Quando Eça de Queirós começou a escrever A Capital em 1877, planejava fazer uma
narrativa curta de duzentas páginas, a primeira de uma série de novelas que
pretendia ser uma pequena “Comédia Humana” portuguesa. Entusiasmado com o
assunto do livro, acabou escrevendo seiscentas páginas, fazendo consideráveis
mudanças ao longo dos anos, tantas, que morreu sem concluir a obra. Em outras
palavras, levantou toda a casa, mas não teve tempo de compor metade dos
acabamentos.
Certamente por isso A Capital está muito melhor realizada nos primeiros capítulos que
nos últimos. Segundo o filho de Eça, de quem herdara o mesmo nome, seu pai,
após esboçar uma obra, fazia-a de um fôlego, deliberadamente, desprezando
estilo e forma, que só seriam levados em conta na reescrita. Exigente consigo
mesmo, Eça estava sempre inconformado com a compleição de seus livros, mesmo
depois de realizar acuradas revisões. A primeira parte d’A Capital chegou mesmo a ser impressa por Ernesto Chardron, seu
editor, mas o romancista impediu a circulação do livro, por não estar
satisfeito com o resultado. O prejuízo provocou um desentendimento momentâneo
entre os dois. Após a morte de Eça, o livro permaneceria ainda engavetado por
mais de vinte anos, sendo publicado somente em 1925.
O romance propõe-se a contar as desventuras do
jovem Artur Corvelo. O rapaz, que tivera uma criação excessivamente branda,
tornou-se volúvel e fraco de caráter. De inclinações literárias, cultivava
ideias românticas e admirava fervorosamente Victor Hugo e Aldred de Musset.
Após a morte dos pais, não conseguira manter seus estudos em Coimbra por muito
tempo, precisando apelar à caridade de suas tias de Oliveira de Azeméis. Sua
vida ao lado das tias é bastante monótona se comparada à que tinha ao lado dos
acadêmicos. Para ocupar-se, Artur aceita trabalhar como ajudante de farmácia e
compõe dois livros: a coletânea de poemas Esmaltes
e Joias e o drama Amores de Poeta,
ambos profundamente influenciados pela escola romântica.
Dentre as poucas amizades contraídas em Oliveira
de Azeméis, Rabecaz torna-se o amigo íntimo do poeta e seu principal
incentivador intelectual. Ele, que já vivera em Lisboa, narra maravilhas da
capital para Artur que, deslumbrado pelas imagens descritas pelo Rabecaz,
deseja deixar a vila, onde acredita não ser possível desenvolver com proveito
todo o seu talento. Uma herança de dois contos de réis, recebida pela morte de
seu padrinho, possibilita a Artur sua partida para a capital.
Levando consigo uma carta de recomendação do
Rabecaz, Artur, desde sua chegada à Lisboa, depara-se com inúmeras
dificuldades. Sua constituição frágil e seu temperamento sensível padecerão
ante a sequidão e a indiferença de pessoas estranhas. Quando sua situação
financeira torna-se conhecida, muitos especuladores oferecem amizade que,
aparentemente profícua, é logo aceita pelo ingênuo poeta. Artur, influenciado
principalmente por Melchior, redator do jornal O Século, passa a ter então uma vida regada a luxo e gastos
desmedidos.
Na sequência, temos uma série de episódios onde
o pobre Artur é vítima do mais renitente caiporismo. É incrível como nada
parece colaborar com sua sorte, tantos são os infortúnios por que passa. Seus
sonhos de celebridade literária são logo refugados pela indiferença dos
lisboetas, mais interessados em pândegas e dissipações. Esquecia-me dizer que
outra frustração de Artur era não conseguir relacionar-se com a “mulher do
vestido de xadrez”, uma que vira na estação de Ovar e com quem trocara olhares.
Li os primeiros capítulos d’A Capital com animação, julgando-o já uma das melhores leituras do
ano, mas a falta de correção da segunda metade do romance infelizmente prejudicou
bastante a integridade da obra. Reconheci muitos excessos: situações
exageradas, descrições prolixas e ritmo arrastado em razão da incrível
estupidez do protagonista. A imbecilidade de Artur beira a inverossimilhança,
especialmente porque, desde o começo da narrativa, não obstante sua
pusilanimidade, ele revela espírito e senso crítico das situações.
Confesso ficar incomodado com narrativas em que
os personagens sofrem excessivamente. Como tive pena do Artur rs! Sentia-me
indignado em diversas passagens, como também incomodado com o já conhecido
pessimismo eciano. Um detalhe curioso é que Eça planejava incluir no livro uma personagem
chamada Cristina, uma provinciana sobre quem escrevera mesmo algumas linhas,
que poderia ser a salvação de Artur. Como o autor não dera continuidade às
emendas de sua obra, seu filho optou por descartar os trechos em que Cristina
aparecia, evitando assim que sua inclusão no enredo fosse despropositada.
N’A
Capital, Eça mais uma vez perpassa o tema da homossexualidade, como já
fizera n’A Relíquia e mais
perceptivelmente n’O Crime do Padre Amaro.
Há uma cena em que Artur, após entrar num café, é assediado por um homem mais
velho. Mas a novidade consiste mesmo na presença de uma lésbica na trama.
Trata-se de D. Joana Coutinho, descrita como uma mulher máscula, casada com um
velho rico, doente e passivo. D. Joana relacionava-se com mulheres e tinha “grandes
amizades femininas”. Era chamada de “D. Juana” e, por ser uma mulher da alta
sociedade, as pessoas faziam vista grossa para seus “vícios”.
Queria citar ainda uma última impressão que
contentou-me bastante. Certamente por já ter me deparado com vários ataques à
religião nas obras de Eça, causou-me grande surpresa a leitura de certas
passagens que denotavam uma fé espiritual. Sempre achara que Eça fosse ateu,
mas a verdade é que ele, mesmo indiferente à religião, acreditava em Deus, o
que fica comprovado pela sua correspondência, onde abusava de expressões como “se
Deus quiser” ou “querendo Deus”.
Claro que a leitura d’A Capital é absolutamente válida, principalmente para os
apreciadores de Eça. Se pensarmos que mesmo obras “inteiramente acabadas” não são
isentas de defeitos, temos justificado a importância do trabalho que foi o
resgate dos inéditos do autor d’Os Maias.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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