sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Devoção (Devotion), de Patti Smith - RESENHA #77

Às vezes, quero crer que minha antipatia pela literatura contemporânea explica-se na hipótese de que tenha lido os autores errados. É uma boa hipótese, sei. Mas se for mesmo isso, a verdade é que continuo lendo os autores errados. Não estou querendo generalizar, claro. Acredito que ainda existem muitos escritores bons e, inclusive, pretendo ser um deles. O que me faz cismar é: por que os escritores do passado eram tão infinitamente melhores?

Minha mais recente experiência com autores vivos talvez não tenha sido realmente a melhor escolha, mas como realizo minhas leituras movido por uma coceirinha chamada curiosidade, cheguei à novelinha Devoção (2017), da cantora norte-americana Patti Smith, que é mais conhecida por sua carreira musical, pelos seus poemas e livros de memórias. Não tenho notícia de outros trabalhos ficcionais de Patti e, depois desta última leitura, sinceramente, não fiquei interessado em saber.

Devoção conta basicamente a história de uma menina de dezesseis anos que abandona os estudos para patinar no gelo. Eu teria preferido ler o conto dos três porquinhos. Por falar nisso, ainda não li a versão clássica do australiano Joseph Jacobs. Prometo fazer resenha assim que ler! Concordo com alguém – que agora não lembro – que disse que, numa obra literária, o importante não é o tema, mas o tratamento que se dá a ele. Se não gostei do tema escolhido pela autora, prefiro não comentar o que achei do tratamento rs. Mas antes que alguém possa questionar, não, eu não acho que Patti escreve mal. Sua escrita é mesmo atrativa e nela reconhecemos claramente a influência poética e musical.

O problema de Patti ao arriscar-se com a prosa foi achar que teria as mesmas licenças gozadas pela poesia. Mesmo quando se escolhe o caminho do fantástico, o que não foi o caso, o prosador precisa atentar-se para o quão convincente será para o leitor o enredo traçado. Se involuntariamente provoca-se uma brecha para o inconcebível, faz-se necessária uma explicação ou justificativa que não desmereça a inteligência do leitor.

A protagonista Eugenia é separada dos pais que são levados da Estônia para um campo de trabalho na Sibéria, durante a ditadura de Stalin. Eugenia, que não tinha nem cinco anos, vai morar com sua tia Irina e o esposo dela, Martin, na Suíça. A garota torna-se uma boa estudante e descobre sua grande paixão: a patinação no gelo. Após a morte de Martin, Irina relaciona-se com outro homem, Frank, com quem decide morar em outro país, deixando apenas algum dinheiro para Eugenia, além do chalé que Martin havia comprado para elas.

Ainda que a autora tente justificar o comportamento de Irina, alegando que a mesma só ficara com a sobrinha por imposição, não me pareceu convincente que ela, pelo caráter que lhe é atribuído, possa ter abandonado Eugenia, com quem convivera desde o nascimento, sem maiores preocupações. E o que dizer sobre uma garota de significativa inteligência que abandona os estudos só para patinar? Alguém poderia citar a vulnerabilidade da personagem, sozinha, sem ninguém que olhasse por ela. Estranho mesmo é que, mesmo vivendo ali por aproximadamente dez anos, Eugenia não tivesse contraído nenhuma relação amistosa com alguém que pudesse auxiliá-la.

Para deixar a narrativa “mais interessante”, Eugenia é descoberta por Alexander, um excêntrico caçador e vendedor de antiguidades. Este oferece seu apoio e a oportunidade de praticar patinação com uma treinadora particular. A proposta é claramente indecente, mas Eugenia, que achava que seus professores não poderiam lhe ensinar mais nada, acaba cedendo à oferta de Alexander, até que este, depois de reconhecer que o talento da garota poderia levá-la para longe, decide investir numa relação aparentemente possessiva.

Os meios que Eugenia escolhe para libertar-se de seu “protetor” não são os mais originais e acarretam consequências igualmente previsíveis. Ao final, só conseguia pensar: “Mas isto é inadmissível!”, ao tempo em que me decidia se avaliaria a novela com uma ou duas estrelas. A propósito dessas avaliações, penso que daria um texto interessante esclarecer os meus critérios; o que acham? A escrita poética de Patti definiu a avaliação da narrativa, o que me leva a crer que provavelmente seus livros de poesia e suas composições musicais têm mais valor artístico que suas tentativas ficcionais.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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2 comentários:

  1. Talvez seja hora de você tentar Philip Roth e aqui vai uma sugestão: ao invés de seguir uma ordem cronológica, ou ir pelos mais conhecidos, seria muito legal a experiencia de começar pelo ultimo até chegar ao primeiro.
    Isso porque Nemesis é um livro poderoso e curto e que sem duvida vai mudar e influenciar a sua opinião.
    Acompanho bastante teu blog, abraços

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    1. Oi, Deison
      Talvez algum dia dê uma chance ao Philip Roth. Sempre que possível, tentarei ler um ou outro autor moderno ou contemporâneo, nem que seja para fazer birra depois rsrs.
      Fico feliz por saber que você acompanha o blog. Grande abraço!

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