teodora, senhora empenhada numa meticulosa economia doméstica. Logo de início somos levados a crer que o matrimônio dos dois é puramente convencional, não implicando sentimentalismo algum.

Calisto, com quarenta e quatro anos, sempre tivera o instinto do dever, combatendo com excessivas leituras os impulsos e afoitamentos da juventude. Sua louvada reputação faz dele um provinciano de destaque, sendo elegido, quase que por unanimidade, deputado de Miranda. Partindo para Lisboa, ele depara-se com uma realidade bem diversa daquela rezada em seus alfarrábios. A corte dá-lhe ensejo para o exercício de suas virtudes, que são logo alvo de censura pelos parlamentares liberais. A conduta do "anjo”, no entanto, acaba cedendo aos sintomas de uma “mocidade serôdia”.

O coração de Calisto, ainda virgem das paixões espontâneas, acaba incendiando naquele novo terreno, em contato com as damas elegantes da sociedade. Adelaide é a primeira mulher a fazê-lo perceber os encantos da paixão, que tiram-lhe o sono, que fazem-no cismar e compor versos. Calisto experimenta o ciúme, pelo pretendente jovem da donzela, e sofre o desprezo da mesma, que prefere ao outro. Eis os lances de uma mocidade tardia que, segundo o narrador, independente de tempo, é inevitável para todo e qualquer homem.

A impossibilidade do amor com Adelaide libera os sentimentos de Calisto para uma nova inclinação. É aí que surge Ifigênia, uma prima distante do deputado que, viúva, jovem e desamparada, recebe com acolhimento a proteção deste. Semelhante a Calisto, Ifigênia nunca conhecera o amor, tendo dedicado a seu marido um afeto paternal. Diante pois daquele coração igualmente virgem, não creio ser necessário explicar a qualidade da “queda” de que trata o título do romance.

Camilo, um brincalhão de primeira, já no título da obra reflete os preconceitos de sua época. Mas o que poderia ser uma “queda” para o público, a atitude de Calisto, para ele, era exemplo de libertação. De fato, não é um processo de perversão o que sofre o personagem; é antes um reconhecimento advindo de uma análise pessoal que o faz mudar. São os interesses pessoais que estão em jogo, bem aos olhos do leitor. O comportamento dos personagens é apenas reflexo desses interesses. O que poderia ser considerado uma “imoralidade” corresponderia ao ideal de “felicidade” de Calisto Elói.

Assim como no Amor de Salvação, a companhia de Camilo melhora consideravelmente a experiência de leitura, porque seu narrador traz marcas notadamente pessoais, o que nos faz senti-lo próximo e presente. Humor e ironia são ingredientes bem utilizados neste romance que, para minha surpresa, tirou-me boas gargalhadas, mesmo quando tratava de “política” rs.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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