segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Livro de uma Sogra, de Aluísio Azevedo - RESENHA #74

Sempre desconfiei que Aluísio Azevedo exercia uma influência superior sobre mim. Algo quase sobrenatural rs. É que todos os livros que tinha lido dele até então (O Cortiço, O Mulato e Casa de Pensão) tinham sido avaliados com nota máxima. Mas eis que finalmente o condão foi quebrado... ou não rs.

Decidi ler o último romance publicado por Aluísio, Livro de uma Sogra (1895), acreditando ser a expressão máxima de seu talento. Não contava, contudo, deparar-me com um artista desiludido com seus ideais literários, que não publicaria nada mais que uma coletânea de contos, Pegadas (1897), nos seus últimos dezoitos anos de vida. Esta última publicação, vale lembrar, consistia mais na reescrita aperfeiçoada de contos já divulgados anteriormente em Demônios (1893).

É triste perceber que um escritor da grandiosidade de Aluísio Azevedo tenha se desiludido, já naquela época, com a Literatura, por não ter conquistado, por ela, a qualidade de vida que ambicionava. Curiosamente, não viveria muito após adentrar na carreira diplomática, morrendo com cinquenta e seis anos incompletos, de forma bastante misteriosa. Seu último romance não poderia ser menos ousado. Sugere mesmo a imagem de quem não teme o que diz, por já estar mesmo de saída.

Livro de uma Sogra segue uma proposta bem diversa dos livros que já conhecia do autor. A princípio, temos Leão da Cunha narrando em 1ª pessoa sobre sua aversão ao casamento, justificada pelo exemplo de seu amigo, Leandro de Oviedo, que sofria as maiores humilhações por parte de D. Olímpia, sua sogra. Passados alguns anos, depois de longas viagens pela Europa, Leão reencontra Leandro com outra disposição de ânimo. O que chama atenção é o fato de Leandro lamentar a morte da “terrível” sogra, advertindo que a explicação de sua atitude só poderá ser compreendida pela leitura de um manuscrito deixado por D. Olímpia.

A partir daí, o leitor tem acesso à íntegra desse documento, que se estende até próximo ao final do romance, compreendendo portanto a quase totalidade da obra. Somos limitados pois ao ponto de vista da excêntrica D. Olímpia, cujas ideias são no mínimo perturbadoras. Tentarei, em linhas gerais, sintetizá-las, para dar uma noção do pensamento extravagante desta senhora.

Olímpia não acredita que seja possível associar o amor espiritual com o desejo carnal. O fundamento de suas ideias consiste na experiência fracassada de seu casamento com Virgílio. Ela defende a teoria de que cada homem e mulher devem ter não um, mas dois cônjuges: um para a realização do amor sentimental, outro para a prática sexual. No seu parecer, se um homem se relaciona sexualmente com uma mulher, perde para esta o valor sentimental que só é possível entre amantes que prescindem do contato físico.

Nesse contexto, Olímpia vê-se perante um intricado desafio: assegurar a felicidade de sua filha sem que, para tanto, ela precise romper com a sociedade de seu tempo. Depois de muito investigar, auxiliada mesmo pela Bíblia, a mãe de Palmira chega a uma conclusão: para alimentar em sua filha tanto o amor sentimental como a atração sexual pelo mesmo homem, seria necessário afastá-los periodicamente. Palmira e o esposo não poderiam viver sob o mesmo teto, além de não poderem se ver todos os dias. As relações sexuais entre o casal deveriam ser calculadamente dosadas. Os períodos de abstinência colaborariam para manter os cônjuges sempre interessados um pelo outro.

O marido de Palmira deveria ser ainda homem de intelecto reduzido, apenas o suficiente para não ser ridículo, pois, uma vez que fosse, por exemplo, um festejado artista, a celebridade e a paixão pelo seu ofício disputariam-lhe a atenção com a esposa. Esta, por sua vez, deveria ser em tudo inferior ao marido, tanto na raça quanto na instrução. Era preferível que uma mulata casasse com um homem branco do que o contrário, dada a necessidade da superioridade ser sempre do homem, cuja figura é constantemente enaltecida por D. Olímpia.

Para casar-se com Palmira, Leandro é obrigado a aceitar todas as condições de sua interessante sogra, inclusive assinar um documento que a isentava totalmente de culpa, caso ele aparecesse morto. Realizado o casamento, Olímpia torna-se intransigente no cumprimento de seu plano. Depois de um tempo, porém, torna-se praticamente impossível prosseguir com as separações periódicas, o que leva o casal a instar pela convivência contínua.

Devo confessar que, num primeiro momento, presumi que Aluísio estava galhofando com a temática do casamento, a partir dessa situação conflituosa e inacreditável. Mas, com o decorrer da narrativa, vamos reconhecendo o tom de seriedade presente na trama. Não se trata de fazer graça, mas da obsessão de uma mulher pela felicidade de sua filha. Há, por exemplo, uma cena em que Olímpia é obrigada a ceder às súplicas do casal, mas acaba consolada pela ideia de que sua filha gozaria do prazer sexual com grande proveito. Acredito que seja um dos grandes méritos do livro: a franqueza com que o autor expõe temas pouco comuns à literatura de sua época, como o prazer sexual da mulher.

A certa altura do romance, para surpresa do leitor, Olímpia terá oportunidade de aplicar em si mesma sua teoria do amor sentimental. Seu casamento com o Dr. César, seu estremecido amigo, é pois isento de contato físico ou sexual. Trata-se de uma relação ideal, onde a amizade e o companheirismo prevalecem sobre os interesses da carne.

Livro de uma Sogra chega a ser um romance bastante estranho, seja pelas ideias extravagantes de D. Olímpia (algumas delas que nos enchem mesmo de indignação) que acabam ganhando ecos na contemporaneidade, seja pelo tom de ensaio filosófico que se evidencia em boa parte da obra, e, finalmente, por ter sido escrito por um homem que, mesmo desiludido com a literatura e o casamento, revela uma escrita formidável para aquela e uma possível fé na felicidade através deste.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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