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Lima Barreto não é o santo de minha devoção. Não
digo que sua obra seja ruim. Quem sou eu para tanto? É mais uma questão de
gosto pessoal. Nenhum dos três romances dele — que li até agora — soube me
cativar. Em todos tenho percebido que o panfletista está sempre à frente do
literato. A ficção, em Lima Barreto, me parece um artifício para divulgar sua
postura insurgente ante sua própria realidade. Seus romances me parecem
desabafos pessoais disfarçados com uma capa literária. Isto é o que me
desagrada: que sua obra seja mais realidade que ficção; que seus livros tragam
mais jornalismo que arte, ainda que supostamente escritos para este último fim.
Uma coisa que não entendo e que me deixa muito
desconcertado é que muitos textos críticos que já li alegam ser a obra de Lima
Barreto escrita em linguagem simples e coloquial, uma vez que pretendia
alcançar uma grande massa de leitores. Sinceramente, não posso concordar. A
escrita do criador de Policarpo Quaresma, a meu ver, ao invés de simples, é
bastante requintada. Não digo que seja de uma complexidade ao nível de um
Camilo Castelo Branco, mas está longe de ser clara e objetiva como a de um
Machado de Assis. Será que só eu recorro muitas vezes ao dicionário quando
encaro um Lima Barreto rsrsrs? Ou será que a crítica faz considerações como
essa, tendo em vista apenas o registro oral empregado pelo autor na fala de
seus personagens? Não obstante essa escrita pretensiosa, os enredos
apresentados, tal como a construção e condução dos mesmos, não me são
agradáveis, pois me parecem, como já sugeri, embaciados pela pregação
denunciativa tão recorrente em suas obras.
Publicado postumamente em 1948, Clara dos Anjos é geralmente
classificado como romance inacabado. O caso é que o texto me parece devidamente
concluído, não deixando lacunas nem exigindo continuação. Devemos lembrar ainda
que o autor encerra o manuscrito com data de início e conclusão da obra. Isso
me faz pensar que Clara dos Anjos não
é obra inacabada; quando muito, Lima Barreto não teve tempo de revisá-la. A verdade
é que o mesmo argumento já havia sido utilizado — com algumas variantes — num
conto homônimo publicado na coletânea Histórias
e Sonhos (1920). O desfecho, tanto no romance como no conto, é o mesmo.
Temos assim outra prova de que o romance Clara
dos Anjos não é obra inacabada.
A narrativa começa apresentando os personagens
principais da trama: o carteiro Joaquim dos Anjos; Engrácia, sua esposa; Clara,
sua filha; Cassi, o vilão; dentre outros. As primeiras páginas são bastante
sedutoras, o que é muito comum nos romances de Lima Barreto, parecendo uma
estratégia para fisgar o leitor. Tendo feito isso, o autor começa,
calculadamente, a fazer sua panfletagem. Com sua habitual ironia, ele vai
criticando a religião, a discriminação racial, o descaso do governo em relação
aos subúrbios, as condições de vida dos mestiços, etc. Algo que muito me
incomodou nesses primeiros capítulos foi a apresentação de uma galeria
infindável de personagens, quase todos sem relevância para a trama, mas que nem
por isso deixam de ser caracterizados com detalhes atenciosos. Essas figuras
são elencadas tão deliberadamente, que me ocorreu a hipótese de que todas elas
são tipos reais retratados pelo autor. Isso explicaria a razão de ter o autor
explorado pormenores mesmo nos tipos mais irrelevantes da narrativa. Já li,
inclusive, que alguns críticos veem no personagem Leonardo Flores um alter ego do próprio Lima Barreto,
considerando o histórico de loucura e alcoolismo de ambos.
A leitura segue arrastadamente nos dois
primeiros terços do livro. Felizmente, no terço final, quando o autor parece já
estar satisfeito com sua pregação, ele deixa o panfletista de lado e passa as
rédeas ao romancista. O livro parece ganhar vida a partir daí. A trama se
desenrola de forma mais convencional e literária. Os personagens tomam suas
posições e finalmente a leitura flui rsrsrs. Clara dos Anjos, a jovem mulata de
família pobre, apaixona-se por Cassi Jones, um deflorador de moças e
pervertedor de mulheres casadas. Ele, que fora convidado ao aniversário de
Clara, por sua fama de tocador de modinhas ao violão, enxerga na moça um alvo
fácil para seus planos infames. Clara, muito ingênua, em grande parte pela
superproteção dos pais, acaba recebendo os galanteios de Cassi, crente de que
tudo o que dizem a respeito dele são calúnias, e acreditando que o rapaz deseja
seriamente casar-se com ela.
Os pais de Clara são seres pusilânimes: Joaquim
é tão crédulo quanto a filha, pois não é capaz de ver maldade em ninguém,
julgando todos à sua volta como pessoas de bem; Engrácia é desprovida de
atitude, sendo incapaz de resolver qualquer circunstância que esteja além do
serviço doméstico. A fraqueza de caráter dos pais de Clara refletirá
visivelmente na postura da garota em relação ao assédio de Cassi. O autor reflete
a necessidade da classe vulnerável ser realista com sua condição social, para
assim estar ciente de quem e de como se defender. Já em personagens como
Meneses e Marramaque, o autor personifica a vitimização pela miséria: o homem
pobre está condenado, seja vil ou seja honesto. É essa classe miserável dos
subúrbios, como o próprio ambiente marginalizado onde vive, que contemplam
todas as páginas de Clara dos Anjos.
Lima Barreto não escreve para encantar. Clara dos Anjos é um grito de indignação
e desabafo visivelmente pessoal, o que constatamos desde a dedicatória do autor
(à sua mãe) até a frase final do livro, que é um verdadeiro soco na cara da
sociedade. Sem desmerecer sua totalmente compreensível necessidade de zelar
pelos interesses de sua classe, ainda prefiro a literatura que respeita seu
limite artístico.
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
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