segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Pelo Sertão, de Afonso Arinos - RESENHA #30

E sobreveio em mim uma sede de regionalismo, mais ou menos alimentada quando li A Missão e Lendas Brasileiras. Precisava, contudo, daquele regionalismo puro e real dos escritores sertanistas dos finais do século XIX, sentir o cheiro de terra nas páginas, apreciar a beleza das paisagens do interior. Não poderia ter escolhido momento mais propício para ler Pelo Sertão (1898), de Afonso Arinos. Estava precisando mesmo disso. Agora, o que dizer? Que experiência! Que livro encantador!

Confesso que comecei a leitura já armado com dicionário em punho, porque obras regionalistas não são nada fáceis de ler, especialmente quando retratam os tipos e costumes de lugares que o leitor desconhece. Pelo Sertão se encaixa nessa linha de obras que prezam por uma linguagem típica, o que pode significar uma dificuldade para um leitor menos afeiçoado a esse tipo de literatura. Mesmo não podendo abrir mão de consultar o dicionário ocasionalmente, o prazer da leitura em nada se perdeu. Afonso Arinos tem um estilo sedutor, que alterna do realismo ao romantismo e vice-versa. Ora você tem a rusticidade do sertão e dos tipos que o povoam, ora deparamo-nos com descrições e observações cheias de lirismo.

Como o autor mesmo adverte em nota preliminar, falta ao livro uma unidade, o que se explica no fato de os contos terem sido escritos em diferentes momentos e ocasiões. Os estilos variam, de maneira que dentre os 12 contos que compõem a coletânea, encontramos além do conto regionalista tradicional, textos que se atentam à observação de paisagens e filosofias de vida, à quase maneira de crônica. Impossível não ser tomado pela beleza da escrita de Arinos, seja narrando em 3ª pessoa, ou mesmo quando seus “tipos do sertão” se fazem contadores de histórias. Nenhum dos 12 contos me pareceu ruim, mas julgo pertinente, em se tratando de uma coletânea de contos, assinalar as histórias que me causaram melhor impressão.

A c0letânea abre com “Assombramento” que é, por assim dizer, uma peça antológica. O autor relaciona com louvor o regionalismo e o fantástico. A comitiva de Manuel Alves passa por uma velha casa abandonada, considerada assombrada. Contrariando o medo e a superstição geral entre seus homens, ele decide passar a noite sozinho no interior da casa. O conto é impregnado de uma atmosfera sobrenatural: passos, uivos, vozes, visões, etc. É admirável o embate entre o real e o sobrenatural. “A esteireira” é uma dessas cenas trágicas do sertão. Ana Esteireira, chamada assim por causa do pai que trabalhava fazendo esteiras de taquara, é uma mulata lavadeira que namora Filipinho, um tipo atrevido e perseguido pela polícia por seu mau comportamento. Trata-se de um conto que aborda o crime passional com bastante crueza, prezando por cenas violentas, não podendo deixar de ter ainda um trágico desfecho. É louvável como o autor consegue amenizar a situação trágica, valendo-se de elementos da natureza, que a tudo poetizam. Afonso Arinos demonstra grande preocupação com a linguagem, sempre limando o final de cada história com o maior cuidado.

“Manuel Lúcio” conta o caso de um órfão que fica sob proteção do patrão de seu finado pai. Sempre fiel ao seu senhor, em homenagem e respeito à lembrança paterna, Manuel trabalha incansavelmente em defesa dos patrões. Sem que perceba, acaba se apaixonando por Barbinha, a filha de seu amo. Não tendo coragem de revelar sua afeição pela jovem, Manuel limita-se a vazar seus sentimentos em trovas do sertão. É um belíssimo conto romântico, onde se dá o confronto entre a dedicação sagrada e o peso de um amor provavelmente impossível. “A fuga” narra os esforços de dois escravos para escapar do cativeiro. Isidoro e Bento realizam uma difícil fuga, tendo a natureza como única aliada. “A fuga” traz o subtítulo “fragmento de um conto histórico”, mas é tão bem realizado em sua forma, que o leitor sente-se satisfeito com ele, ou seja: não há necessidade de acréscimos, pois “A fuga” é um conto completo em todos os sentidos, uma verdadeira joia literária, um dos pontos altos do livro. Em diferente situação, temos “O contratador dos diamantes” que, também dado como “fragmento”, termina exigindo uma continuação. É mais uma premissa que um conto. De fato, Afonso Arinos sabia disso; tanto, que aproveitou o argumento para uma peça teatral de mesmo nome. “O contratador dos diamantes” talvez seja o conto que mais destoa do conjunto, por sua ambientação aristocrática.

“Joaquim Mironga” e “Pedro Barqueiro”, subintitulados de “tipo do sertão”, encerram a coletânea com mestria. Ambos reproduzem histórias contadas por caboclos do sertão, naquele linguajar matuto, repleto de marcas de oralidade. É interessante a estratégia utilizada pelo autor na construção desses contos: ambos têm narradores que ficam em segundo plano, uma vez que os caboclos que contam as histórias não são os narradores “oficiais”, de maneira que suas falas (que compõem quase que a totalidade dos contos) aparecem entre aspas, para diferir da voz dos narradores propriamente ditos, que acabam tendo pouquíssima relevância. Nem sei se deu pra entender isso que eu disse rsrsrs Mas em suma, esses dois contos possuem dois narradores cada um. O primeiro é o relato de Joaquim Mironga, que atesta a coragem e bravura do filho de seu patrão, diante de uma situação de combate. O outro quem conta é um caboclo chamado Flor que, quando moço, foi designado pelo seu patrão a prender Pedro Barqueiro, um escravo fugido, temido por todos por sua valentia. Flor e Pascoal (amigo dele que também é designado para a mesma tarefa) vão ao encalço do Pedro Barqueiro, sendo inevitável um difícil combate. Esse conto merece observação maior no que diz respeito a um possível elemento fantástico perceptível ao final do enredo.

Teria algo a dizer sobre todos os outros contos que não citei, porque, como disse, nenhum é ruim, cada um é pintado de sutil beleza e animoso colorido. Contudo, agora que estou conseguindo ser mais sintético com minhas resenhas, não quero descuidar desta rs! Não dei nota máxima à obra por pouquíssimos detalhes, que vão desde a falta de unidade do livro até a predominância de circunstâncias soturnas. Não obstante tantas páginas tristes, Pelo Sertão certamente foi escrito com muita felicidade.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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5 comentários:

  1. ...ótimas apreciações, seu Daniel Coutinho , sobre essa obra-prima do nosso chamado regionalismo de q realmente fora Afonso arinos, estilista exímio, conhecedor e cultor profundo e exaltado do nosso folclore,das nossas tradições nacionais, possuídor e possuído pois -- como ninguém -- das velhas e arcanas lições e aventesmas das gerais avoengas e trágicas no descair e constringir da barbárie mineradora de fins do século 18,um mestre consumado ; mestre pois cujo exemplo e legado havia sobretudo, desde então,desde de" pelo sertão ", de constituir-se num dos veio áureos e inesgotados de toda nossa literatura, congracando e irmanando no mesmo passo, no exuberar deles, os sertões vários e vastos deste nosso Brasil de mais de cinco séculos de história : assim de coelho neto a Euclides da cunha, de valdomiro silveira a Simões lopes,de domingos olímpio a João de minas,e cuja culminacao fulgurante e desmarcada seria, tampouco o desconhece o amigo, a obra de Guimarães Rosa...de sorte q só lhe posso louvar e aplaudir a bravura e denodo de verdadeiro leitor e estudioso da literatura nacional ,cujas apreciações primam pela distinção do rigor, tato e discernimento, num tempo em q tais livros e autores, qum os conversa ou compulsa ? são cabalmente ignorados, desconhecidos...quem, hoje,portanto, conhecendo-lhes sequer os nomes, se atreve a ler afonso arinos e coelho neto , especialmente este último, cuja torrencial produção literária,orçada em mais de uma centena de títulos e volumes ( de q lera vc o impressionante " rei negro " ) vazada na opulência e virtuosidade de uma língua q entrementes ou atualmente fora quase havida como estranha ? Eis um escritor q ,simplesmente, há muito ,deixou de existir, coelho neto é, há décadas, verdadeiramente um cadáver literário, Já houve quem o tentasse ressuscitar, baldaram-se-lhe todavia todos os esforços e ensaios,

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    1. Obrigado pelo gentil reconhecimento, Leonardo! É sempre um imenso prazer conhecer outros apreciadores de nossa riquíssima literatura nacional, sobretudo aquela mais negligenciada pelos leitores de hoje. Coelho Neto não caiu na minha graça, mas Afonso Arinos deslumbrou-me sobremaneira com sua prosa fascinante. Adquiri uma edição rara de sua Obra Completa. Pretendo retomar o autor com o romance "Os Jagunços", por cuja leitura já estou ansioso. Grande abraço!

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  2. ...excelente, seu Daniel Coutinho, eis um autor cuja obra também desejo conhecer melhor, especialmente este título, " os jagunços ", sobre o crime consumado pelo exército brasileiro contra o belo monte de Antônio conselheiro, crime irresgatado de uma nacionalidade já então, não por acaso, abismada sob a infâmia de uma República espúria,abatida à corrupção e bandalheira dos interesses coloniais, senão subcoloniais, do alto baronato cafeeiro, rendeiro e negreiro sobretudo de São Paulo, a consolidar destarte a chamada" república velha", " a república dos governadores"," a república das oligarquias estaduais", " a república do conluio do café com leite" ; crime pois verberado pelo gênio de Euclides da cunha ,nos sertões, e cujos referidos "jagunços "de afonso arinos,assinados como se sabe sob o pseudônimo de Olívio de barros,igualmente se haviam de constituir, num plano mais ficcional embora, num libelo lancinante e vigoroso... ( desde " pelo sertão ", a reparar aqui pequeno vício de digitação q entrementes me passara despercebido, no comentário feito há dias ) ... qnto a estes e outros grandes nomes e órgãos da nossa cultura, há décadas inteiramente ignorados,eis portanto algo q , sem contrastes, apenas patenteia e rasga a realidade triste e convulsa de um Brasil miseravelmente despossuído de si mesmo, da sua cultura, dos seus valores tutelares , das suas mais altas e indisputadas tradições nacionais, da sua altivez e soberania, totalmente exaurido e dessangrado à sanha maldita e possessa de interesses externos ,destroçado pela sanha e bandalheira onipotente da banca agiota e sanguinária a qual de fato, ninguém tampouco o ignora ou devera ignorar, simplesmente reduziu de vez este nosso país,sobretudo desde q aqui se profundou a farsa deste dito plano real -- fundado na infâmia do famoso "tripé macroeconômico" de fhc, soros e Armínio fraga -- , à condição trágica e palhaça de um seu cassino e alcoice particulares, no constringir de angústias e miséria q no-lo assoberbam num quase transe de morte ; triste ver consequentemente a nossa infância e juventude, senão pessoas de todas as idades, condições e gerações, simplesmente soterradas sob o lodaçal ideológico do tal Netflix e do porco cinema hollywoodiano, nada sabendo dos nossos valores pátrios...mais uma vez, pois, meus parabéns ao amigo, pelos seus estudos e devoção aos grandes nomes e obras da nossa alta cultura nacional, só o nacionalismo radical salva este Brasil da última ruína e desagregação, q o ameaçam ,

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    1. A literatura, para mim, funciona exatamente como uma porta de escape deste mundo corrupto e alienado em que vivemos. Os livros, sobretudo os clássicos, dão-me sempre boa acolhida e ensinam-me a encarar a vida sob uma ótima mais feliz. Até aqui tem dado certo.
      Abraço!

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  3. ...não padece dúvida, seu Daniel Coutinho, estou aqui a reler o meu comentário de ontem, perdoe-me pois o amigo, eis algo q se me pudera totalmente arguir de impróprio, o tom um tanto apocalíptico, gongórico e nímio exaltado de q se possui ele,quase a lembrar os surtos e loquela revoltos de um savonarola arrebatado num delírio chiliástico a esparzir, no sobrevir da noite temerosa, anátemas e vaticinios ante o transe de agonia e perplexidades q desvairava sua Florença avoenga, abismada na corrupção e volutabro da alta clerezia papal e curial,dos bórgias e Médici, rs...e para sobretudo alimpar, elevar e purificar os ares e toda atmosfera convizinha, tomo da liberdade de, pois, sugerir ao amigo, assim a coadjuvar seus estudos e leituras,a audição desse idílio cósmico, q é a segunda sinfonia de Johannes Brahms,opus 73, preferencialmente sob leitura e regência congeniais do grande otto klemperer ,à frente da sua orquestra,a Philharmonia , de londres, obg, abraço.

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