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Nunca um livro do Eça havia me perturbado tanto
quanto este O Mandarim, não só por
sua escrita complexa, mas também pelo sarcasmo exacerbado em reação à miséria
humana, sem contar com os dilemas de consciência que se estendem até o leitor.
A falar a verdade, nunca ouvira falar no chamado
“paradoxo do mandarim” de Chateaubriand, a quem só conhecia por ter
influenciado Alencar com sua Atala.
Tampouco imaginava que essa filosofia francesa tivesse inspirado Eça nesse
romancete fantástico. Embora esse dilema de consciência seja pouco lembrado
atualmente, no século XIX serviu de matéria a muita gente, inclusive ao autor
d’Os Maias. A questão é: você
permitiria a morte de um rico chinês em troca de herdar toda sua fortuna, sem
que ninguém descobrisse? É no mínimo tentador, não? Seja sincero e confesse rs!
Pois é justamente esse questionamento que sugeriu a Eça o mote d’O Mandarim.
Teodoro é um amanuense que mora num quarto
alugado da casa de dona Augusta, vivendo de ordinários vinte mil réis mensais. É
também um tipo bastante contraditório: sendo cético, não deixa de ser
supersticioso; sendo ateu, não deixa de ser devoto de Nossa Senhora das Dores. Nunca
se considerou infeliz, contudo, pois sabia apreciar perfeitamente as doçuras da
vida humilde. Ainda assim, ambicionava relacionar-se com pessoas da alta
sociedade, ser transportado em carros luxuosos, participar de reuniões ilustres
e frequentar ambientes festejados.
Dentro de suas condições, Teodoro buscava
distrair-se. O passatempo que lhe cabia no bolso eram os livros velhos que ele
devorava. Numa ocasião, porém, deparando-se com a situação já contada do
“paradoxo do mandarim”, algo sinistro aconteceu. Um homem misterioso, de chapéu
e guarda-chuva, oferta-lhe o disposto no livro, desde que Teodoro faça tocar
uma campainha que lhe é indicada. Um simples toque e o nosso amanuense de vinte
mil réis se tornaria um dos homens mais ricos do mundo. Não acreditando que a
tal visão pudesse ser o Diabo, Teodoro ouve-lhe sofismas que o convencem a
tocar a funesta campainha. Ao toque fatal, morre Ti-Chin-Fu, o grande mandarim,
quando preparava para lançar ao céu um papagaio de papel.
Após receber a fortuna do finado chinês, o
contraditório Teodoro começa a ter escrúpulos quando pensa: “De que me serviam
por fim tantos milhões senão para me trazer, dia a dia, a afirmação desoladora
da vileza humana?”. Tais pensamentos não o impedem de passar a uma vida de
excessos. Teodoro, rodeado de riquezas e amantes, torna-se numa celebrada
figura e todos o adoram. O único problema é que a visão de Ti-Chin-Fu morto,
com seu papagaio, o persegue todo dia. Sua consciência pesa e cogita sobre as
consequências de uma deliberada atitude. Teodoro supõe que a família do defunto
está na miséria e que ele é o único culpado; e que, por isso, inconformado, o
espírito do mandarim o persegue para puni-lo por ter desapropriado seus
legítimos herdeiros.
Vale lembrar também que, além das perturbações
do fantasma, Teodoro padece grande descontentamento, pois seus excessos não o
satisfazem inteiramente. Sua personalidade contraditória lhe faz lembrar as já
citadas doçuras da vida humilde. Numa tentativa de reparar seus erros, ele está
disposto a desposar uma das herdeiras de Ti-Chin-Fu e salvar da ruína aquela
família. Para isso, ele terá de ir à China, mas sua estada por lá não sairá
exatamente conforme o planejado.
A viagem de Teodoro ocupa boa parte da
narrativa, pois o autor descreve com riqueza de detalhes todo o exotismo de
Pequim, e devo confessar que isso me incomodou bastante. Acho que já comentei
por aqui que não dou muito valor a descrições minuciosas de paisagens. Ann
Radcliff que o diga rsrsrs! Mas não foi este o único fator que me desgostou
nesse livro. A linguagem carregada em excesso comprometia a fluidez do texto.
Confesso que nunca achei Eça tão difícil como n’O Mandarim. Finalmente, o pessimismo que perpassa toda a obra, a
partir da visão de um narrador perspicaz e irônico, fez-me parecer o livro
malicioso demais. Eça também nunca me foi tão desagradável como agora. Que
fique claro que não contesto a qualidade literária e a genialidade do autor. A
proposta do livro é que me pareceu perturbadora demais, especialmente por
mostrar o homem como um ser inevitavelmente desprezível e vil. Se pensamentos
assim já repercutiam no século XIX, o que diriam nossos antepassados diante de
nossa realidade contemporânea?
É inegável que qualquer noticiário comprova o
quão desanimadora é a condição do homem moderno. Mas, sinceramente, não quero
acreditar que somos tão ruins assim e que a humanidade é tão desprezível. Quero
muito acreditar nas pessoas e num futuro promissor construído por elas. Quero
crer na nobreza, na honestidade e no amor. Quero crer que ainda podemos confiar
uns nos outros. Quero. Quero muito. Será que estou querendo demais?
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
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