quinta-feira, 16 de março de 2017

Clara dos Anjos, de Lima Barreto - RESENHA #44


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Lima Barreto não é o santo de minha devoção. Não digo que sua obra seja ruim. Quem sou eu para tanto? É mais uma questão de gosto pessoal. Nenhum dos três romances dele — que li até agora — soube me cativar. Em todos tenho percebido que o panfletista está sempre à frente do literato. A ficção, em Lima Barreto, me parece um artifício para divulgar sua postura insurgente ante sua própria realidade. Seus romances me parecem desabafos pessoais disfarçados com uma capa literária. Isto é o que me desagrada: que sua obra seja mais realidade que ficção; que seus livros tragam mais jornalismo que arte, ainda que supostamente escritos para este último fim.

Uma coisa que não entendo e que me deixa muito desconcertado é que muitos textos críticos que já li alegam ser a obra de Lima Barreto escrita em linguagem simples e coloquial, uma vez que pretendia alcançar uma grande massa de leitores. Sinceramente, não posso concordar. A escrita do criador de Policarpo Quaresma, a meu ver, ao invés de simples, é bastante requintada. Não digo que seja de uma complexidade ao nível de um Camilo Castelo Branco, mas está longe de ser clara e objetiva como a de um Machado de Assis. Será que só eu recorro muitas vezes ao dicionário quando encaro um Lima Barreto rsrsrs? Ou será que a crítica faz considerações como essa, tendo em vista apenas o registro oral empregado pelo autor na fala de seus personagens? Não obstante essa escrita pretensiosa, os enredos apresentados, tal como a construção e condução dos mesmos, não me são agradáveis, pois me parecem, como já sugeri, embaciados pela pregação denunciativa tão recorrente em suas obras.

Publicado postumamente em 1948, Clara dos Anjos é geralmente classificado como romance inacabado. O caso é que o texto me parece devidamente concluído, não deixando lacunas nem exigindo continuação. Devemos lembrar ainda que o autor encerra o manuscrito com data de início e conclusão da obra. Isso me faz pensar que Clara dos Anjos não é obra inacabada; quando muito, Lima Barreto não teve tempo de revisá-la. A verdade é que o mesmo argumento já havia sido utilizado — com algumas variantes — num conto homônimo publicado na coletânea Histórias e Sonhos (1920). O desfecho, tanto no romance como no conto, é o mesmo. Temos assim outra prova de que o romance Clara dos Anjos não é obra inacabada.

A narrativa começa apresentando os personagens principais da trama: o carteiro Joaquim dos Anjos; Engrácia, sua esposa; Clara, sua filha; Cassi, o vilão; dentre outros. As primeiras páginas são bastante sedutoras, o que é muito comum nos romances de Lima Barreto, parecendo uma estratégia para fisgar o leitor. Tendo feito isso, o autor começa, calculadamente, a fazer sua panfletagem. Com sua habitual ironia, ele vai criticando a religião, a discriminação racial, o descaso do governo em relação aos subúrbios, as condições de vida dos mestiços, etc. Algo que muito me incomodou nesses primeiros capítulos foi a apresentação de uma galeria infindável de personagens, quase todos sem relevância para a trama, mas que nem por isso deixam de ser caracterizados com detalhes atenciosos. Essas figuras são elencadas tão deliberadamente, que me ocorreu a hipótese de que todas elas são tipos reais retratados pelo autor. Isso explicaria a razão de ter o autor explorado pormenores mesmo nos tipos mais irrelevantes da narrativa. Já li, inclusive, que alguns críticos veem no personagem Leonardo Flores um alter ego do próprio Lima Barreto, considerando o histórico de loucura e alcoolismo de ambos.

A leitura segue arrastadamente nos dois primeiros terços do livro. Felizmente, no terço final, quando o autor parece já estar satisfeito com sua pregação, ele deixa o panfletista de lado e passa as rédeas ao romancista. O livro parece ganhar vida a partir daí. A trama se desenrola de forma mais convencional e literária. Os personagens tomam suas posições e finalmente a leitura flui rsrsrs. Clara dos Anjos, a jovem mulata de família pobre, apaixona-se por Cassi Jones, um deflorador de moças e pervertedor de mulheres casadas. Ele, que fora convidado ao aniversário de Clara, por sua fama de tocador de modinhas ao violão, enxerga na moça um alvo fácil para seus planos infames. Clara, muito ingênua, em grande parte pela superproteção dos pais, acaba recebendo os galanteios de Cassi, crente de que tudo o que dizem a respeito dele são calúnias, e acreditando que o rapaz deseja seriamente casar-se com ela.

Os pais de Clara são seres pusilânimes: Joaquim é tão crédulo quanto a filha, pois não é capaz de ver maldade em ninguém, julgando todos à sua volta como pessoas de bem; Engrácia é desprovida de atitude, sendo incapaz de resolver qualquer circunstância que esteja além do serviço doméstico. A fraqueza de caráter dos pais de Clara refletirá visivelmente na postura da garota em relação ao assédio de Cassi. O autor reflete a necessidade da classe vulnerável ser realista com sua condição social, para assim estar ciente de quem e de como se defender. Já em personagens como Meneses e Marramaque, o autor personifica a vitimização pela miséria: o homem pobre está condenado, seja vil ou seja honesto. É essa classe miserável dos subúrbios, como o próprio ambiente marginalizado onde vive, que contemplam todas as páginas de Clara dos Anjos.

Lima Barreto não escreve para encantar. Clara dos Anjos é um grito de indignação e desabafo visivelmente pessoal, o que constatamos desde a dedicatória do autor (à sua mãe) até a frase final do livro, que é um verdadeiro soco na cara da sociedade. Sem desmerecer sua totalmente compreensível necessidade de zelar pelos interesses de sua classe, ainda prefiro a literatura que respeita seu limite artístico.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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