É meio complicado falar de livros transpostos de
outros idiomas, sobretudo quando você desconfia de que a tradução não foi muito
bem executada, para não falar dos erros de revisão...
Não tenho respaldo para julgar tradução de espécie
alguma, uma vez que não domino nenhuma outra língua, mas não é preciso ser um
especialista para perceber que esses livros que saem com exclusividade em
clubes de assinatura – e que, portanto, obedecem prazos – são traduzidos
apressadamente.
Precisava deixar esta impressão bem clara antes
de passar à resenha de Southernmost (2018),
do norte-americano Silas House, pois o livro tem uma escrita bastante peculiar,
para a qual, imagino, a tradução não pôde fazer jus.
Com altos e baixos, o romance de Silas House
persiste num estilo que chama atenção por sua apurada sensibilidade. A escrita
tem um quê de infantil que, longe de ser demérito, evoca um narrador
despretensioso e poético. Há uma quase obsessão do autor em pontuar sua obra
com a força dos sentidos: visão e olfato se sobressaem, seja pela constante
observação das cores e tons das águas, seja pelo perfume que quase podemos sentir
dos jasmins-manga e buganvílias.
A premissa do livro é interessantíssima e digna
de uma obra maior (em grandeza, não em extensão rs). Provavelmente o que
dificultou o trabalho do autor foi a decisão de unir tantos temas complexos:
religião, aceitação, paternidade, formação de caráter, dentre outros. Optou-se
no livro por tornar todos estes temas secundários, descartando-se a necessidade
de um ponto central. Mas esse manejo irregular e disperso já é uma marca
bastante comum na literatura de hoje.
O ponto de partida é um pastor, Asher, em crise
com sua fé. Diferente de sua esposa Lydia, ele já não consegue encarar a
religião com o mesmo olhar seguro de anos atrás. Uma enchente avassaladora que
deixa inúmeras famílias desabrigadas vem a ser o estopim da crise de Asher,
sobretudo ao perceber a aversão com que sua esposa considera a possibilidade de
hospedar um casal gay.
Quando então o mesmo casal começa a frequentar a
igreja de Asher, muitos membros se revoltam e exigem do pastor que se posicione
contra os dois homens. Após um enérgico sermão sobre tolerância, Asher é meio
que convidado a renunciar ao seu posto. O choque de ideias o obriga a se separar
de Lydia. A partir daí, os dois passam a brigar pela guardar de Justin, filho
único do casal, um garotinho de nove anos.
Aqui devo tratar dos pontos que me pareceram
problemáticos e pouco convincentes no livro, a começar pelo próprio Justin que
é uma criança extraordinária. Logo nos primeiros capítulos ele diz: “Eu
acredito em Deus, mas não acredito na igreja”. Mesmo sendo apresentado como uma
criança excepcional e bastante precoce, pareceu-me exagerado o modo profundo
como Justin questiona Deus e a religião.
Após ser expulso da congregação, Asher pronuncia
um discurso acalorado pela emoção do momento. A cena é gravada e publicada na
internet, viralizando instantaneamente. A repercussão alcançada pelo vídeo
também me pareceu descomedida, levando-se em conta que a história se passa no
tempo atual. Finalmente, o comportamento de Asher para recuperar a guarda do
filho é o ponto mais questionável da trama. Por mais abalado que estivesse,
considerando seu perfil e conhecimento de mundo, ele não agiria como agiu, pelo
menos não em pleno uso de suas faculdades mentais rs.
Por outro lado, devo assinalar que, para minha
surpresa, foi justamente esta escolha questionável que deu asas ao livro. É a
partir daí que a história de fato acontece: quando, rumo ao sul, Asher e Justin
seguem por caminhos que iluminarão toda a confusão que carregam. É uma
experiência tocante e de grandes descobertas para os dois.
Por mais que Southernmost
não tenha conseguido lidar perfeitamente com esse emaranhado de situações
complexas, dá-nos ainda assim um texto agradável e cheio de vivências, além
dessa ideia simpática de que Deus está em todas as coisas, inclusive em nós.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
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