*
Averso que sou à literatura moderna, fico muito
surpreendido quando gosto de um livro dessa fase literária. Foi o caso de O Feijão e o Sonho (1938), livro
delicioso que desejei ter lido há mais tempo. Orígenes Lessa, seu autor, não me
era de todo estranho. Lembro de ter lido, há muitos anos, A Pedra no Sapato do Herói, um divertido livrinho infantojuvenil,
mas nada comparado ao objeto desta resenha.
O
Feijão e o Sonho é o tipo de livro que todo escritor deveria
ler, pois trata de uma questão muito particular aos artistas da palavra: a
valorização de sua categoria na sociedade.
Campos Lara é um poeta que vive no mundo da
literatura. Sua vida é ler e escrever o tempo todo, ignorando ao máximo o mundo
lá fora, inclusive sua família. Seu egoísmo chegou a me incomodar em alguns
momentos, pois por mais que admirasse o artista em exercício, jamais poderia
concordar com sua postura diante de seus problemas. A Campos Lara não importa
quanto ganhará por seu trabalho, se poderá pagar suas contas em dia, se sua
esposa poderá viver sem privações ou se os filhos estão doentes por falta de
remédio. A Campos Lara interessa dedicar-se inteiramente a seus livros:
escrevê-los e publicá-los.
Maria Rosa é a desafortunada esposa do poeta. De
temperamento adverso ao dele, sua postura é sempre realista perante as
circunstâncias. Ela quem possui o senso de razão que falta ao marido. Para
Maria Rosa, ofício que não serve para trazer feijão à mesa é ofício inútil. Por
isso, à mulher de Campos Lara toda literatura é detestável, pois apenas consome
o tempo do marido sem dar-lhe uma compensação que seja. O livro Crepúsculo, por exemplo, reuniu aos
poemas algumas dívidas.
Eis a proposta d’O Feijão e o Sonho: mostrar as dificuldades de ser escritor no
Brasil. Está-se vendo que escritor, como diria Maria Rosa, não é profissão. E
que fique claro que quando digo “escritor”, refiro-me ao artista da palavra:
aquele que escreve com intenção artística, aquele que produz matéria para um
vasto sítio comumente chamado Literatura. Quantos poetas não estão por aí
carregando peso? Quantos romancistas estão ocupados demais para construírem
seus personagens? Quantos dramaturgos acham-se impedidos de levarem suas obras
à cena? Qual o lugar da Arte em nosso país? São quantas vagas para o cargo de
artista? Quanto pagam por livro escrito? Vale a pena mesmo ser escritor?
Compartilhamos todas essas indagações com Campos
Lara e muitos outros artistas tão incompreendidos pelas pessoas do seu
convívio, não obstante buscarem tanto compreender essas mesmas pessoas em suas
obras. O egoísmo de Campos Lara não é egocêntrico. Talvez por isso mesmo o
leitor desculpe sua irresponsabilidade. O caso é que ele está tão cego pelo
sonho de passar à posteridade, que já nem lembra que precisa do feijão. Assim
vai sendo contada a vida desse artista: tendo seu sonho ofuscado pelas
necessidades do cotidiano.
O
Feijão e o Sonho é livro que provoca mais reflexão que apreciação.
Não que seja obra mal acabada. Ao contrário, a narrativa é agradável e vivaz. O
humor acentuado (ao ponto de arrancar muitas gargalhadas) é realizado com
louvor. A princípio, até pensei que se tratava de um livro picaresco, mas o
autor vai além e convida o leitor a conhecer uma dura realidade. É rir pra não
chorar rsrsrs. Os capítulos que pormenorizam o passado de Campos Lara é que me
pareceram um tanto descartáveis. Não que sejam ruins, mas formam um longo hiato
dentro do livro que compromete aquela fluidez tão espontânea dos primeiros
capítulos, mas que felizmente é retomada pelo autor nos capítulos finais.
No mais, só tenho a dizer que ainda estou
bastante impressionado com toda essa matéria lida. Minha empatia com Campos
Lara chegou a tanto, que estou profundamente convencido de que este livro já
está entre os melhores do ano.
Avaliação: ★★★★
Daniel Coutinho
***
Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798 Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com
Quantos cap tem o livro ?
ResponderExcluirMinha edição tem 52 capítulos.
ExcluirÉ um livro que provoca muita reflexão sobre os dissabores de se tentar viver de escrita, sobre a necessária conciliação entre sonhos e a realidade que não deixa de bater à porta. A primeira vez que li, foi no final da adolescência e tive um olhar diferente, claro.. Hoje em dia, relendo a obra, outros pontos de vista e outras reflexões entram nesta releitura.
ResponderExcluirE, como dissestes logo no começo da postagem, é um livro muito bom para escritores, pois leva-nos a refletir sobre este ofício.
Gostei muito de sua resenha!
Boa quinta-feira
Marina
Marina Carla- Devaneios e Desvarios
Meu Twitter
Que bom que gostou, Marina! "O Feijão e o Sonho" foi uma das leituras mais marcantes do ano passado.
ExcluirGrande abraço!