Sempre desconfiei que Aluísio Azevedo exercia
uma influência superior sobre mim. Algo quase sobrenatural rs. É que todos os
livros que tinha lido dele até então (O
Cortiço, O Mulato e Casa de Pensão) tinham sido avaliados
com nota máxima. Mas eis que finalmente o condão foi quebrado... ou não rs.
Decidi ler o último romance publicado por
Aluísio, Livro de uma Sogra (1895),
acreditando ser a expressão máxima de seu talento. Não contava, contudo,
deparar-me com um artista desiludido com seus ideais literários, que não
publicaria nada mais que uma coletânea de contos, Pegadas (1897), nos seus últimos dezoitos anos de vida. Esta última
publicação, vale lembrar, consistia mais na reescrita aperfeiçoada de contos já
divulgados anteriormente em Demônios
(1893).
É triste perceber que um escritor da
grandiosidade de Aluísio Azevedo tenha se desiludido, já naquela época, com a
Literatura, por não ter conquistado, por ela, a qualidade de vida que
ambicionava. Curiosamente, não viveria muito após adentrar na carreira
diplomática, morrendo com cinquenta e seis anos incompletos, de forma bastante
misteriosa. Seu último romance não poderia ser menos ousado. Sugere mesmo a
imagem de quem não teme o que diz, por já estar mesmo de saída.
Livro
de uma Sogra segue uma proposta bem diversa dos livros que
já conhecia do autor. A princípio, temos Leão da Cunha narrando em 1ª pessoa
sobre sua aversão ao casamento, justificada pelo exemplo de seu amigo, Leandro
de Oviedo, que sofria as maiores humilhações por parte de D. Olímpia, sua
sogra. Passados alguns anos, depois de longas viagens pela Europa, Leão
reencontra Leandro com outra disposição de ânimo. O que chama atenção é o fato
de Leandro lamentar a morte da “terrível” sogra, advertindo que a explicação de
sua atitude só poderá ser compreendida pela leitura de um manuscrito deixado
por D. Olímpia.
A partir daí, o leitor tem acesso à íntegra
desse documento, que se estende até próximo ao final do romance, compreendendo
portanto a quase totalidade da obra. Somos limitados pois ao ponto de vista da
excêntrica D. Olímpia, cujas ideias são no mínimo perturbadoras. Tentarei, em
linhas gerais, sintetizá-las, para dar uma noção do pensamento extravagante
desta senhora.
Olímpia não acredita que seja possível associar
o amor espiritual com o desejo carnal. O fundamento de suas ideias consiste na
experiência fracassada de seu casamento com Virgílio. Ela defende a teoria de
que cada homem e mulher devem ter não um, mas dois cônjuges: um para a
realização do amor sentimental, outro para a prática sexual. No seu parecer, se
um homem se relaciona sexualmente com uma mulher, perde para esta o valor
sentimental que só é possível entre amantes que prescindem do contato físico.
Nesse contexto, Olímpia vê-se perante um
intricado desafio: assegurar a felicidade de sua filha sem que, para tanto, ela
precise romper com a sociedade de seu tempo. Depois de muito investigar,
auxiliada mesmo pela Bíblia, a mãe de
Palmira chega a uma conclusão: para alimentar em sua filha tanto o amor
sentimental como a atração sexual pelo mesmo homem, seria necessário afastá-los
periodicamente. Palmira e o esposo não poderiam viver sob o mesmo teto, além de
não poderem se ver todos os dias. As relações sexuais entre o casal deveriam
ser calculadamente dosadas. Os períodos de abstinência colaborariam para manter
os cônjuges sempre interessados um pelo outro.
O marido de Palmira deveria ser ainda homem de
intelecto reduzido, apenas o suficiente para não ser ridículo, pois, uma vez
que fosse, por exemplo, um festejado artista, a celebridade e a paixão pelo seu
ofício disputariam-lhe a atenção com a esposa. Esta, por sua vez, deveria ser
em tudo inferior ao marido, tanto na raça quanto na instrução. Era preferível
que uma mulata casasse com um homem branco do que o contrário, dada a
necessidade da superioridade ser sempre do homem, cuja figura é constantemente
enaltecida por D. Olímpia.
Para casar-se com Palmira, Leandro é obrigado a
aceitar todas as condições de sua interessante sogra, inclusive assinar um
documento que a isentava totalmente de culpa, caso ele aparecesse morto.
Realizado o casamento, Olímpia torna-se intransigente no cumprimento de seu
plano. Depois de um tempo, porém, torna-se praticamente impossível prosseguir
com as separações periódicas, o que leva o casal a instar pela convivência
contínua.
Devo confessar que, num primeiro momento,
presumi que Aluísio estava galhofando com a temática do casamento, a partir
dessa situação conflituosa e inacreditável. Mas, com o decorrer da narrativa,
vamos reconhecendo o tom de seriedade presente na trama. Não se trata de fazer
graça, mas da obsessão de uma mulher pela felicidade de sua filha. Há, por
exemplo, uma cena em que Olímpia é obrigada a ceder às súplicas do casal, mas
acaba consolada pela ideia de que sua filha gozaria do prazer sexual com grande
proveito. Acredito que seja um dos grandes méritos do livro: a franqueza com
que o autor expõe temas pouco comuns à literatura de sua época, como o prazer
sexual da mulher.
A certa altura do romance, para surpresa do
leitor, Olímpia terá oportunidade de aplicar em si mesma sua teoria do amor
sentimental. Seu casamento com o Dr. César, seu estremecido amigo, é pois
isento de contato físico ou sexual. Trata-se de uma relação ideal, onde a
amizade e o companheirismo prevalecem sobre os interesses da carne.
Livro
de uma Sogra chega a ser um romance bastante estranho, seja
pelas ideias extravagantes de D. Olímpia (algumas delas que nos enchem mesmo de
indignação) que acabam ganhando ecos na contemporaneidade, seja pelo tom de
ensaio filosófico que se evidencia em boa parte da obra, e, finalmente, por ter
sido escrito por um homem que, mesmo desiludido com a literatura e o casamento,
revela uma escrita formidável para aquela e uma possível fé na felicidade
através deste.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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