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Finalmente tive minha primeira experiência com
Júlia Lopes de Almeida. O livro escolhido foi Cruel Amor, por ter sido o primeiro de D. Júlia que entrou para o
meu acervo. Não era exatamente o que eu supunha. Não esperava que D. Júlia
tivesse uma escrita tão peculiar e um estilo tão sutil. Admito que não foi uma
leitura muito simples, não necessariamente pela construção do enredo, mas sim
pelo estilo tão próprio da autora. Não chega a ser experimental, mas a
linguagem de D. Júlia também não é nada convencional, mesmo para sua época.
Cruel
Amor
apareceu pela primeira vez em folhetins do Jornal
do Commercio, em 1908. A primeira edição em livro é de 1911. Não me pareceu
um romance muito apropriado ao folhetim, por ser obra de uma densidade
considerável. Não quero dizer com isso que todo folhetim é isento de qualquer
matéria transcendental, mas a forma como a autora trabalha a densidade de sua
narrativa é que não é das mais comuns no gênero folhetinesco.
A história se passa em Copacabana, no final do
século XIX. Narrado em 3ª pessoa, Cruel
Amor apresenta o contexto em que viviam os pescadores da região. Tive a impressão
que D. Júlia intentava fazer um romance regionalista, impregnado de registros
linguísticos dos tipos que povoam seu romance. Ela de fato faz isso, recorrendo
principalmente ao uso de termos comuns aos trabalhadores da pesca, como também
transcrevendo marcas da oralidade. Contudo, essa tentativa saiu um tanto
malograda, uma vez que a essência regionalista do livro me pareceu um tanto
forçada ou artificial, sem aquela espontaneidade tão comum a autores do gênero
como Simões Lopes Neto e Afonso Arinos.
A autora lida diretamente com dois triângulos
amorosos (Flaviano/Maria Adelaide/Marcos e Rui/Ada/Eduardinho), complementando
a trama com um mistério (na figura de Pedro, o mudo) e mais alguns personagens
secundários. Cada uma dessas peças é movida de forma bastante aleatória dentro
do livro, mas não exatamente sob uma ótica puramente romanesca. A princípio,
tudo parece muito obscuro. As situações apresentadas carecem de muitas
explicações, que são dadas em pequenas doses pela autora, de maneira que o leitor,
pouco a pouco, vai conseguindo moldar um entendimento sobre a trama. É como se
o livro fosse um quadro sujo que, à medida que vai sendo limpo, fica mais
nítido aos olhos do leitor. Está se vendo que é uma leitura trabalhosa;
portanto, não recomendada a leitores menos experientes.
São diversas as temáticas do livro. Se por um
lado elas fazem de Cruel Amor um
romance realista, a forma dada ao texto já antecipa certas nuances do romance
moderno. Devemos mesmo lembrar que Júlia Lopes de Almeida o publicou num
período comumente chamado de Pré-Modernismo. Eu, particularmente, sou um tanto
avesso a certos ideais modernistas; talvez, por isso, não tenha gostado tanto
assim de Cruel Amor. A proposta do
livro é sem dúvida interessante, mas já direi o que me incomodou no romance de
D. Júlia.
Flaviano é um pescador da canoa de João Sérvulo.
Ele está noivo de Maria Adelaide, mas essa união não é vista com bons olhos
pelos moradores do lugar, por questões puramente raciais, já que Flaviano é
mulato e Maria Adelaide branca. Marcos, pescador da mesma canoa, tem outros
motivos para não aprovar tal relação, pois está enamorado da noiva de Flaviano.
Há, porém, uma lei que vigora entre os pescadores: jamais pode haver
deslealdade entre eles. O problema é que Marcos não consegue disfarçar seus
sentimentos na presença da moça, que logo percebe o interesse dele. Maria
Adelaide, que não era moça de grande beleza, fica envaidecida com o ter
despertado tais sentimentos em Marcos, que é um moço branco. Aquele novo
pretendente torna-se muito mais interessante aos seus olhos. A cor de Flaviano,
que nunca lhe parecera importante, lhe era detestável agora. O interesse de
Marcos e a frieza de Maria Adelaide não passam despercebidos a Flaviano, que
não está disposto a sofrer uma rejeição; por isso, seu comportamento passa a
ser guiado pelo temperamento agressivo que possui.
Ada é uma jovem enjeitada que foi criada por
Rola, uma mulher que sofreu bastante na vida e uma vítima do preconceito, por
ter sido abandonada por um homem que nem era seu marido. A beleza de Ada cativa
o coração de Rui, um poeta sonhador e idealista, que vive poetizando tudo à sua
volta, a fim de esquecer a loucura e a morte da mãe. O coronel Mangino, pai de
Rui, é quem não aceita uma relação tão desigual do seu filho, um estudante de
Direito bastante promissor, com uma pobre enjeitada sem sobrenome. Ada, não
obstante ser pobre, despreza os da sua classe e vislumbra um futuro cheio de
regalias. Ela recebe os galanteios de Rui, mas não está disposta a ser a mulher
humilde e recatada que ele idealiza. A vaidade de Ada é motivo de constantes
desentendimentos entre o casal, pois a moça jamais abre mão de ostentar sua
beleza, sobretudo nas reuniões em casa de D. Leonor, amiga a quem serve de
costureira. Nessas reuniões, ela acaba conquistando o Eduardinho, sobrinho de
Leonor. Este, sendo muito rico, faz propostas vantajosas à ambiciosa Ada que,
nem preciso dizer, fica bastante tentada a desprezar o amor de Rui pelo que lhe
pode dar o Eduardinho.
Esses dois casos vão sendo contados
simultaneamente, sendo que a história de Ada ganha um espaço relativamente
maior à de Maria Adelaide, ainda que esta última seja tão importante quanto a
outra para a compreensão do romance. Temos ainda um elemento bastante
misterioso na figura de Pedro, o mudo. Homem enigmático, mesmo sendo surdo-mudo
de nascença, parece estar sempre atento a tudo com suas orelhas enormes. Em
mais de uma ocasião, algum fato é revelado sobre situações testemunhadas
unicamente por ele. Há quem desconfie que Pedro consegue comunicar seus
pensamentos de alguma forma, mas as pessoas em geral não dão crédito a tais
conjecturas, sendo Pedro conhecido no lugar desde que nascera. Outros mistérios
envolvem sua pessoa, pois foi ele quem deixou Ada na porta de Rola, embora ninguém
saiba de onde ele possa ter trazido a criança. A autora nos incita em vários
momentos a fazer questionamentos sobre tão intrigante personagem, mas comete
uma falha imperdoável ao concluir o romance sem a tão esperada elucidação do
mistério. A imaginação do leitor que dê conta disso rsrsrs
D. Júlia ainda aproveita sua trama para criticar
as diferenças sociais e suas mazelas, como a marginalização de menores. Bié e
Nita são duas crianças que vivem abandonadas pelos pais. Eles mais parecem dois
animaizinhos a curtirem os esplendores da natureza, tendo como únicos
brinquedos (e não menos divertidos): conchas, pedras coloridas, penas e ovos de
passarinhos. Cruel Amor é bastante
marcado pela prosa poética, especialmente nas passagens desses dois namoradinhos,
que vão pouco a pouco perdendo o direito à infância. O romance de D. Júlia
ainda documenta a urbanização de Copacabana. A elite carioca vai adquirindo as
pequenas moradias dos pescadores, para transformá-las em vistosos palacetes. Em
certa passagem, alguém menciona que logo não haverá lugar nem para as canoas. É
o princípio de uma nova era.
Cruel
Amor
possuía todos os elementos para ser um romance fabuloso, mas a maneira como a
autora os dispôs é que não me pareceu muito feliz. Por exemplo, há momentos em
que se narra uma porção de fatos num único parágrafo; e outros em que a autora
dedica páginas e páginas a elementos corriqueiros, quando não repetitivos. Em
várias ocasiões julgava estar não lendo, mas relendo uma situação. Os elementos
dispostos no livro são o tempo todo circundados pelo narrador: a aversão de
Maria Adelaide pelo noivo, as desconfianças de Flaviano, os ciúmes de Rui, a
vaidade de Ada, etc. A leitura cansava às vezes; mas quando lembro que este
livro nasceu em forma de folhetim, ou seja, que o leitor só disporia do texto
correspondente a cada dia da publicação, compreendo que essas repetições fossem
até bem recebidas como uma forma de reiterar certos detalhes da trama que
poderiam não ser tão bem fixados numa leitura feita a longo prazo.
O certo é que gostei da experiência e já quero
muito ler outras obras de Júlia Lopes de Almeida. A leitura deste Cruel Amor foi bastante válida. Ainda
que não tenha acertado exatamente com meu “gosto pessoal”, jamais poderei negar
seu inquestionável valor literário.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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