Esperava fazer as pazes com Maria José Dupré
este ano, pois em 2016 fiquei bastante decepcionado com O Romance de Teresa Bernard. Conforme prometido, Luz e Sombra (1944) foi o livro da vez
e, se não fiz inteiramente as pazes com a autora de Éramos Seis, ao menos já nos cumprimentamos de cabeça erguida rs.
Longe de ser um livro ruim, Luz e Sombra é aquele bolo que passou do ponto; o gosto pode até
não ser muito bom, mas a gente continua comendo mesmo assim rs. Trata-se de um
romance de costumes, cujo problema maior são os excessos. A autora parece ficar
tão empolgada com a descrição dos costumes, que se esquece de que o leitor pode não estar tão interessado nisso.
Sabe aquela tia que começa a contar uma história e faz um arrodeio estonteante
até chegar onde quer? Eis o que Maria José Dupré faz em Luz e Sombra, com a diferença que o “arrodeio” é aqui a própria
mensagem.
Tenho percebido também a preferência da autora
pela narrativa em 1ª pessoa. Os quatro romances que li dela são narrados por
mulheres, o que confirma ainda mais sua postura feminista, tão perceptível em
toda sua obra (pelo menos nos que li). Em Luz
e Sombra, a narradora é mana Rosa, moça velha pertencente a uma rica
família paulistana do século XIX. A narrativa contada ocorre entre 1869 e 1891.
São 22 anos de acontecimentos cotidianos, corriqueiros e triviais dessa
numerosa família de quatorze irmãos. Eis outra dificuldade que o romance pode
apresentar em suas primeiras páginas: identificar as dezenas de personagens que
nos são apresentados, pois, como se não bastassem os treze irmãos de mana Rosa,
temos os pais, os tios, os primos, os amigos e, claro, os inimigos. Como esses
mil tipos vão/voltam no romance com mais/menos espaço, aleatoriamente, tudo fica
meio confuso. Portanto, se você pretende ler Luz e Sombra, vou te dar uma mãozinha e organizar toda essa turbamulta
rs:
Os pais de mana Rosa são o barão e a baronesa de
S. Marcos, que tiveram, como já dito, quatorze filhos (7 homens e 7 mulheres),
sendo apenas quatro deles casados no começo da narrativa. Os homens são: Félix
(casado com Eponina), Augusto (casado com Aninhas), Luís, Inácio (gêmeo de
Leontina, reside na Itália, onde estuda pintura) Vicente, Lourenço e o pequeno
Bonifacinho. As mulheres são: Leopoldina (casada com Alberto), Leontina (gêmea
de Inácio, reside no Rio de Janeiro, casada com o primo Paiva), mana Rosa,
Maria Letícia, Francisca Miquelina e as adolescentes Adelaide e Cristina. Mora
ainda com a família o solteirão tio Antônio (irmão da baronesa). Ufa!
Passando para a estrutura, temos uma narrativa
bem fragmentada e aleatória no percurso desses vinte e dois anos. Embora
narrado por mana Rosa, podemos dizer que a protagonista do romance é Maria
Letícia, pelo fato de que ela protagoniza a grande maioria dos episódios
relatados por sua irmã solteirona. É até meio complicado passar à trama, porque
simplesmente não há trama. Portanto, para você que espera ler um livro com
vários acontecimentos encadeados numa trama, Luz e Sombra não será uma boa opção. Trata-se de um dos romances
mais despretensiosos que já li, tanto que, depois de finalizar um terço do
volume, ainda não conseguia lobrigar o propósito da autora.
Sentia-me incomodado com a postura da narradora.
É uma figura completamente resignada e que não tem vida própria. Mana Rosa, nas
trezentas páginas de Luz e Sombra,
fala pouquíssimo de si. Até ouso dizer que a única ocasião em que ela chega a
falar tão somente de si mesma é no primeiro capítulo, quando diz: “Nunca fui
alguém na minha numerosa família; por uma farsa cruel do destino, compreendi
que era inferior às minhas irmãs; elas eram belas, claras ou morenas,
inteligentes e elegantes; eu fui sempre feia e triste. Tinha saúde fraca e por
isso, aos vinte e dois anos, chamavam-me solteirona e homem algum me escolheu
para esposa.” (pág. 8).
Após esse interessante desabafo, ela desaparece
de tal forma, ao ponto de quase se assemelhar a um narrador em 3ª pessoa. E
aqui, faço um rápido parêntese para comentar que, em certos momentos, a própria
autora também parecia esquecer-se de que estava narrando em 1ª pessoa, pois
mana Rosa é capaz de dar detalhes que vão além de uma observação comum,
beirando ser uma narradora onisciente e não simplesmente um caráter intuitivo.
Como nada de interessante acontece em sua própria vida, o jeito é ser
coadjuvante na vida de suas irmãs, especialmente a bela Maria Letícia, cuja
personalidade forte, marcada por sua coragem e ousadia, é destaque na família.
É como se Maria Letícia fosse a “luz” e mana Rosa a “sombra” rs.
A propósito do título, e agora falando sério rs,
a autora o relaciona com a narrativa principalmente sob dois aspectos. A
princípio, associamos a “luz” à fase feliz da família de mana Rosa, cuja
felicidade é, tempos depois, embaciada por penosas agruras, numa fase de
“sombras”: “Nunca pude esquecer esse dia; essa festa foi o marco que separou a
vida de nossa gente; foi como um limite. Começou uma época de tristeza e esse
dia foi o último de risos e festas. Foi a sombra interceptando a luz.” (pág.
130). Mas, claro, não poderíamos esquecer que as ideias de “luz” e “sombra”
relacionam-se mais efetivamente com um dos temas centrais do livro: a
escravidão. Esta, enquanto “sombra”, seria brevemente extinta pela “luz”, que
seria a lei da abolição de 1888.
Como disse, o livro é todo de trivialidades e
episódios cotidianos. Mana Rosa começa por contar do noivado de Maria Letícia
com Fernão, o que provoca ciúmes em Francisca Miquelina, que também estava
interessada no moço. Como nos capítulos iniciais nossa narradora não é tão
invisível, ficamos sabendo que ela também tivera interesse pelo noivo da irmã,
mas nada muito consistente (como o sentimento de Francisca Miquelina), uma vez
que mana Rosa encara Fernão como uma inocente fantasia secreta. Ela apenas
permite-se imaginar como seria se estivesse no lugar da irmã: “Durante todo o
tempo, observei-o; quando falava, quando ria, quando tomava vinho. Era capaz de
amá-lo até a morte, mas sou feia, tola e tímida. Não posso ser amada. ‘Meu
Deus! Estou outra vez pensando no noivo de minha irmã; dai-me um bom sono e
afastai-me da tentação.’” (pág. 23).
Maria Letícia e o noivo, após o casamento, vão
morar na fazenda Santarém, de propriedade do próprio Fernão. Tudo são
felicidades até o dia em que Maria Letícia percebe o interesse de D. Deolinda,
sua vizinha, por seu marido. Embora Fernão não corresponda às insinuações da
vizinha (que é casada com um velho comendador), Maria Letícia põe Modesta, sua
escrava de confiança, de vigia. Esta presencia uma cena hilária: D. Deolinda,
num dia em que acentuara suas provocações, acaba sendo rejeitada por Fernão,
que se mantém fiel à esposa. Revoltada, ela aguarda uma boa oportunidade para
se vingar, o que não vem a tardar.
Após flagrar a escrava Inocência cuspindo nos
barris de água de Santarém, Maria Letícia ordena ao feitor da fazenda que a
castigue severamente. O castigo acaba saindo mais severo do que o esperado e
Inocência, que já vivia doente, não resiste e morre. Esta circunstância deixa
Maria Letícia perplexa, de tal maneira que ela enche-se de um grande sentimento
de culpa. Mas o pior viria depois: uma denúncia “anônima” a acusa de ter
ordenado que açoitassem Inocência até a morte e um processo é logo aberto
contra ela. Fernão, num gesto de nobreza, assume a responsabilidade pelo caso,
indo a julgamento em lugar da esposa.
Muitos outros episódios familiares são narrados
por mana Rosa: a infelicidade de Francisca Miquelina que, casando-se com um
primo bem mais velho (por imposição do pai), precisa aturar a escrava que o
marido tem por amante; a expulsão de Lourenço após decidir casar-se com uma
moça de família humilde; a orfandade de Carola, uma prima corcunda que passa a
viver sob os cuidados da tia, a mãe de mana Rosa; o casamento secreto de Inácio
com Carmela, uma italiana; e muitíssimas coisas mais, que não falta pano pra
manga rsrsrs.
Um fator que impulsiona bastante o andamento da
narrativa é o diálogo, aqui um tanto exagerado, a meu ver. Mais da metade do
livro certamente é toda de conversas entre os personagens, muitas delas
maçantes e desnecessárias. Mas o que mais me irritava mesmo eram as discussões
políticas, tanto sobre os conflitos na Europa, como a questão da abolição no
Brasil e o grande embate entre monarquistas e republicanos. E temos exemplos de
conversas desse gênero por todo o livro! Claro que também não poderia deixar de
citar as maledicências da baronesa de Sobral, uma velha novidadeira que
costumava visitar os pais de mana Rosa, a fim de colher notícias, para depois
comentar com dona Escolástica, sua comparsa rs. Há uma passagem em que
Leopoldina a imita, especialmente na maneira de dançar; quase morro de rir kkk.
Aproveito pois para destacar o humor da autora
que, sem dúvidas, é o elemento mais motivador do romance, em virtude da
ausência de trama. São inúmeras as passagens chistosas que levam ao riso. Por
outro lado, muitos assuntos sérios também são tratados: a condição da mulher no
século XIX, o preconceito de classes e os maus tratos sofridos pelos escravos.
A Luz e Sombra, já deu pra perceber,
não falta substância; há matéria mesmo sobrando, eu diria. A meu ver, muita
coisa poderia ter sido suprimida, pois os excessos da obra acabaram por
saturá-la e empanaram seu brilho. Em nenhum momento o livro chega a ser ruim,
principalmente depois que você percebe que o propósito da obra é fazer um
registro dos costumes daquela época, relegando a ação a um segundo plano. Não é
o enredo que tem força neste livro, mas a descrição minuciosa das
circunstâncias. O que faltou foi uma execução menos deliberada e mais contida;
uma moderação que enxugasse as sobras e deixasse o texto mais limpo. Graciliano
teria puxado as orelhas à Dupré rs.
A experiência que tive com Luz e Sombra, independente de não ter sido exatamente o que
esperava, foi marcante no sentido de que me deixei levar pelo entusiasmo da
autora; abracei mesmo sua proposta, acompanhando os episódios domésticos,
dessem no que dessem. Seguramente, o que mais me agradou foi essa convicção de
que lia páginas de alguém a quem não interessava ser famosa, escrever uma obra-prima
ou ingressar no cânon literário; antes, queria contar histórias do seu jeito, à
sua maneira. Parece que conseguiu rs.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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Bacana. Gostei da autora logo que li Éramos seis no ano passado (num impulso só). Lia sempre com um nó na garganta. Sensação que durou toda a leitura. Um dos melhores livros que li...acho que de fato é um clássico...quem sabe se a autora tivesse tido um bom editor sua obra teria hoje, um reconhecimento maior?
ResponderExcluirOlá, Luiz! Maria José Dupré, na verdade, teve sim excelentes editores. Assim que estourou, ela assinou com a Saraiva que divulgou seus livros para todo o Brasil, tornando-se bastante popular. Mais tarde, esse trabalho seria continuado pela editora Ática, mas o público foi perdendo o interesse. Os livros da autora não tinham muito poder de resistência, pois em sua maioria foram escritos sob medida para o público de meados do século passado. "Éramos Seis" é uma exceção, sendo editado até hoje pela Ática, como também alguns títulos infantis da autora. Abraço!
ExcluirDaniel,
ResponderExcluirQue surpresa agradável descobrir uma resenha sobre um livro que li há muitos anos, no final da minha adolescência! Acho que poucas pessoas o leram. Ainda me lembrava de mana Rosa, da personagem Maria Leticia, do tio solteirão, e da Baronesa do Sobral, inclusive da passagem em que ela é imitada jocosamente... Parabenizo seu texto, ao mesmo tempo em que agradeço a oportunidade de retornar, via resenha, àquela época em que passava horas da madrugada imerso em leitura de obras de ficção. Um abraço.
Que belo comentário, Luiz! Fico feliz por ter evocado uma lembrança tão agradável. Eu me propus a ler toda a obra dessa autora, mas os últimos que tenho lido não têm me agradado muito. "Teresa Bernard" e "Gina" não caíram no meu gosto. "Luz e Sombra" felizmente foi mais divertido, mas a obra máxima da autora continua sendo "Éramos Seis". Este ano pretendo ler "Os Rodriguez". Vamos ver o que vou achar rs! Abraço ;)
ExcluirEu li Angelica, Os Rodriguez, O Romance de Tereza Bernardes, Éramos Seis e Luz e Sombra qdo eu tinha uns 12 anos...ou seja...30 anos atrás...e como foi bom ler esta resenha e novamente viajar naquele mundo da Mana Rosa!! Engraçado como as pessoas possuem visões diferentes de uma mesma obra. O q eu mais gostei em Luz e Sombra e q inclusive levam a indicá-lo qdo pedem sugestão de romance, é justamente a descrição minuciosa de coisas tão bobas...como as "esporinhas de cor lilás" q levavam nos cabelos para demonstrar tristeza ou desagrado...para uma menina de 12 anos, aquilo era como viajar no tempo dos vestidos arrastando pelo chão e se render às paixões pelo mocinho da história. Amei relembrar dos detalhes.
ResponderExcluirSim, a autora faz um trabalho de ambientação bastante eficiente, mas realmente penso que ela se excede por vezes. Percebi isso em Teresa Bernard, Luz e Sombra e Gina.
ExcluirAtualmente estou lendo Os Rodriguez e tenho apreciado bastante. Espero que se mantenha assim até o fim. Lindo o seu comentário! Abraço.
Concordo plenamente com a opinião de Unknown.Ao ler os livros de Maria José Dupré,me transporto para o ambiente que ela descreve com riquezas de detalhes e me sinto como se fosse personagem de seus livros.
ExcluirAs críticas devem ser construtivas e não mordazes.
Sim, as opiniões divergem, mas reli minha resenha e, sinceramente, não a achei mordaz. Talvez a que escrevi para "Gina" tenha sido um pouquinho rs, mas esta trata de um livro que me foi agradável por diversos momentos. É mais provável que o fato de ter gostado do livro mais do que eu te torne um crítico menos imparcial ou talvez simplesmente te falte experiência suficiente para reconhecer os defeitos tão óbvios de "Luz e Sombra". Abraço!
ExcluirDesde que me entendo por gente ouço minha mãe dizer que escolheu meu nome depois de ler o livro Luz e Sombra. Ela se encantou com a personagem Maria Letícia. Sempre pensei em procurar esse livro e hoje buscando na intenet encontro essa resenha muito legal.
ResponderExcluirQue bacana! É sempre um prazer conhecer histórias desse tipo, quando a literatura interfere na vida das pessoas. Maria Letícia é uma personagem muito interessante, e gostei das atitudes dela perante seus próprios erros. Um abraço!
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