quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Cruel Amor, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #42



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Finalmente tive minha primeira experiência com Júlia Lopes de Almeida. O livro escolhido foi Cruel Amor, por ter sido o primeiro de D. Júlia que entrou para o meu acervo. Não era exatamente o que eu supunha. Não esperava que D. Júlia tivesse uma escrita tão peculiar e um estilo tão sutil. Admito que não foi uma leitura muito simples, não necessariamente pela construção do enredo, mas sim pelo estilo tão próprio da autora. Não chega a ser experimental, mas a linguagem de D. Júlia também não é nada convencional, mesmo para sua época.

Cruel Amor apareceu pela primeira vez em folhetins do Jornal do Commercio, em 1908. A primeira edição em livro é de 1911. Não me pareceu um romance muito apropriado ao folhetim, por ser obra de uma densidade considerável. Não quero dizer com isso que todo folhetim é isento de qualquer matéria transcendental, mas a forma como a autora trabalha a densidade de sua narrativa é que não é das mais comuns no gênero folhetinesco.

A história se passa em Copacabana, no final do século XIX. Narrado em 3ª pessoa, Cruel Amor apresenta o contexto em que viviam os pescadores da região. Tive a impressão que D. Júlia intentava fazer um romance regionalista, impregnado de registros linguísticos dos tipos que povoam seu romance. Ela de fato faz isso, recorrendo principalmente ao uso de termos comuns aos trabalhadores da pesca, como também transcrevendo marcas da oralidade. Contudo, essa tentativa saiu um tanto malograda, uma vez que a essência regionalista do livro me pareceu um tanto forçada ou artificial, sem aquela espontaneidade tão comum a autores do gênero como Simões Lopes Neto e Afonso Arinos.

A autora lida diretamente com dois triângulos amorosos (Flaviano/Maria Adelaide/Marcos e Rui/Ada/Eduardinho), complementando a trama com um mistério (na figura de Pedro, o mudo) e mais alguns personagens secundários. Cada uma dessas peças é movida de forma bastante aleatória dentro do livro, mas não exatamente sob uma ótica puramente romanesca. A princípio, tudo parece muito obscuro. As situações apresentadas carecem de muitas explicações, que são dadas em pequenas doses pela autora, de maneira que o leitor, pouco a pouco, vai conseguindo moldar um entendimento sobre a trama. É como se o livro fosse um quadro sujo que, à medida que vai sendo limpo, fica mais nítido aos olhos do leitor. Está se vendo que é uma leitura trabalhosa; portanto, não recomendada a leitores menos experientes.

São diversas as temáticas do livro. Se por um lado elas fazem de Cruel Amor um romance realista, a forma dada ao texto já antecipa certas nuances do romance moderno. Devemos mesmo lembrar que Júlia Lopes de Almeida o publicou num período comumente chamado de Pré-Modernismo. Eu, particularmente, sou um tanto avesso a certos ideais modernistas; talvez, por isso, não tenha gostado tanto assim de Cruel Amor. A proposta do livro é sem dúvida interessante, mas já direi o que me incomodou no romance de D. Júlia.

Flaviano é um pescador da canoa de João Sérvulo. Ele está noivo de Maria Adelaide, mas essa união não é vista com bons olhos pelos moradores do lugar, por questões puramente raciais, já que Flaviano é mulato e Maria Adelaide branca. Marcos, pescador da mesma canoa, tem outros motivos para não aprovar tal relação, pois está enamorado da noiva de Flaviano. Há, porém, uma lei que vigora entre os pescadores: jamais pode haver deslealdade entre eles. O problema é que Marcos não consegue disfarçar seus sentimentos na presença da moça, que logo percebe o interesse dele. Maria Adelaide, que não era moça de grande beleza, fica envaidecida com o ter despertado tais sentimentos em Marcos, que é um moço branco. Aquele novo pretendente torna-se muito mais interessante aos seus olhos. A cor de Flaviano, que nunca lhe parecera importante, lhe era detestável agora. O interesse de Marcos e a frieza de Maria Adelaide não passam despercebidos a Flaviano, que não está disposto a sofrer uma rejeição; por isso, seu comportamento passa a ser guiado pelo temperamento agressivo que possui.

Ada é uma jovem enjeitada que foi criada por Rola, uma mulher que sofreu bastante na vida e uma vítima do preconceito, por ter sido abandonada por um homem que nem era seu marido. A beleza de Ada cativa o coração de Rui, um poeta sonhador e idealista, que vive poetizando tudo à sua volta, a fim de esquecer a loucura e a morte da mãe. O coronel Mangino, pai de Rui, é quem não aceita uma relação tão desigual do seu filho, um estudante de Direito bastante promissor, com uma pobre enjeitada sem sobrenome. Ada, não obstante ser pobre, despreza os da sua classe e vislumbra um futuro cheio de regalias. Ela recebe os galanteios de Rui, mas não está disposta a ser a mulher humilde e recatada que ele idealiza. A vaidade de Ada é motivo de constantes desentendimentos entre o casal, pois a moça jamais abre mão de ostentar sua beleza, sobretudo nas reuniões em casa de D. Leonor, amiga a quem serve de costureira. Nessas reuniões, ela acaba conquistando o Eduardinho, sobrinho de Leonor. Este, sendo muito rico, faz propostas vantajosas à ambiciosa Ada que, nem preciso dizer, fica bastante tentada a desprezar o amor de Rui pelo que lhe pode dar o Eduardinho.

Esses dois casos vão sendo contados simultaneamente, sendo que a história de Ada ganha um espaço relativamente maior à de Maria Adelaide, ainda que esta última seja tão importante quanto a outra para a compreensão do romance. Temos ainda um elemento bastante misterioso na figura de Pedro, o mudo. Homem enigmático, mesmo sendo surdo-mudo de nascença, parece estar sempre atento a tudo com suas orelhas enormes. Em mais de uma ocasião, algum fato é revelado sobre situações testemunhadas unicamente por ele. Há quem desconfie que Pedro consegue comunicar seus pensamentos de alguma forma, mas as pessoas em geral não dão crédito a tais conjecturas, sendo Pedro conhecido no lugar desde que nascera. Outros mistérios envolvem sua pessoa, pois foi ele quem deixou Ada na porta de Rola, embora ninguém saiba de onde ele possa ter trazido a criança. A autora nos incita em vários momentos a fazer questionamentos sobre tão intrigante personagem, mas comete uma falha imperdoável ao concluir o romance sem a tão esperada elucidação do mistério. A imaginação do leitor que dê conta disso rsrsrs

D. Júlia ainda aproveita sua trama para criticar as diferenças sociais e suas mazelas, como a marginalização de menores. Bié e Nita são duas crianças que vivem abandonadas pelos pais. Eles mais parecem dois animaizinhos a curtirem os esplendores da natureza, tendo como únicos brinquedos (e não menos divertidos): conchas, pedras coloridas, penas e ovos de passarinhos. Cruel Amor é bastante marcado pela prosa poética, especialmente nas passagens desses dois namoradinhos, que vão pouco a pouco perdendo o direito à infância. O romance de D. Júlia ainda documenta a urbanização de Copacabana. A elite carioca vai adquirindo as pequenas moradias dos pescadores, para transformá-las em vistosos palacetes. Em certa passagem, alguém menciona que logo não haverá lugar nem para as canoas. É o princípio de uma nova era.

Cruel Amor possuía todos os elementos para ser um romance fabuloso, mas a maneira como a autora os dispôs é que não me pareceu muito feliz. Por exemplo, há momentos em que se narra uma porção de fatos num único parágrafo; e outros em que a autora dedica páginas e páginas a elementos corriqueiros, quando não repetitivos. Em várias ocasiões julgava estar não lendo, mas relendo uma situação. Os elementos dispostos no livro são o tempo todo circundados pelo narrador: a aversão de Maria Adelaide pelo noivo, as desconfianças de Flaviano, os ciúmes de Rui, a vaidade de Ada, etc. A leitura cansava às vezes; mas quando lembro que este livro nasceu em forma de folhetim, ou seja, que o leitor só disporia do texto correspondente a cada dia da publicação, compreendo que essas repetições fossem até bem recebidas como uma forma de reiterar certos detalhes da trama que poderiam não ser tão bem fixados numa leitura feita a longo prazo.

O certo é que gostei da experiência e já quero muito ler outras obras de Júlia Lopes de Almeida. A leitura deste Cruel Amor foi bastante válida. Ainda que não tenha acertado exatamente com meu “gosto pessoal”, jamais poderei negar seu inquestionável valor literário.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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