Cante
Lá que Eu Canto Cá (1978) é a rapsódia da vida sertaneja. Não se
trata de um livro composto para ser o que é, mas de uma conquista —
literalmente falando — de seu próprio autor.
Quando o Centro de Documentação, Estudos e
Pesquisas (CENDEP), responsável pela divulgação do trabalho de artistas
populares da Região dos Cariris, idealizou a publicação de uma obra que
sintetizasse a poesia popular nordestina, o nome de Patativa já era bastante
cultuado. A ideia, a princípio, era reunir toda a obra do poeta de Assaré, mas
logo percebeu-se a dificuldade do projeto, diante de alguém tão despretensioso
no que diz respeito à publicação de sua lavra literária. “Nunca quis fazer
profissão de minha musa”, dizia ele. Com apenas um livro publicado àquela
altura e mais uma porção de folhetos avulsos dispersos aleatoriamente, a fonte
mais segura de toda sua obra não era outra senão o próprio Patativa, que a
sabia inteiramente de cor. Decidiu-se, pois, reunir a parte mais significativa
da produção patativana, cabendo ao próprio autor selecionar e ordenar os
poemas. Assim nasceu Cante Lá que Eu
Canto Cá, o livro de todos os sertanejos.
Eis uma obra que é um verdadeiro portento da
literatura nordestina. São mais de cem poemas compilados num livro que é uma
amostra cabal do talento de Patativa. São inúmeros estilos e temáticas adotados
pelo autor, que escreve desde glosas em linguagem matuta a sonetos
rigorosamente metrificados. Mas o que prevalece mesmo no livro é essa
preferência pelo registro oral da fala do caboclo nordestino, tornando-o ainda
mais característico em seu propósito: cantar o sertão e o sertanejo. Mas o que
Patativa não dispensa mesmo é a “rima”, a alma do poema, segundo ele, que chega
a criticar o “verso branco” logo no poema de abertura “Aos poetas clássicos”.
Há tanta matéria no livro, que uma simples
resenha não é capaz de abarcar a substância de Cante Lá que Eu Canto Cá. Mas passemos aos poemas narrativos, pelos
quais tenho uma quedinha, e que constituem relevante espaço no conjunto da
obra.
O humor é um elemento bastante significativo em
poemas como “Maria Têtê”, que trata da infidelidade de uma mulher, na melhor
veia cômica do autor. Têtê, mulher de Joge Sutinga, é uma bela caboclinha que
inusitadamente começa a aparecer em casa com vários objetos achados; mas depois
de dar a luz a um lindo loirinho de olhos azuis, fica evidenciada a real
procedência desses objetos rs. “Tudinha” também tem certo chiste no relato de
um homem, cuja amada o trocou por um palhaço. “O sonho de Mané Filiciano”, por
sua vez, conta as desventuras de um homem que, após sonhar com o diabo, vê sua
sorte despencar. “Pesão” também é um dos mais divertidos, provavelmente inspirado
na figura real de um estudante baiano chamado Sacramento, dono de um pé de
tamanho descomunal. Eis uma pequena amostra da leveza do humor de Patativa: “Para
não andar descalço/E no pé botar um calço/Precisa fazer contratos:/Alguém me
disse que foi/Um grande couro de boi/Para o seu par de sapatos.” (pág. 260).
Mas não pensem que o humor predomina neste
livro! Infelizmente, Patativa privilegia temas tristes e sérios. Certamente foi
isso o que mais me desagradou nessa leitura. Quem leu minha resenha de seus Cordéis, deve lembrar do que falei a
respeito da imagem do “nordestino sofrido”, que aqui é muito mais evidente. Patativa
parece ser um porta-voz do homem do campo que sofre; muitos de seus poemas são “ais”
desesperados e apelativos; mas não podemos esquecer que estamos falando de
alguém que esteve a vida inteira muito próximo da classe mais miserável de
nossa região. Felizmente, como a querer equilibrar o bom tom de sua obra,
movido por uma espécie de orgulho sertanejo, ele enaltece a vida no sertão e
seus costumes, desprezando os recursos modernos da civilização em poemas como “Ingém
de ferro” e expressando a mais sincera saudade de seu torrão em praticamente
todos os poemas escritos no Rio de Janeiro, onde esteve em decorrência de uma
enfermidade no pé.
Dessa parcela de poemas sofridos, contudo,
destaco alguns que são realmente excelentes. “A morte de Nanã” é um dos mais
tristes, constituindo-se no relato de um pai sobre a morte de sua filha na seca
de 32. O clássico “A triste partida” dispensa comentários, por ser a composição
mais célebre do autor e, provavelmente, o texto literário mais importante que
já se escreveu sobre a questão do êxodo rural. “Mãe preta” é um dos meus
favoritos, talvez por ser impregnado de uma atmosfera que transmite a nostalgia
do eu-lírico; lê-lo vale por um aconchego numa noite chuvosa. “Flores murchas”,
finalmente, é soneto digno da poesia moderna, à qual Patativa, mesmo sendo
averso, acabou experimentando talvez involuntariamente.
A força da poesia de Patativa do Assaré está de
fato na sua oralidade. Em muitos poemas, o autor sugere um interlocutor,
geralmente algum “sinhô dotô”, a quem será confiado um causo, um desabafo, um
lamento ou até um protesto. A referência a um interlocutor confere ao poema
aquele tom de “conversa” ou “dedo de prosa”, tornando-o ainda mais próximo do
leitor, que faz papel de quem está com os ouvidos atentos àquela descontraída
prosa gostosa de interior.
Ler Cante
Lá que Eu Canto Cá foi uma experiência maravilhosa, ainda que um tanto cansativa
pela extensão da obra que, como já disse, privilegia os aspectos mais sofridos
da Região Nordeste. Mas, afinal, passei a admirar ainda mais Patativa que tanto
amou a poesia e o sertão, que não soube viver sem ambos.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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