Há dez anos, li Shakespeare pela primeira vez.
Fora por um volume de tragédias que uma amiga me emprestara. Lembro de ter tido
muita dificuldade para compreender os diálogos e monólogos, por conta da
linguagem totalmente nova para mim. Assim, absorvi muito pouco de Romeu e Julieta, Macbeth e Hamlet. O
volume encerrava-se com Otelo, que
não pude ler, por ter que devolver o livro. Somente ano passado, depois de ter adquirido
o teatro completo do velho bardo, aventurei-me novamente por sua dramaturgia.
Decidira retomar pelo mesmo Otelo,
cuja leitura conservava-se interrompida. Foi um reencontro muito feliz, em
grande parte pela maturidade adquirida ao longo dos anos, mas não menos pela
grandiosidade cênica com que me deparei. Os personagens fascinantes, o
movimento das cenas, a agudeza das falas, tudo me deslumbrou. A “descoberta” de
Otelo incitou-me a, antes de
prosseguir com a leitura das peças não lidas, retornar àquelas cuja experiência
havia sido tão pouco proveitosa. Resolvi-me, portanto, a seguir o sentido
inverso daquele percorrido há dez anos. Deveria reler Hamlet então.
Acredita-se que a primeira encenação de Hamlet tenha sido em 1602, saindo no ano
seguinte a primeira edição do texto da peça, posteriormente ampliado. O
argumento foi colhido por Shakespeare nas velhas páginas da mitologia nórdica.
O tratamento, porém, dado a uma simples história de vingança tornou a tragédia
do príncipe da Dinamarca uma das mais importantes de todos os tempos, sendo
também uma das mais influentes de toda a Literatura. Não é, contudo, a
canonicidade de uma obra o que poderá garantir um efeito positivo a quem quer
que seja. Aliás, nada o poderia diante de uma forma de arte tão múltipla e
plurissignificativa como é a Literatura. As experiências são sempre distintas.
Quanto melhor o livro, mais possibilidades de leitura ele enfeixa. Hamlet, infelizmente, não me
impressionou tanto quanto à maioria dos leitores; tentarei explicar por quê.
Acredito que a celebridade da peça dispensa-me o
trabalho de referir o enredo. Devo pois limitar-me a compartilhar as impressões
que tive dessa releitura ou, antes, “primeira leitura legítima”.
Hamlet é o tipo de personagem com quem
desenvolvi uma relação ambígua de amor e ódio. A princípio, qualquer
leitor/espectador comove-se com sua dor pela perda do pai mais o ressentimento
de assistir ao precoce matrimônio de sua mãe com o próprio cunhado. Aumenta-lhe
o sofrimento a desconfiança de que Cláudio (o tio/padrasto) possa ter sido o
causador da morte de seu pai, a fim de usurpar-lhe a coroa, suspeita logo
confirmada pelo fantasma do falecido rei, que logo exige vingança. Shakespeare
consegue transmitir perfeitamente os dilemas de consciência de seu protagonista,
que lamenta a sorte de ter vindo ao mundo para corrigir erros alheios, sem
poder evitar ainda a perturbação da dúvida, já que a visão sobrenatural que
tivera poderia ser artifício maligno para corrompê-lo.
O escrupuloso Hamlet, no entanto, assume uma
postura diferente a partir do momento em que decide fingir-se de louco para,
insuspeito, melhor investigar Cláudio. A falsa loucura do príncipe acaba
obscurecendo o sentido de seu discurso e talvez seja esta a grande genialidade
da tragédia: a ambivalência dos episódios. É difícil distinguir com precisão
até que ponto temos o Hamlet disfarçado em sua loucura, e o outro, o ponderado,
se é que ele não deixa de existir. Ousarei dar minha própria interpretação da
peça ou simplesmente expor a leitura que fiz da tragédia shakespeariana.
Chama bastante atenção o tratamento dado por
Hamlet à sua amada Ofélia, a certa altura da peça. O que a bela jovem explica
como consequência da suposta loucura é, a meu ver, uma reação ciumenta. De
fato, Ofélia é induzida por Polônio (seu pai) e Laertes (seu irmão) a ignorar
as cortesias e gentilezas do príncipe, dada a diferença hierárquica entre os
dois. A atitude de Ofélia poderia sugerir a existência de outra inclinação
amorosa por parte dela, o que explicaria também sua ideia de devolver os
presentes dados por Hamlet. Vale lembrar que, na cena da representação, o
príncipe, falando a Ofélia, compara a brevidade do prólogo ao amor de uma
mulher, além de sugerir que a dama talvez tenha um amante.
Outro aspecto que acaba se confundindo com a
falsa loucura de Hamlet é o destempero do personagem. Após a confirmação do
assassinato do pai, cometido por Cláudio, o príncipe parece passar por um
enrijecimento da sensibilidade. Sua reação fria após matar Polônio,
confundindo-o com o rei, revela essa mudança de caráter. A imediata decisão de
mandar Rosencrantz e Guildenstern para uma morte iminente dá-nos outra amostra
do temperamento inexorável que passa a ter o protagonista. Ainda que dignas de
censura, as vítimas fatais de Hamlet teriam sido julgadas certamente com mais
complacência num momento anterior.
O teor altamente filosófico de Hamlet colabora com alguns dos vários
intervalos que se dão na trama, principalmente os solilóquios do protagonista.
No entanto, alguns desses intervalos me pareceram demorados e maçantes, como a
recepção dos atores no castelo, as lições de atuação repassadas pelo próprio
príncipe e, finalmente, a representação d’O
Assassinato de Gonzago. A loucura e morte de Ofélia foram tratadas com
precipitação e exagero. O curioso é que são dados tantos pormenores do “acidente”,
como se alguém houvesse presenciado, mas inteiramente incapacitado de salvar a
donzela. O que me parece, porém, mais despropositado em Hamlet é a conversa entre Polônio e seu criado Reinaldo, logo no
começo do segundo ato, quando aquele pede que este vigie seu filho Laertes que
partira para a França. Estes zelos paternos não acarretam consequência nenhuma
para a peça, assim como Reinaldo acaba sendo um tipo desnecessário que, em suprimido,
nada afeta.
Penso ter citado boa parte das razões que
embaçaram o brilho de Hamlet em meu
conceito. Penso que a mudança por que passa o nobre príncipe no decorrer dos
cinco atos tenha sido a mais perturbadora, principalmente quando este aceita
tão prontamente o desafio proposto pelo rei, sobre uma aposta claramente
suspeita, o que leva praticamente todo o elenco da peça à sepultura. Ainda bem
que escapou o bom Horácio para nos contar a história rs!
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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