Minha primeira experiência com a obra de
Alexandre Herculano não foi muito agradável, o que me deixou um tanto
contrariado, apreciador que sou da literatura romântica. Eurico, o Presbítero (1844) é de uma composição que me pareceu
bastante ultrapassada, ainda que fosse obra do século XVIII. Seria
perfeitamente um desses romances de cavalaria que levaram o Cavaleiro da Triste
Figura à insanidade. Mas penso ter saído ileso da experiência rs.
Romance histórico, como todos os demais romances
de Herculano, Eurico registra a
decadência do império gótico e sua invasão pelos árabes, no século VIII. Nesse
contexto, o gardingo Eurico é rejeitado por Favila, duque de Cantábria, como
pretendente à mão de Hermengarda, sua filha. Mesmo Eurico não sendo um
pobre-diabo, sua posição social não é a ambicionada por Favila para sua bela
filha. Mas o que deixa o jovem mais magoado em seu orgulho é a falta de
resistência de sua amada, tão prontamente obediente a seu pai.
Ferido em seus sentimentos, Eurico dedica-se à
vida religiosa, a fim de esquecer sua bela ingrata. Optando pela carreira
monástica, torna-se o presbítero de Carteia, merecendo respeito e admiração por
sua conduta espiritual. Uma atitude sua, porém, intriga os fieis: suas vigílias
noturnas e solitárias pelas montanhas. Com os pensamentos inflamados pelo
sentimento ainda vivo por Hermengarda, Eurico escreve, horas a fio, cânticos e
elegias para ela. Após descobrirem suas razões poéticas, as pessoas passam a
considerá-lo um inspirado por Deus. Os cânticos de Eurico passam a integrar o
repertório das catedrais de toda a Península Ibérica.
Devo pois assinalar que as passagens mais
agradáveis do Eurico, para mim, são
as dos registros de seus manuscritos, ainda que eles também sejam objeto de
análise da corrupção do povo godo. Neles também consta a visão de Eurico que,
em sonhos, previu que sua pátria pereceria ao ataque dos povos da África.
Impressionado com a visão, o presbítero participa o iminente perigo, por
cartas, a seu nobre e velho companheiro de armas, Teodomiro, o duque de
Córduba, prevenindo-lhe ainda da traição de Juliano, o conde de Septum, e Opas,
o bispo de Híspalis. O caso é que muitos godos, inconformados com a situação
política da península, decidem aliar-se aos muçulmanos.
Essa guerra aparentemente desigual entre godos e
árabes é o objeto principal do romance, ocupando considerável parte da obra. Em
meio à desesperança de muitos cristãos, contudo, surge uma esperança luminosa
na forma de um cavaleiro negro de identidade ignorada. Guerreiro exímio, o
desconhecido cavaleiro tem preferência pelos inimigos mais poderosos, a quem
extermina com uma fúria sobrenatural.
Nessas circunstâncias, morre Favila, deixando
seu título de duque de Cantábria para seu corajoso filho Pelágio, irmão de
Hermengarda. Esta é mandada para o Mosteiro da Virgem Dolorosa, onde deveria
ficar protegida, em virtude das ocupações militares de seu irmão; mas o lugar é
assaltado pelos árabes que têm intenções bastante lascivas para com as monjas.
Para escapar deles, as religiosas decidem submeter-se ao “martírio”; em outras
palavras, uma sessão de suicídio coletivo. Antes, porém, que Hermengarda fosse
sacrificada, é resgatada por Abdulaziz, um amir do árabes, que pretende torná-la
sua esposa.
Em Covadonga, caverna onde estão refugiados
Pelágio e outros guerreiros godos, chega a notícia do sequestro de Hermengarda.
Preocupado com o que possa acontecer a sua irmã, Pelágio reúne seus homens para
partirem em busca dela. Sua atitude é barrada por Eurico, que se revela como o
cavaleiro negro, apresentando como prova uma carta de Teodomiro que, àquela
altura, já era aliado dos árabes. Eurico não quer pôr em risco o que resta de
um exército precário; por isso, assume a empresa do resgate de Hermengarda, não
revelando seu interesse particular na causa, admitindo como companheiros apenas
guerreiros sem família.
O resgate é efetuado com sucesso. A salvo em
Covadonga, Hermengarda, ainda bastante impressionada com os últimos sucessos, pensa
alto sobre um terrível remorso que carrega consigo: sua ingratidão para com
Eurico, a quem julga morto. A donzela admite tê-lo rejeitado por obediência ao
pai. E bem perto dela, sem que saiba, quem está? O próprio Eurico, que agora
não pode amar Hermengarda em razão de seus votos sacerdotais que incluem o
celibato. Contrariado mais uma vez em seu amor, Eurico decide concluir seus
dias, fiel a três ideais: sua pátria, sua fé e seu amor. O presbítero prepara
uma armadilha para os grandes traidores do seu povo: Juliano, o conde de
Septum, e Opas, o bispo de Híspales: as duas últimas vítimas de seu
franquisque. Finalmente, entrega-se sem resistência à cólera de Muguite, amir
da cavalaria árabe, que parte-lhe o crânio com uma espada. No dia seguinte,
Pelágio desperta com o canto de sua irmã, que entoava um dos cânticos compostos
pelo inspirado presbítero de Carteia; após cantar, ela emite um riso insano,
pois estava mesmo enlouquecida.
Esse final tremendamente épico confirma a
posição do autor quanto ao celibato clerical, manifestada já no prólogo do
livro. Herculano fundamenta sua tese com bastante propriedade ao criar um
desenlace tão trágico para seus personagens. Nesse quesito, não poderia
contestar seu êxito. O que contesto são suas propriedades romanescas e seu
poder de fabulação, bastante limitados por seu tino histórico. De fato, o
historiador prejudicou bastante o romancista. Pelo menos em Eurico foi assim: a ficção estava sempre
em segundo plano, à margem da explicação histórica, de maneira que o leitor não
consegue ter um retrato mais sólido de personagens fundamentais como a própria
Hermengarda, cuja participação na narrativa é bastante ínfima. Os episódios são
enfim narrados muito objetivamente, constantemente esclarecidos pelo autor com
descrições minuciosíssimas e notas de rodapé.
A leitura do Eurico
foi, portanto, arrastada e aborrecida. É o tipo de livro que vale mais pelo
conhecimento da tendência medievalista na escola romântica. Sua composição já
era ultrapassada mesmo para sua época, o que renderia a Herculano, anos depois,
críticas ferinas da parte de autores como Eça de Queirós. No mesmo ano em que Eurico apareceu em Portugal, Macedo
publicava A Moreninha no Brasil, o
que demonstra que o Romantismo no Brasil estava bem mais interessante àquela
época. Ainda que sejam obras com propostas completamente diferentes, devemos
lembrar ainda que, em pouco tempo, teríamos o nosso Alencar com seus romances
históricos. O Guarani e As Minas de Prata dão o grande exemplo
de que é possível trabalhar um contexto histórico sem ofuscar o brilho e a
graça de um romance legítimo, uma obra de arte.
Vale lembrar que Eurico, o Presbítero é o primeiro livro de um projeto literário a
que seu autor deu o nome de O Monasticon,
constituído, além da obra já citada, pelo romance O Monge de Cister, minha próxima leitura do Herculano. Mas isso não
deve ser breve rs!
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
***
Instagram: @autordanielcoutinho
SKOOB: http://www.skoob.com.br/usuario/1348798 Escreva para o blog: autordanielcoutinho@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário