Eis
um livro que representa muito bem as propostas do Modernismo. Alguns críticos
preferem encaixá-lo no Pré-Modernismo, por ter sido publicado em 1919,
portanto, antes da semana de 22; mas a verdade é que tanto a forma como o
estilo de Madame Pommery mostram o
quanto seu autor, Hilário Tácito, estava distanciado do modelo de romance do
século XIX.
Confesso
que sou meio apático à literatura moderna, especialmente por essa bagunça de
gêneros entrelaçados e sobretudo por julgá-la bastante pretensiosa. Não quero
generalizar, mas a verdade é que muitos autores modernos, a meu ver, queriam
mais chamar atenção do que produzir arte; e a maneira que lhes estava mais à
mão era uma busca incessante pelo “diferente”, aspectos que lhes rendessem
originalidade, recursos radicais o suficiente para que pudessem figurar como
autores modernos e preocupados com o
desenvolvimento da literatura nacional.
Nem
queria tocar nesse assunto, mas a leitura de Madame Pommery não tinha como não trazê-lo à tona, até porque essa
obra se encaixa perfeitamente nisso tudo que citei. O autor de Madame Pommery queria a todo custo um
lugar na literatura, e não poupou recursos para conquistá-lo. Foi bastante
pretensioso ao querer compor uma obra que exalasse uma novidade estupenda que
causasse forte impacto em seus contemporâneos; e, podemos dizer, acabou
conseguindo.
José
Maria de Toledo Malta (1885-1951) trabalhou com bastante perícia e cálculo na
fabricação de seu único romance. É pertinente lembrar que ele foi importante
engenheiro civil de seu tempo, participando na construção dos primeiros
arranha-céus de São Paulo. Afirmo ser pertinente essa lembrança para comprovar
que Toledo Malta era um homem de cálculos, o que influiu visivelmente na
confecção de Madame Pommery. É
necessário dizer que ele tinha perfeita consciência de toda sua ousadia, e ele
mesmo faz questão de deixar isso bem claro. Preveniu-se com o sugestivo
pseudônimo de Hilário Tácito, que já diz muito a seu respeito. Percebam a
perspicácia do nome através da união de dois adjetivos opostos. Além disso, ele
teve a prudência de localizar a história numa cidade fictícia em São Paulo,
chamada Botucúndia, a fim de chamar indiretamente os paulistas, daquele tempo,
de “índios”. Essa sagacidade é apenas o princípio e pontapé inicial de uma obra
que abusa da ironia, da sátira, da irreverência e de um cinismo detestável.
Desculpem se minha sinceridade irrita alguém, mas preciso confessar que esse
cinismo agudo e pretensioso me incomodou bastante.
Toledo
Malta dá voz a Hilário Tácito que é o narrador de Madame Pommery. À medida que prosseguimos com a leitura, percebemos
a evidente fuga às convenções do gênero. Perguntava-me: “Isto é mesmo um
romance?” e logo me respondia o debochado Hilário Tácito que muito se enganava
quem considerasse sua obra um romance, uma vez que constituía crônica verídica
da vida e feitos de Madame Pommery. O narrador persiste na veracidade dos fatos
e antes de dar início à narrativa, adverte seus leitores de que seu livro é
honesto e de boa fé, e que o escreve amparado pelo bom senso, a decência e a
moralidade. E sim... isso é pura ironia!
Tenho
um livro póstumo do Lima Barreto, Impressões
de Leitura, em que ele trata de Madame
Pommery, e aprova essa mistura de gêneros adotada pelo autor, chegando a
considerar ultrapassado o ato de classificar obras literárias. O criador de Policarpo Quaresma, contudo, antipatiza
ter o autor saturado a obra de referências. Lima Barreto que, a meu ver, era
outro pretensioso, por sua vez, tentava conquistar o mesmo que Toledo Malta.
Felizmente, por mais controversa que ainda seja essa questão de gênero, ela
ainda persiste e, de modo geral, todo leitor que se preze, julga importante
diferir um conto de um romance, uma crônica de um ensaio, um conto de uma
crônica, etc.; pois de fato existe sim uma linha de separação entre os gêneros.
Negá-lo seria tolice! Quanto às inúmeras referências do livro, vou ter que
concordar com o Lima. Nesse caso, como classificar Madame Pommery? Por trazer fatos e personagens fictícios, é sim um
romance, mas a escrita requintada de
seu autor e a forma como a obra se configura mais o aproximam de um ensaio
satírico. Certamente, não tive a sensação de estar lendo um romance.
Outro
fator que bastante me incomodou e que também pode ser incluso na pretensiosidade
do autor é a excessiva erudição da linguagem. É impossível ler Madame Pommery sem um dicionário rsrsrs.
O mais chato é que você percebe que essa erudição é mesmo forçada e presunçosa,
sendo que o próprio autor o reconhece, prometendo inclusive abandonar suas
“louçanias vernáculas” (vã promessa!). Aliás, todos os fatores que me
incomodaram nesse livro (a linguagem, a forma, o cinismo, as digressões, etc.)
são todos assinalados pelo narrador, mostrando sempre ser consciente de suas
ousadias. A falar a verdade, todo o livro é muito bem calculado; os comentários
satíricos são bastante pertinentes às situações narradas; os recursos
humorísticos e debochados chegaram a me fazer rir em alguns momentos (e me
sinto muito mal por isso rsrsrs), meio que forçando o leitor a compactuar com
tanta malícia destilada.
Demoro
a contar o enredo, porque assim como em O Homem que Calculava, ele está em segundo plano nessa obra. São livros
completamente diferentes e parece loucura compará-los, mas a verdade é que em
ambos, a literatura não passa de artifício para se atingir outros fins: um
bastante louvável em Malba Tahan; outro bastante diverso e mesmo desprezível em
Hilário Tácito. Mas para satisfazer os curiosos, vamos lá!
Ida
Pommerikowsky é uma mulher de obscura origem. Sua mãe era uma noviça espanhola
bastante fogosa que abandona o convento e acompanha um domador circense da
Polônia. O veraz cronista desta história confessa não saber se Ida nasceu na
Espanha ou na Polônia. O caso é que sua mãe, já não podendo mais saciar-se com
o domador de feras, foge com outro amante mais lascivo. O pai de Ida é
auxiliado por Zoraida, uma cigana do mesmo circo, nos cuidados da pequena. Ida
aprende com facilidade os costumes ciganos. Sua sensualidade atiça os instintos
bestiais de um ricaço que a estupra, mas dá-lhe uma soma em dinheiro a fim de indenizá-la. O pai de Ida já contava com
aquilo, ao que parece, e já ansiava o dinheiro, mas a boa filha lhe passa a
perna e combina com Zoraida uma fuga. Nem preciso dizer que o dinheiro lá se
foi com elas rsrsrs. Em seguida, o narrador não conta como Ida e Zoraida se
separam; o caso é que cada uma vai para seu lado, para só mais tarde
reencontrarem-se. Ida torna-se uma prostituta itinerária, fazendo turnê por toda a Europa. Ganha o apelido
de Pommery em virtude de sua preferência pelo champanhe francês de mesmo nome.
A
então Madame Pommery acaba desejando conhecer a América e, através de um marujo
de quem se faz amante, chega ao
Brasil, onde ela então reencontra a tal Zoraida, agora uma senhora da alta
sociedade, casada com um importante coronel. As duas se reconhecem, mas Zoraida
ignora Ida, provocando-lhe um sentimento que será fulminante para o desenrolar
da história. Aqui, ela pretende criar um negócio fabuloso, após observar a
decadência dos pontos de divertimento, que comercializavam bebidas a preços
irrisórios. A ideia de Madame Pommery é criar um estabelecimento à francesa, com artigos de luxo,
conduzido por ela e suas alunas, a
fim de reunir a sociedade boêmia paulista. Em outras palavras, é um cabaré
arrumadinho com várias cunhãs, que comercializa bebida e sexo por altos
valores. Fundava-se então o Paradis
Retrouvé. O impacto representativo na economia e sociedade paulista é o que
Hilário Tácito assinala como louvável mérito de sua heroína. Enfim, Madame Pommery, pouco a pouco, vai conquistando
seus objetivos, à medida que usa
homens influentes para tais fins, descartando-os (os homens) em seguida.
A
narrativa, como já deve ter ficado claro, não é linear. O autor faz várias
digressões, onde dá voo à sua sátira ferina, e segue com seu romance, levantando teses de defesa às
prostituas e ao alcoolismo. Para se ter uma ideia, um dos personagens acredita
ser o álcool o alimento mais necessário ao corpo humano, e revela ter planos de
escrever uma tese para defender tal ponto de vista. Percebi que por diversas
vezes o autor também se utiliza de sofismas para melhor se respaldar em suas
teorias e considerações mais radicais. Em alguns momentos, ele chega a ser
ridículo. Inconsequente, ele ataca instituições como a igreja, a família e o
casamento; e é porque seu livro é “honesto e de boa fé” rsrsrs.
Esse
cinismo acentuado, essas digressões cansativas, essa linguagem e forma
pretensiosas me aborreceram bastante. Contudo, é inegável a engenhosidade do
seu autor, especialmente quando evidencia consciência de sua ousadia e do
impacto que causa no leitor. Ler Madame
Pommery foi uma experiência diferente, um tanto desagradável, mas
importante para conhecimento dos ideais literários daquele período, que
ganharam força com a Semana de Arte Moderna. Como, porém, avalio os livros não
pela importância universal ou representatividade popular que tenham, mas pelo
quanto me agradaram/desagradaram enquanto leitor, concluo esta resenha fazendo
a costumeira avaliação de sempre!
Avaliação: ★★
Daniel Coutinho
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