Capa não original da 1ª edição |
Por sugestão de um leitor deste blog, o professor Victor
Rodrigues, decidi empreender a leitura de uma verdadeira raridade da literatura
cearense. Trata-se do livro Santa, do
ibiapinense Pedro Ferreira (1881-1975). Entusiasmado que sou por essas obras
obsoletas, mormente as do meu estado, adiantei a leitura o mais que pude,
motivado pela ideia de conhecer um autor cearense do século passado, do qual
nunca tinha ouvido falar.
A experiência de leitura foi das mais péssimas
que tive, em virtude da pobreza estilística dessa narrativa que pretende ser um
romance. Ao final da leitura, já estava preparando meu arsenal de munições
para, impiedosamente, ratificar os motivos óbvios que condenaram Santa ao esquecimento. Entrementes,
antes de passar à costumeira resenha, tive a providencial ideia de ler outros
textos de Pedro Ferreira que me foram enviados pelo mesmo Victor, a quem, desde
já, dedico um agradecimento, sobretudo pela autobiografia do autor que me
esclareceu muitos questionamentos colecionados ao longo da leitura.
Aos leitores simpatizantes da ferocidade de
minhas críticas, peço um pouco de paciência, pois já chegaremos lá rs. Antes,
porém, proponho seguirmos uma ordem inversa àquela por mim executada:
conheçamos pois primeiro o autor e, empós (como diria o próprio Pedro), sua
obra.
Pedro Ferreira de Assis pertenceu a uma família
pobre do interior do Ceará. Perdeu a mãe muito cedo e foi educado pelo pai, que
era agricultor. Inclinado desde cedo às letras, não pôde estudar, em vista da
necessidade de ajudar o pai nos trabalhos do campo. Autodidata, aprendeu a ler
e escrever sozinho; com o passar dos anos, foi ampliando seu conhecimento pelo
mesmo método: o estudo solitário. Entusiasmado por diferentes áreas do
conhecimento, lia, de tudo um pouco, autores nacionais e estrangeiros. Seu
obstinado desejo de aprender rendeu-lhe uma ascensão econômica e social.
Desempenhou diferentes funções: foi jornalista, militar, geógrafo, além de ter
sido eleito por cinco vezes prefeito do município de Ibiapina.
Pedro e eu, para minha surpresa, compartilhamos
de uma paixão comum: a obra alencarina. É inegável a influência do autor de Iracema, tanto em sua obra, por razões
que definirei adiante, quanto em sua vida, pois não à toa uma de suas filhas
foi batizada com o nome de Lucíola. Uma pena que tão positiva influência não
tenha sido suficiente para tornar Pedro um escritor mais esmerado! Mas todo
este preâmbulo que tenho desenvolvido justifica com propriedade todas as falhas
que facilmente encontramos na escrita deste ibiapinense.
Além de Santa,
pude ler o poema psicológico O Pensamento
É quase Alma, o discurso Cristo e sua
Religião, o opúsculo Minha
Autobiografia, além de alguns dos artigos que Pedro publicou na revista do
Instituto do Ceará, do qual era sócio. Tal panorama forneceu-me uma ideia
bastante precisa de sua deficiente escrita, cujas peculiaridades destacarei a
seguir.
Por não ter concentrado seus esforços em nenhuma
área específica do conhecimento, apreciador que era dos saberes em geral, Pedro
Ferreira não pôde desenvolver com afinco o literato que tencionava ser. As
circunstâncias em que se deu sua formação intelectual refletem na limitação de
suas referências (sejam literárias, filosóficas, políticas, etc.) e, mais
perceptivelmente, de sua linguagem, sempre a mesma, independente do gênero. O
vocabulário do autor chega a ser tão repetitivo que, às vezes, temos a
impressão de que podemos mensurá-lo, por não ser muito difícil prever que
termos serão utilizados nos próximos parágrafos.
Consciente de sua inópia linguística, o autor
apela para o uso de termos menos comuns, mesmo para o seu tempo, na tentativa
talvez de criar um estilo que lhe conferisse erudição. Assim, em lugar de “ilusão”,
temos “delusão”; “empós” no lugar de “após”; “brasiliano” ou “brasilense” ao
invés de “brasileiro”, “multifário” no lugar de “variado”; “encantante” e não “encantador”,
além de muitos outros vocábulos que chamam atenção por serem antiquados e,
principalmente, pela recorrência com que aparecem.
Outra característica sua que bastante me
incomodou são as expressões pleonásticas, não menos recorrentes que os
arcaísmos já citados. Poderia citar várias, mas as que consigo lembrar agora
são: “não nunca jamais”, “tanto e tantíssimo”, “mui-muito”, “sempre e sempre”, “demais
a mais”, “de todo em todo”, etc. O excesso de adjetivos também não passa
despercebido, o que é uma visível influência de Alencar, mas que se manifesta
em Pedro ainda mais exageradamente.
O que, contudo, me punha atônito mesmo de
verdade eram os períodos demasiadamente longos e cheios de intervalos para
explicações excessivas e desnecessárias. Essas constantes interrupções,
realizadas através de incontáveis travessões, comprometiam sobremaneira a
fluidez do texto e, não poucas vezes, o próprio entendimento do mesmo. Como
costumo sempre provar o que digo, segue abaixo um curioso exemplo.
“De fato, quem tem o prazer de subir, embora por
sendas estreitas e pedregosas, aos píncaros verdejantes da imponente Ibiapaba,
que é o jardim mais belo de beleza do Nordeste — em eterna primavera — nos
confins do Ceará plantado, onde vicejam as palmeiras esguias que, desfraldando —
à semelhança de flâmulas — as folhas rumorosas, embelecem as frondentes matas,
outrora defendidas pelo amouco e valente Juripariguaçu
(diabo grande) — o mais poderoso dos morubixabas tabajaras, se esquece, logo,
do trabalho da subida, pois que ela, ali, mostra aos olhos deslumbrados do
viandante ‘um dos mais formosos painéis, que porventura pintou a natureza em
outra parte do mundo’.” (Págs. 42, 43, grifo do autor). Desafio qualquer um de
vocês a ler este trecho de um fôlego só rs!
Explicitados os problemas de escrita do autor,
concentremo-nos em Santa, que foi publicada,
pela primeira vez, nos folhetins do Correio
do Norte, no município de Ipu, em 1921. A 1ª, e provavelmente única, edição
em livro consta de 1966, numa versão corrigida e ampliada.
Baseada num episódio supostamente real, esta
tentativa de romance regionalista traz um enredo acentuadamente monótono, não
apenas pelas inúmeras descrições da paisagem ibiapabana, mas pela carência de
movimento e ação cênica da trama. Numa escrita que lembra mais o texto de não
ficção, a obra passaria facilmente por um daqueles livrinhos religiosos com os
quais se deleitava Célia, a protagonista. Não será pois tarefa difícil resumir
cento e algumas páginas nas poucas linhas seguintes.
Do capítulo 1 ao 6, temos o episódio no qual
Paulo da Silva, sua esposa Sebastiana do Amor Divino e sua pequena filha
Celina, chamada simplesmente de Célia, saem de sua terra em busca de um refúgio
onde possam escapar aos flagelos da terrível seca de 1877. No capítulo 7, chegam
à Serra da Ibiapaba. Parte deste capítulo me pareceu uma imitação de um fragmento de Aves de Arribação, de
Antônio Sales, pela forma como são descritos os pássaros do lugar. Do capítulo
8 ao 11, a família de Paulo da Silva, que aportara na Ibiapaba, decide firmar
moradia no sítio Boa-Vista. Célia é incentivada a estudar, o que faz com muito
gosto, mas não além daquele com que realiza suas atividades religiosas.
Dedicada exclusivamente aos estudos e à religião, Célia despreza Raimundo
Tavares, o Mundico, que apaixona-se inutilmente por ela. Célia rejeita a ideia
do matrimônio, pois está consciente de que a verdadeira felicidade só é
possível após a morte. Do capítulo 12 ao 18, Mundico passa a frequentar a casa
de Célia, com o apoio dos pais da jovem, como também dos seus próprios; “desiluso”
com as negativas da moça, que o considera um vaidoso, Mundico decide partir
para o Amazonas. Do capítulo 19 ao 25, Célia continua seguindo a vida inteiramente
dedicada à sua crença, aspirando por entrar num mosteiro, enquanto seus pais prosperam
na nova terra. Mundico, já longe, após embebedar-se, comete suicídio. Ao saber
da tragédia, Célia, impressionada, morre de tristeza, sendo considerada uma “Santa”
pelo povo daquela serra.
Acredito que poupei, com este proveitoso resumo,
trabalho a muita gente. Considero mesmo dispensável a leitura de Santa e penso já ter dado todas as justificativas
dignas de nota. Mas como já disse noutra ocasião, esta é a narrativa de um “entusiasta
do romance”, alguém que, acredito, fez sair leite de muitas pedras. Pedro
Ferreira merece nosso aplauso por tudo o que fez com tão pouco, ainda que não
nunca jamais mereça o mesmo por suas malfadadas tentativas literárias.
Avaliação: ★
Daniel Coutinho
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