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Como veem, não esperei mais dez anos para ler um
novo romance do doutor Macedinho. A obra escolhida, Os Dois Amores (1848), causou-me impressão tão deliciosa, que chega
a ser difícil falar da experiência. Quando li O Moço Loiro ano passado (naquele feliz reencontro rs), reconheci
aquele Macedo que deleitou-me na adolescência; foi como rever um amigo distante
que, não obstante o correr dos anos, pouco ou nada mudou. Agora, porém, o caso
foi outro. Macedo me pegou de jeito com esse livro maravilhoso que está injustamente
tão esquecido. Um romance deliciosamente profundo e tocante!
O propósito do livro é discutir a desigualdade
social na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Logo no início da
narrativa, o leitor é apresentado a duas moradias vizinhas: “O Céu cor-de-rosa”
e o “Purgatório-trigueiro”. Percebam o humor ácido na escolha dos nomes. A
primeira é habitada por uma Bela Órfã; a outra, por uma Velha Bruxa. O
contraste entre riqueza e pobreza é lançado pois aos olhos do leitor.
Celina é a Bela Órfã de dezesseis anos que, após
a morte dos pais, vive sob os cuidados de seu avô Anacleto e Mariana, sua tia
viúva. Os três habitantes do “Céu cor-de-rosa” vivem com abastança e
divertimentos. O pai de Celina, Paulo Ângelo, foi um médico bastante afamado
por sua conduta nobre e solidária. Macedo constrói quase um capítulo inteiro
para tecer a diferença entre o “médico” e o “negociante de receitas”, uma das
digressões mais interessantes da obra rs. Aliás, Os Dois Amores é cheio de digressões, o que para mim foi uma
novidade, em se tratando de Macedo que, embora já houvesse me dado mostras de
tal recurso, jamais na mesma proporção que nesse romance. Convém mencionar que
as digressões de Macedo são deliciosíssimas (pelo menos para mim foram rs), e
que se realizam de duas formas: através do narrador e pelos extensos diálogos
que permeiam todo o livro. Macedo não poupa nos diálogos que, muitas vezes,
acabam um tanto excessivos.
No “Purgatório-trigueiro” residem Irias, que é a
Velha Bruxa, e Cândido, seu filho adotivo. O moço, que tem vinte anos, é
escrevente de advogado; tem um passado muito misterioso, uma vez que não
conheceu os pais. Tudo o que Cândido sabe é que foi concebido fora do
casamento; enjeitado por sua mãe, foi entregue à velha Irias, que adotou-o
recém-nascido, mas recebendo auxílio financeiro do pai do menino. Aos treze
anos, Cândido foi levado a Europa para formar-se. O romance começa justamente
com o regresso do jovem já formado. Seu aparecimento passa quase despercebido,
dada a constante discrição do mancebo que, pálido e triste, quando não está no
trabalho, vive sempre encerrado num sótão silencioso. Cândido sabe que seu pai
já faleceu, mas deseja ardentemente descobrir quem é sua mãe, não guardando-lhe
nenhum rancor por tê-lo enjeitado.
Os pensamentos de Cândido eram todos para sua
desconhecida mãe; até que um dia, da janela de seu sótão, ele tem uma visão
extasiante: uma bela jovem caminhando entre as flores de seu jardim. Era a Bela
Órfã que, todas as manhãs, visitava suas rosas. Cândido fica completamente
tomado por aquela visão que não lhe sai do pensamento. Ele, contudo, é
consciente de sua condição tão inferior à daquela deusa impossível. Mas no dia
de finados, a velha Irias tem a lembrança de visitar o túmulo do saudoso
benfeitor dos pobres, o pai de Celina; lá, a velha e Cândido põem-se a rezar,
até que os surpreendem Anacleto, Mariana e Celina. Esta última, comovida do
gesto daqueles estranhos, põe-se a chorar em pranto desesperado, de tal maneira
que Cândido, por sua vez, deixa-se contagiar pela mesma emoção. Esse primeiro
encontro entre Celina e Cândido, chorando ambos sobre o túmulo do pai da Bela
Órfã, será decisivo para o nascimento de um sentimento que começa a florescer.
Anacleto, num gesto de gratidão aos moradores do
“Purgatório-trigueiro”, convida-os para um sarau em sua casa, desconsiderando a
classe social dos mesmos. Aqui, Macedo fará outra dentre tantas digressões do
livro; esta para minuciosamente analisar as diferenças de classes, tomando o
gesto de Anacleto como ato extraordinário e incomum para os costumes da época.
O autor chega a surpreender quando atribui culpa ao Governo nessa questão de
classes. Nem preciso dizer que essa desigualdade social será o primeiro
empecilho para a realização do amor de nosso novel casal.
Dentre os frequentadores da casa de Anacleto,
destaca-se Salustiano, um moço rico e vaidoso que exerce um poder inexplicável
sobre Mariana, influência esta sempre comparada ao poder de um senhor sobre sua
escrava. Macedo joga mais uma vez com o passado, o que já é uma marca
registrada em suas obras; passa a impressão de já ter tudo arquitetado de
antemão, incitando a curiosidade do leitor com diálogos truncados, jogando ao
longo do livro peças de um enorme quebra-cabeça. Como um bom folhetinista que o
era, sugere pistas que ora parecem falsas, ora verdadeiras, de maneira que o
leitor fica num suspense inevitável. O que ocorre é que Salustiano possui em
seu poder uma carta muito comprometedora para Mariana, o que lhe serve como
objeto de chantagem. Ambicionando a mão de Celina, Salustiano não custa a
reconhecer no modesto Cândido um inimigo nada favorável a seus planos; por
isso, valendo-se de sua escrava, ele não
descansará até correr com o pobre Cândido do suntuoso “Céu cor-de-rosa”.
Vou parando por aqui com o enredo, mas já
advertindo que tudo o que contei não compreende a décima parte da trama d’Os Dois Amores, que é de uma
engenhosidade cativante e surpreendente, em especial por mostrar um Macedo mais
ousado no tratamento de temas tabus para a época, como fornicação e aborto. Este
título — Os Dois Amores — foi o que
me inquietou bastante, enquanto tentava compreendê-lo. Ora pensava que
estivesse relacionado com os amores de Celina e os de sua tia, que também são
relatados no romance, ainda que numa proporção menor; ora associava-o ao
triângulo amoroso Cândido-Celina-Salustiano; mas, finalmente, acredito que
esses dois amores são os que existem simultaneamente no coração de Cândido: por
Celina e por sua desconhecida mãe.
Devo confessar que o mais impressionante n’Os Dois Amores é a pureza que exala de
suas páginas. A história parece o tempo todo ser contada por um anjo de luz de
candidez e virtude incomparáveis. Não há como não se sensibilizar com a
delicadeza com que o autor trata, mesmo nas digressões, dos sentimentos humanos.
A pena de Macedo encheu o meu coração de uma alegria tão singela e me emocionou
sobretudo com sua fé inacreditável no homem. Esse olhar divino, puro, casto...
parece não existir mais. Essa crença na consciência escrupulosa, na remissão,
na honestidade, na humanidade... parece não ter mais lugar neste mundo tão vil.
Daí, pensei: “Que bom seria que as pessoas pensassem como Macedo que, mesmo um
tanto ingênuo em algumas situações, era indiscutivelmente um homem probo e
sincero”.
Dizer que tal romance é isento de falhas seria
incerto, mas, sinceramente, diante de tanta beleza e sabedoria, não vejo por
que apontar os exageros, os descuidos de linguagem, as falhas imperdoáveis
sempre apontadas pelos críticos mais ranzinzas que estigmatizaram Macedo como
um ordinário escritor de romances para moças. E Macedo escrevia mesmo para
moças, e era consciente disso; lembremo-nos do prefácio d’O Moço Loiro. Machado e Aluísio, só para citar dois grandes gênios,
também escreveram para moças. Macedo, assim como eles, soube ser
transcendental. A grandiosidade de sua obra será sempre atestada por todo
aquele que tiver um mínimo de sensibilidade no coração.
Avaliação: ★★★★★
Daniel Coutinho
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Quando o autor faz as digressões ele expressa a opinião dele?
ResponderExcluirSim, ainda que esta seja, no plano da ficção, atribuída ao "narrador" e não ao autor ;)
ExcluirAbraço!