sábado, 23 de dezembro de 2017

Vicentina, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #55

Queria terminar o ano com um livro especial, por isso guardei Vicentina para este momento. Todos vocês sabem da minha estima por Macedo. É aquele autor que leio com um sorriso comprido, que me faz cócegas no cérebro, que me aquece o coração, enfim. A leitura de seus romances é, para mim, quase um exercício de purificação rs, como também um refúgio contra todo o pessimismo deste mundo moderno.

Vicentina (1853) concentra-se em dois núcleos principais. O primeiro gira em torno da personagem que dá título ao romance, uma criatura misteriosa, tida como louca, que vive reclusa nas ruínas de uma ermida, na companhia de uma velha e uma menina. O segundo constitui-se de uma intriga amorosa na qual estão envolvidos vários personagens, dentre eles o casal principal: Adriana e Américo.

Como já era de se esperar, sendo Macedo um repetidor de fórmulas (eis o defeito seu que mais me aborrece), não poderia faltar um personagem velho e bastante conhecedor de antigas histórias. Aqui, quem faz as vezes de contador de causos é Leocádio que, muito supersticioso, relata as ocorrências naturais e sobrenaturais que cercam a ermida abandonada. Mesmo aborrecendo essa repetição de fórmulas, é sempre com algum enlevo que acompanho esses causos do passado.

Mas sigamos com mais linearidade, para melhor compreensão dos leitores.

A narrativa abre com Américo dirigindo-se à fazenda do Rio Claro, nas proximidades do Rio de Janeiro, onde se inaugura um engenho de cana-de-açúcar. Esta fazenda é propriedade de Cristiano e Gabriela, sua esposa. O casal tem uma única filha, Adriana, uma jovem solteira, que é apaixonada por Américo, e por ele correspondida. Ambos, contudo, receiam expressar seus sentimentos, especialmente pela diferença social que os separa, sendo Américo um enjeitado que sempre viveu da caridade de uma velha que o adotou, até finalmente conseguir um emprego público, por intermédio do Dr. Benedito, seu protetor.

Não tinha como não associar Américo a Cândido, de Os Dois Amores, por serem órfãos e rodeados de protetores, e ainda por certos detalhes que prefiro omitir, para não precipitar revelações. Mas a verdade é que são tipos bem diferentes de caráter, sendo Cândido comedido e recatado, e Américo estouvado e extravagante.

Um dos ingredientes que mais me encanta na pena de Macedo é o seu humor, já perceptível no primeiro capítulo da obra. É inútil manter-se sério diante do caiporismo de Américo ao alugar um mouro lento e manhoso, que parece o estar distanciando da fazenda do Rio Claro. Sempre que Américo pergunta a alguém pela distância restante, o percurso se alonga em pelo menos meia légua rs.

Os sentimentos de Américo e Adriana, embora não claramente manifestados, não passam despercebidos a todos quanto os observam. A verdade é que Cristiano e Gabriela fazem muito gosto na relação dos jovens, que também é aprovada pelo Dr. Benedito que, como já disse, é o protetor de Américo. Contudo, dentre os circunstantes que vieram para a primeira moagem da fazenda, temos três personagens que obstarão a união do feliz casal: Fabiana (velha viúva), Frederico (moço estroina) e Leonor (sobrinha/vítima de Fabiana).

Confesso que custei entender os motivos que moviam estes personagens, especialmente dona Fabiana, a executarem as mais infames intrigas contra o casal principal. De começo, só ficamos sabendo que, na verdade, quem dona Fabiana pretendia atingir era o Dr. Benedito, pois há muitos anos o médico havia impedido seu casamento com Fernando, irmão de dona Gabriela. Fabiana deseja lograr os amores de Américo, pois o acredita um filho natural de Benedito, para quem seria um grande desgosto a não consumação do casamento com Adriana.

O caso é que as intrigas de Fabiana chegam a proporções que podem parecer inadmissíveis para suas justificativas, principalmente porque Adriana é quem acaba sendo vítima dos ataques da megera. Não podia conceber que a maldade de alguém pudesse ser tão medonha ao ponto de sacrificar terceiros, que de nada tivessem culpa. Mas até o final do romance, o leitor toma conhecimento de circunstâncias que o fazem compreender melhor o caráter de Fabiana. Quanto a Frederico, após dissipar a fortuna herdada de seu finado pai, pretende um casamento vantajoso para amparar-se financeiramente; Adriana não passa de uma feliz alternativa para seu intento. Leonor, finalmente, é um mero fantoche nas mãos de sua perversa tia.

Macedo acaba dando mais ênfase ao núcleo de Adriana, quando eu, de minha parte, estava muito mais curioso por Vicentina. Essa excêntrica personagem que, a meu ver, constituiu a novidade deste romance, não foi devidamente aproveitada, o que me pareceu um sério problema do livro, que estampa seu nome na capa. Foi o que mais me desagradou em Vicentina: a falta de Vicentina.

Dessa interessante personagem, devo ser muito cauteloso quanto ao que devo dizer. Não se trata exatamente de uma louca, como muitos pensam, simplesmente por ouvi-la cantar à beira de um abismo. Vicentina é uma desgraçada que decidiu afastar-se do mundo após ter sido vítima de uma fatalidade. Desconfiada de todos, mantém-se constantemente reclusa com uma velha que, sempre de luto, vive chorando pelos cantos; e uma menina que, a despeito de estar rodeada por tipos tão melancólicos, vive rindo-se o tempo todo. Uma única pessoa é admitida no lar das ermitoas; trata-se do Dr. Benedito que, em segredo, visita-as com regularidade.

Esqueci-me de dizer que, durante o trajeto até a fazenda do Rio Claro, Américo trava conhecimento com Camilo, filho de um fazendeiro vizinho, o senhor Mariano. É Camilo apaixonado por Vicentina, a quem observa de longe em seus momentos meditativos, quando se põe a cantar as mais tristes melodias à beira do fatal abismo chamado de “boca do inferno”, designação esta devidamente explicada pelo fantasioso senhor Leocádio, que supunha criaturas malignas às três mulheres da ermida.

Vicentina pareceu-me evidentemente uma boa leitura de entretenimento. As fórmulas de Macedo são aqui, todas elas, aplicadas em função de entreter o leitor: com muitos diálogos, mistérios do passado, transcrição de melodias, intrigas de família, etc. A certa altura do romance, porém, percebi certa densidade que lembrou-me as deliciosas digressões de Os Dois Amores. Macedo, com suas intenções moralistas e sua fé cristã, tenta explicar a razão dos padecimentos de seus personagens. Adriana, por exemplo, acaba sendo vítima de uma terrível armadilha de dona Fabiana, mas por imprudência sua mesmo. É como se o autor quisesse alertar as fieis leitoras de seu tempo. Ainda que advertida pela própria Vicentina para que tivesse cuidado, Adriana acaba agindo com ingênua credulidade, o que a coloca numa difícil situação.

Macedo ainda alerta para a necessidade de haver confiança total entre mãe e filha. “Oh! quantas desgraças teriam havido de menos no mundo se as mães soubessem fazer-se as confidentes fieis e dedicadas de suas filhas!” (vol. 2, pág. 104). Esta referida passagem lembrou-me bastante um romance francês que li há alguns anos: O Pecado das Mães, de Henri Ardel. Como se não bastasse justificar o sofrimento de Adriana, ele ainda dá o exemplo de qual atitude seria a mais sensata nas mesmas circunstâncias apontadas, não só por parte da filha, mas de seus pais também. Macedo é o filósofo da boa família rs.

Vicentina é pois um excelente entretenimento para quem curte literatura romântica, sendo dotado dos usuais artifícios que tanto popularizaram o estilo de seu autor. Acredito que tenha assinalado com clareza o que vi de bom e ruim na obra. Causará certamente um efeito mais positivo em quem não conhece ainda o estilo de Macedo; nem por isso, será desagradável para quem, como eu, é apreciador incurável da pureza que exala da pena deste tão amado pintor da cena doméstica.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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