segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Diário de Anne Frank - RESENHA #23

Antes de mais nada, não sou leitor desse tipo de livro. Já contei por aqui que não costumo ler não ficções. Devo confessar também que odeio narrativas de guerra. Por que então li este livro? Vou contar. Há alguns anos, assisti um filme, Escritores da Liberdade, com aquela linda da Hilary Swank. Ela interpretou uma professora que tem o grande desafio de assumir uma turma de jovens muito problemáticos. Acho que todo mundo já viu um filme assim rsrsrs... Pois bem! O caso é que a tal professora, para incentivar sua turma ao processo de leitura e escrita, utilizou a famosa obra O Diário de Anne Frank, o que deu muito certo. Desde então, fiquei bastante curioso pelo livro, que já conhecia, obviamente, de ter ouvido falar. Quem nunca se deparou na vida com o nome Anne Frank? Já sabia que se tratava das anotações de uma menina que morreu durante a Segunda Guerra; por isso mesmo, nunca quis ler rsrsrs. Mas depois do filme da Hilary, que é inclusive baseado em fatos reais, incluí Anne Frank à minha interminável lista de futuras leituras.

Agora que li, estou profundamente tocado por esse livro depressivo. Os fãs de Anne Frank vão me matar agora rsrsrs! Mas sério: esse livro é bastante perturbador e de uma atmosfera agonizante. Portanto, quem estiver triste, se sentindo mal ou melancólico, fuja desse livro! Definitivamente não é um livro ruim; mas chega a ser tão triste, que incomoda, sobretudo pela consciência de que tudo aquilo aconteceu mesmo. Fiquei muito em dúvida quanto a fazer esta resenha. Pareceu-me muito difícil separar o livro em si de toda a história real envolvida. Pensei: este livro não pode estar sujeito à crítica; ele não é uma obra de arte; trata-se de um documento histórico materializado nas páginas do diário de uma adolescente. Por outro lado, senti grande necessidade de externar minhas impressões de leitura, ainda que não tenham sido exatamente positivas. Portanto, quero deixar claro que estou lidando apenas com o livro em si, o texto escrito, desconsiderando todo o exterior que pesa sobre ele. Dessa forma, penso ser mais fácil avaliar a obra de Anne Frank.

O livro, como já se sabe, é um diário autêntico. Anne Frank ganhou-o em seu aniversário de 13 anos, em 12 de junho de 1942. No mês seguinte, ela é obrigada a partir, juntamente com a família, para um esconderijo que passa a ser denominado de Anexo Secreto. A família de Anne é de judeus; assim, as perseguições de Hitler, que já tinham obrigado os Frank a emigrar da Alemanha, também foram responsáveis por aquela situação de escondimento, agora em Amsterdã, na Holanda. O Anexo Secreto constitui a parte superior do prédio onde trabalhava Otto Frank, o pai de Anne. A família conta com o apoio dos funcionários do prédio para manterem-se escondidos, além de aceitarem dividir o espaço com outra família judaica: os van Daan.

Julgo necessário especificar a constituição das duas famílias. Então, lá vai:

Família Frank Otto Frank (pai); Edith Frank (mãe); Margot (filha mais velha); Anne (filha caçula).
Família van Daan Hermann van Daan (pai); Petronella van Daan (mãe); Peter (filho único).

A essas sete pessoas, junta-se, pouco tempo depois, o senhor Albert Dussel, um dentista que vivia com uma cristã, e que também precisava se refugiar. A convivência desses oito enclausurados do Anexo Secreto é o assunto predominante no diário de Anne. Ficava sem fôlego só de imaginar a situação: não poder sair de um lugar até que terminasse uma guerra cujo fim não se podia precisar. Sufocante, não? Imaginem o tédio, a dificuldade de convivência, as restrições de todo tipo, sem contar com o constante medo de ser descoberto a qualquer momento! Por isso que digo: este livro é perturbador!

Os primeiros registros de Anne foram feitos antes da fuga para o Anexo. Neles, conhecemos uma Anne bem chatinha e meio superficial ao julgar seus colegas de escola. É sem grande novidade essa primeira parte do diário, mas serve para constatarmos que Anne não era mais do que uma adolescente normal, com seus problemas e dilemas típicos da idade. O primeiro terço do livro é bem chatinho de ler; se bem que o livro todo é bastante cambiante: ora fica superinteressante, ora prende-se a descrições triviais, ora tende a ser muito sentimental e reflexivo, ora serve para Anne despejar sua raiva... A leitura como um todo não é ruim, mas a mim não empolgou muito. A escrita de Anne é, por vezes, muito atropelada, e ela mesma reconhece isso para Kitty, nome que ela dá ao diário.

Ficava impaciente com os conflitos familiares. Anne era a ovelha negra da casa. Ela simplesmente brigou com todo mundo do Anexo rsrsrs. No diário, ela se mostra vítima, mas fica bastante evidenciado seu temperamento difícil. Ela geralmente não explica muito bem como se davam as contendas familiares, limitando-se a queixar-se de todo mundo, principalmente de sua mãe. É triste a maneira como Anne se refere à própria mãe. Um adolescente que lesse o diário de Anne ficaria logo do lado dela e talvez super se identificasse. A verdade é que não podemos esquecer que Anne era só uma adolescente e, como tal, era comum que entrasse em atrito com os pais. O ressentimento de Anne não se limita à mãe, mas a praticamente todos do Anexo. Dava para perceber que ela tinha uma invejinha da irmã mais velha, Margot, que era uma menina-prodígio.

É bem verdade aquilo que diz que o sofrimento faz amadurecer as pessoas. Anne é prova disso. Seu amadurecimento é plenamente visível ao longo do diário, o que a faz censurar seus primeiros escritos e reconhecer seus defeitos, como também a necessidade de melhorar enquanto pessoa. E Anne muda. Prova disso é que seu relacionamento com todos fica muito mais estável a partir dos registros de 1944. Temos então uma Anne simplesmente linda e apaixonada. A convivência e os instintos da idade fazem-na se apaixonar por Peter, o filho dos van Daan. O relacionamento entre eles começa por uma bela amizade e, aos poucos, vai tomando outra forma, na medida em que os dois passam a ter mais confiança um no outro. O despertar da sexualidade de Anne é relatado sem pudores por ela, fazendo com que essas passagens fossem censuradas nas primeiras edições em livro, divulgadas por seu pai, que foi o único sobrevivente entre os moradores do Anexo Secreto. Após a morte de Otto Frank, uma investigação rigorosa foi feita sobre os manuscritos de Anne, conferindo-lhes autenticidade e coletando bastante material inédito, divulgado a partir de 1989.

As anotações de Anne sobre seu romance com Peter são maravilhosas; são das minhas favoritas, a perder somente para os escritos de Anne em que a mesma valoriza as pequenas coisas à sua volta: o sol, a lua, a natureza, reconhecendo mesmo não serem coisas pequenas, mas motivadores à sensação de felicidade que ela tanto aspirava. Ocasionalmente, temos uma Anne mais fragilizada e sensível à terrível situação vivida por todos ali; de maneira que reaparece a adolescente ressentida com os pais, que quer ser feliz à sua maneira, sem ter que dar satisfação a ninguém. Também aparecem, ocasionalmente, as descrições de situações triviais que me pareceram muito maçantes. Assim, como já disse, o livro é todo bastante cambiante, alternando constantemente a tonalidade do texto.

Algo que me pareceu bastante interessante, agradável e curioso foram as estratégias utilizadas pelos moradores do Anexo para passar o tempo. Sem nada para fazer além de prestar pequenos serviços aos funcionários do prédio, eles liam, estudavam, faziam cursos por correspondência, aprendiam idiomas e ouviam o rádio. Basicamente isso. Anne, que inegavelmente tinha talento para escritora, desejava ser jornalista e rabiscava vários contos e romances. Ela chega a contar o enredo de um deles, inspirado na história de seu pai que, como ela sabia, casara sem amor. Fico me perguntando se Anne faria sucesso como escritora se não houvesse morrido no Holocausto.

A história de Anne Frank é, sem dúvidas, comovente. Quando li a última página do diário, tive uma sensação tão esquisita, como se Anne não tivesse morrido há mais de setenta anos, mas àquele mesmo momento. Seu último registro dá mostras de uma autoconsciência admirável. Seus desejos, suas culpas, seus receios, seus sonhos... Tudo foi tão bruscamente interrompido, como as anotações de seu diário, cujas páginas, soltas pelo sótão, jamais teriam uma continuação.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Mais Livros! - JUL/2016 (especial de aniversário)



Enfim, depois de muita espera: Mais Livros! de julho!!! E pela foto, já devem ter descoberto a surpresa que preparava para esse mês especial. Tudo bem que só chegou agora, mas está valendo rsrsrs. Trata-se da obra completa de Monteiro Lobato em 34 volumes. Estou incluso entre os milhões de brasileiros que apenas conhecem Monteiro Lobato por referências e pelas adaptações para a TV das histórias do Sítio do Picapau Amarelo. De fato, nunca li Monteiro Lobato. Na infância, por incrível que pareça, nunca tive contato com suas obras infantis. Depois, conforme fui amadurecendo, confesso que nunca fui interessado em ler os livros adultos do criador de Jéca Tatú. Parece uma conspiração do destino que me separa de Lobato rsrsrs Mas finalmente dei o primeiro passo (e que passo!) para combater tal conspiração, adquirindo sua obra completa que, na verdade, não é tão completa assim, conforme veremos. O lançamento das obras de Monteiro Lobato no Brasil daria um estudo inteiro; por isso, vou tentar ser o mais sucinto possível em minhas observações sobre as edições que adquiri.

Antes de morrer, Lobato organizou o que seriam suas Obras Completas, para serem lançadas pela editora Brasiliense. Dividiu sua produção em duas séries: Literatura geral e Literatura infantil. A primeira reunia em 13 volumes toda a sua produção adulta; a segunda reunia em 17 volumes os livros do Sítio do Picapau Amarelo. Os volumes foram publicados atendendo a todas as exigências do autor, a começar pela ortografia particular dele, que prescinde da maioria dos acentos gráficos. Algumas obras foram reformuladas, como é o caso da coletânea de contos O Macaco que se Fez Homem. Não sei bem por que, mas Lobato a renegou enquanto livro, preferindo desfazê-la e distribuir os contos por outras duas coletâneas: Cidades Mortas e Negrinha. Sei que a editora Globo, há algum tempo, relançou as obras do Lobato, incluindo O Macaco que se Fez Homem, o que me leva a pensar que eles reeditaram Cidades Mortas e Negrinha segundo a antiga compilação. Fico feliz por ter adquirido a última versão compilada pelo próprio autor. Sinceramente, acho a atitude da editora Globo um tanto desrespeitosa, uma vez que intervém na vontade do próprio Lobato. Se ele queria dar uma nova compleição às suas obras, e assim o fez em vida, penso que essas mudanças deveriam ser respeitadas. Ao que parece, as edições da Globo também não aderiram à ortografia peculiar de Lobato, o que vem a ser outra questão que, sinceramente, nem sei bem se concordo ou discordo, pois com as últimas mudanças sofridas em nossa ortografia, não saberíamos dizer com precisão em que isso afetaria/influiria na ortografia particular do criador de Narizinho.

Esta edição das Obras Completas pela editora Brasiliense teve sucessivas reimpressões, sendo que, após a morte de Lobato, novos textos foram acrescidos, especialmente à série de Literatura geral, que de 13 passou a ter 17 volumes. As obras inéditas no Brasil e que foram publicadas apenas na Argentina, contudo, não foram incluídas em nenhuma das reimpressões. Por isso disse que essa obra completa não é tão completa assim. Não obstante uma ou outra lacuna, ainda é a melhor edição para se ler Monteiro Lobato com todas suas peculiaridades. Sei que foi lançada posteriormente uma terceira série das Obras Completas, com as traduções de Monteiro Lobato em nove volumes. Não adquiri essa terceira série da coleção, pois já tinha vários dos livros traduzidos por Lobato em outras traduções. Vou deixar listado abaixo os títulos enfeixados nos 34 volumes das Obras Completas (1ª e 2ª séries); quando mais de uma obra constituírem um volume, os títulos aparecerão separados por barra (/). Em seguida, comentarei rapidamente as outras aquisições do especial mês de julho!

Obras Completas de Monteiro Lobato em 34 volumes
(Obs.: As obras não saíram segundo a ordem cronológica de publicação)

1ª Série – Literatura geral

1.      Urupês
2.     Cidades Mortas
3.      Negrinha
4.     Ideias de Jéca Tatú
5.      A Onda Verde/O Presidente Negro
6.     Na Antevéspera
7.      O Escândalo do Petróleo/Ferro
8.     Mister Slang e o Brasil
9.     América
10.     Mundo da Lua/Fragmentos/Miscelânea
11.      A Barca de Gleyre (1º tomo)
12.     A Barca de Gleyre (2º tomo)
13.     Prefácios e Entrevistas
14.     Literatura do Minarete
15.     Conferências, Artigos e Crônicas
16.     Cartas Escolhidas (1º tomo)
17.     Cartas Escolhidas (2º tomo)

2ª Série – Literatura infantil

1.      Reinações de Narizinho
2.     Viagem ao Céu/O Saci
3.      Caçadas de Pedrinho/Aventuras de Hans Staden
4.     História do Mundo para as Crianças
5.      Memórias da Emília/Peter Pan
6.     Emília no País da Gramática/Aritmética da Emília
7.      Geografia de Dona Benta
8.     Serões de Dona Benta/História das Invenções
9.     D. Quixote das Crianças
10.     O Poço do Visconde
11.      Histórias de Tia Nastácia
12.     O Picapau Amarelo/A Reforma da Natureza
13.     O Minotauro
14.     A Chave do Tamanho
15.     Fábulas/Histórias Diversas
16.     Os Doze Trabalhos de Hércules (1º tomo)
17.     Os Doze Trabalhos de Hércules (2º tomo)

O saldo do mês, que não poderia resumir-se a Monteiro Lobato, trouxe uma diversidade de outras obras. Adquiri o tão desejado Livro das Mil e uma Noites, que considero uma das leituras mais fundamentais da Literatura Universal. A edição é da Biblioteca Azul (que é selo da editora Globo) e está num box com 4 volumes que reúnem a obra integral. É um box simples, sem grandes atrativos, com livros em brochura de capas meio brilhosas. O conteúdo é, sem dúvida, excelente, mas penso que o prodigioso trabalho de Mamede Mustafa Jarouche merecia uma edição mais elegante e um projeto gráfico mais arrojado. É a primeira tradução brasileira feita direto do árabe.

Da saudosa Cosac Naify, adquiri o clássico Decameron, do italiano Boccaccio, pensando que a edição era integral. Quando vi “10 novelas selecionadas”, fiquei decepcionado, principalmente porque não fui capaz de perceber esse detalhe antes de comprar rsrsrs. Ao menos, é uma edição da Cosac, né? E está simplesmente lindíssima, em capa dura, toda ilustrada e cheia de detalhes. Pena que não é completa! Vou precisar comprar outra edição. Aceito sugestões! Comprei também Mary Poppins, da P. L. Traves. A edição está ricamente ilustrada e traz esse detalhe inusitado da lombada exposta. Nunca tinha visto isso antes rsrsrs. Fiquei boquiaberto, jurando que quando fosse abrir o livro, ele iria se desmanchar, mas, para minha surpresa (ou não rs), os cadernos estão firmes. Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós, que já tem resenha por aqui, e O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, completam minhas aquisições Cosac.

Aí, a editora Pedrazul continua fazendo aqueles lançamentos tentadores, especialmente por serem exclusivos rs! Cranford e Esposas e Filhas, de Elizabeth Gaskell, aparecem pela primeira vez em português, graças à querida Pedrazul. Não poderia deixar de adquirir isso. Aproveitei a oportunidade e pus também A Intrusa (Júlia Lopes de Almeida) no pedido. Trata-se de um romance brasileiro. Isso mesmo! Pedrazul trazendo clássicos nacionais! Torcendo para eles desenterrarem outras raridades brasileiras!

Adquiri A Marca do Zorro, de Johnston McCulley, pois tenho muita vontade de conhecer a história original do lendário D. Diego de la Vega, especialmente depois de ter assistido aquela novela colombiana Zorro: a espada e a rosa rs. E para não perder o costume, não poderia faltar uma raridade! Obtive O Pirata, de Frederick Marryat, também conhecido por Capitão Marryat. Esse escritor foi outra influência do meu querido Alencar. Adquiri ainda um recente lançamento da editora Darkside: Menina Má, de William March. Não é exatamente o tipo de leitura que me encanta, mas confesso que fiquei cuiroso por esse livro, especialmente porque quase não li nada de terror/horror.

Passando para os brasileiros, completei minha coleção de romances da Rachel de Queiroz, adquirindo: Caminho de Pedras, As Três Marias e O Galo de Ouro. Adquiri também o volume com as peças Lampião e A Beata Maria do Egito. Da obra da Rachel, tenho vontade ainda de adquirir os livros infantis; quanto às coletâneas de crônicas, não tenho interesse. Para concluir, comprei um livro contemporâneo! Trata-se de uma coletânea de poemas chamada Tempestardes, do paulista Leonardo Chioda. Estava visitando o site da editora Patuá e este livro chamou minha atenção. Título bastante sugestivo, não? Mesmo não gostando muito de poesia nem de literatura contemporânea, julgo pertinente experimentar alguma coisa do tipo, vez por outra. E com isso, já tive boas surpresas! Acho que vou antecipar Tempestardes na minha lista de próximas leituras, pois fiquei muito curioso mesmo.

Espero que tenham gostado deste Mais Livros! tão especial! Tomara que o de agosto saia em agosto mesmo rsrsrs! Até o próximo post!

Daniel Coutinho

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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós - RESENHA #22

O nome de Bartolomeu Campos de Queirós não me era estranho. Consultando minha relação de livros lidos, encontrei seu nome na seção dos infantojuvenis. Tinha lido Faca Afiada. Sendo sincero, foi um dos livros mais chatinhos da minha infância. Contudo, não fiquei menos curioso para ler Vermelho Amargo, tão comentado desde seu lançamento em 2011, sendo o último livro publicado em vida pelo autor, que veio a falecer no ano seguinte.

Minha edição, recentemente adquirida, é da saudosa Cosac Naify. O livro, mesmo não chegando a 80 páginas, possui capa dura; aliás, possui uma capa bem dura mesmo; não se trata exatamente de uma capa, mas de um bloco de madeira. Penso que todo mundo deve ter achado estranho essa encadernação exageradamente resistente num livro tão curtinho, mas vindo da Cosac, tinha que ter uma explicação plausível. Agora que finalmente o li, pude compreender.

Vermelho Amargo expressa uma dureza tão extrema quanto sua capa. Trata-se de uma narrativa autobiográfica que funciona como um desabafo. A impressão que tive foi de muito ressentimento envolvido naquelas poucas páginas, exprimindo angústias reprimidas por longo tempo. A experiência foi totalmente diferente do que eu supunha. Portanto, advirto desde já que este livro constitui uma prosa poética muito pesada, onde a poesia se sobressai através de uma escrita requintada e muitas vezes obscura, que narra os sofrimentos de um menino em sua atormentada infância.

Não há divisão de capítulos. A obra principia com uma frase do próprio autor; depois, a narrativa toma seu curso livremente sem interrupções até o seu desfecho. Narrado em 1ª pessoa, Vermelho Amargo conta a história de um menino que, após a morte da mãe, vive oprimido, assim como seus irmãos, pela presença de uma madrasta desprezível. Nenhum dos personagens é nomeado. A própria ação é bastante obscura, uma vez que é relatada numa linguagem intencionalmente poética.

Não aprecio muito obras que realizam essa mistura de gêneros, principalmente quando num livro de prosa de ficção, sobressai a poesia que, a meu ver, deveria ser simplesmente um artifício, um recurso estilístico do prosador. Do mesmo modo, quando você tem um poema narrativo que preza mais pelo enredo que pela própria musicalidade poética, não considero bem construído. Este Vermelho Amargo, penso, ficaria muito melhor em versos. Nem seria muito trabalhosa tal transposição. O problema, em suma, não é a prosa poética, tão cultivada por escritores de estro sensível; o problema é querer obrigar a prosa a ser poesia ou vice-versa.

O narrador alterna continuamente suas lembranças da mãe e da madrasta. A forma como esta última, todos os dias, corta o tomate em rodelas finíssimas para as refeições, causa forte impressão nele, que associa a opressão da madrasta à obrigação de comer os tomates. Em nenhum momento são relatados atos de maldade da nova senhora, mas fica subentendido o desprezo da mesma pelos enteados e uma possível colaboração no processo de dispersão da família. Pouco a pouco, os filhos vão deixando o lar. O narrador faz uma espécie de contagem regressiva no percurso da história, à medida que os membros deixam a casa paterna. São seres peculiares esses irmãos: além do narrador, temos um garoto que come vidro, uma moça que vive bordando em cruz, uma menina que mia por seu gatinho mudo, outra que brinca de nascer todo dia num país diferente e um último sobre o qual nada é dito.

Para escapar de seu sofrimento, o narrador apega-se a um amor. Eis um ponto delicado do livro. Em alguns momentos, o leitor julga ser esse amor apenas produto de uma imaginação infantil ou simplesmente a estima pela mãe falecida. No entanto, o menino persiste em referir seu amor numa perspectiva carnal, seja nos encontros que se dão na solidão de um porão, nos beijos trocados, nas necessidades exigidas por seu corpo e, finalmente, na satisfação produzida por aquele amor que acaba fazendo-lhe esquecer seus padecimentos. Como o narrador não revela sua idade no tempo da narrativa, imagino que ele não seja tão menino assim. Mas esta é só mais uma dentre tantas lacunas deixadas em aberto pelo autor.

Um ponto interessante a ser lembrado é que Vermelho Amargo é todo entremeado com frases de efeito, reflexões que fazem a gente querer anotar passagens e mais passagens, de tão bonitas que são. Essas frases de efeito são o que, de certa forma, sustentam o livro, uma vez que o enredo é bastante insípido e sem grande interesse. Por isso, insisto em dizer que a transposição para versos melhoraria consideravelmente a consistência da obra. Para mim, não foi uma leitura agradável, especialmente por conta da atmosfera pesada e melancólica; mas compreendo ser este livro não apenas uma obra de arte, mas a expressão de alguém que precisava vazar seus sentimentos livremente no papel. É como diz a frase de abertura: “Foi preciso deitar o vermelho sobre papel branco para bem aliviar seu amargor”.

Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho

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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Inimigo do Rei, de Lira Neto - RESENHA #21

Não sou um leitor de não ficção. Quero dizer com isto que não tenho o costume de ler obras não literárias: biografia, autoajuda, religião, filosofia, política (este último gênero então... rsrsrs), etc. Não estou menosprezando ou desmerecendo esses gêneros; apenas não me interessam. Quando pego uma não ficção para ler, só pode haver algum forte interesse envolvido, mas ainda fico com um pé atrás, meio enfadado. Foi com essa postura hesitante que decidi encarar O Inimigo do Rei, de Lira Neto. O interesse envolvido foi o desejo de conhecer mais da vida desse gênio nacional que foi José de Alencar, o patriarca da Literatura Brasileira.

Não vou falar aqui de meus amores por Alencar, pois quero que este post seja mais breve que os últimos que tenho escrito; além do que, o assunto renderia matéria para um livro inteiro. Vou tentar focar (dentro do possível) na biografia do Lira e no que achei dela.

Sensacional! Sem dúvida, uma das melhores leituras do ano. Isto vindo de uma não ficção, para mim, é algo assombroso. Fiquei surpreso de verdade e muito satisfeito por saber que tão deliciosa obra vinha de um cearense como eu e, claro, como Alencar. Cheguei a pensar que o motivo de tanto agrado seria o simples fato do livro ser sobre meu escritor favorito, mas logo lembrei que, há algum tempo, li outra biografia do autor de Iracema: José de Alencar na Literatura Brasileira, de M. Cavalcanti Proença, e não tive com ela uma experiência tão fascinante quanto a proporcionada pelo livro do Lira Neto. Fiquei encantado sobretudo com a riquíssima pesquisa desenvolvida pelo biógrafo, que desenterrou os documentos mais inacessíveis que se possam imaginar, como as primeiras contribuições jornalísticas de Alencar, quando o mesmo ainda era estudante de Direito, só para citar um exemplo. Além de diversos periódicos oitocentistas, é impressionante o número de obras consultadas, tanto de contemporâneos do biografado, como de escritores da geração seguinte. Quando concluí a leitura, senti algo como uma necessidade de parabenizar o autor, apertar-lhe a mão, agradecê-lo por aquela dedicada pesquisa que resultou em obra de tão bom gosto.

A experiência que foi ler O Inimigo do Rei proporcionou-me, além de muito contentamento, algo que vinha desejando há algum tempo: um reencontro com Alencar e sua fantástica obra. Lira Neto perpassa, uma por uma, cada obra literária, de Cinco Minutos a Encarnação, além de todas as peças teatrais e algumas obras de não ficção. Estava claro o cuidado que o autor teve em ler, senão toda, grande parte da produção alencarina. Sempre que relatava o lançamento de algum romance, comédia ou drama, o biógrafo fazia questão de contar o enredo, muitas vezes revelando o desfecho da história. Portanto, se você não leu muitas obras do Alencar, prepare-se para muitos spoilers neste livro! Eu, particularmente, nem considerei como defeito essas revelações. Entendo O Inimigo do Rei como um livro destinado aos admiradores do grande romancista, que já realizaram um contato considerável com sua vasta ficção e que, portanto, precisam de algo mais. A biografia de Lira Neto é este “algo mais”!

Admirável também é a postura que o biógrafo assume diante da difícil tarefa de recontar a história do pirracento, teimoso e malcriado José de Alencar, atributos estes dados pelos inúmeros desafetos colecionados ao longo de seus 48 anos. Para falar de um escritor mordaz, sarcástico e inexorável para com seus inimigos, Lira Neto incorpora em sua linguagem uma espécie de humor ferino que, com perícia, dá conta de relatar as mais diversas situações, de maneira imparcial. Seu texto é quase romanceado e constantemente acompanhado de charges e ilustrações de época que contextualizam os fatos narrados. Esse humor ferino de que falei é aplicado com mestria até nos títulos e subtítulos de cada capítulo da obra, fazendo alusão aos métodos que os famosos folhetinistas do século XIX utilizavam para nomear os episódios de seus romances e novelas.

O biógrafo mostra-se atento a todas as nuances de Alencar: o estudante, o leitor, o folhetinista, o romancista, o dramaturgo, o poeta, o advogado, o deputado, o ministro, o polemista, o crítico literário... Alencar não foi pouca coisa mesmo rsrsrs É digno de mérito o trabalho realizado nessa biografia que soube abarcar de forma tão pertinente a curta vida de um homem, cuja importância e representatividade para a nação brasileira vão além das fantásticas criações fictícias que idealizou/imortalizou em nossa Literatura.

Nesse universo de facetas assumidas pelo nosso gênio, a que mais me desagradou foi a do político. Não que Alencar tenha sido um mau político. O assunto é que não me encanta. Assim, sempre que Lira Neto concluía uma daquelas polêmicas de tirar o fôlego, como a d’A Confederação dos Tamoios, e passava às candidaturas e exercícios políticos de seu biografado, eu tratava de acelerar a leitura, a fim de chegar logo à recepção crítica de novas obras, como também novas polêmicas, que não foram poucas. Devo confessar que, mesmo lendo a contragosto as passagens políticas, divertia-me involuntariamente diante das querelas com o Duque de Caixas, o Barão de Cotegipe, o senador Zacarias de Góis, o próprio D. Pedro II, e tantos outros nomes da política do Brasil Império, época em que conservadores e liberais faltavam matar-se por seus interesses.

Confesso que fiquei um tanto decepcionado com algumas atitudes tomadas por Alencar. Não conhecia essa veia vingativa que possuía e sua postura implacável diante dos inimigos, chegando a ser um terrível perseguidor em alguns casos: João Caetano e Manuel Antônio da Fonseca Costa que o digam! Tudo bem que não temos uma visão real das circunstâncias em que se deram tais ocorrências, mas mesmo assim, fica evidenciado um caráter insurgente e quase imoderado. Para responder às críticas literárias, Alencar não era menos perspicaz; assim, ele não deixou sem resposta todos que em vão atacaram sua obra, e não foram poucos: Franklin Távora, Feliciano de Castilho, Pinheiro Chagas, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco (este último, movido mais por despeito que por entendimento de crítica), e tantos outros que, mais tarde, quase que na totalidade, acabaram por reconhecer o valor da obra alencarina. Machado de Assis, seu admirador confesso, nunca duvidou que a obra de seu mestre passaria à posteridade.

Aliás, essa era a grande preocupação dos anos finais de Alencar: passar à posteridade. Uma viagem que fizera a Europa, sobretudo, deixou-o muito desestimulado com relação ao destino que teriam seus livros. Alencar sentiu-se deslocado naquele mundo moderno e futurista que achara em Londres e Paris, tão diferente daquilo que infundira no pensamento a partir da leitura dos autores europeus. O contato com os novos estilos cultivados nos mais diversos campos da arte fizeram com que se sentisse ultrapassado e anacrônico. A viagem que realizara por motivo de saúde ainda mais agravara sua organização física, já tão fragilizada pela tuberculose. Quase fui às lágrimas quando Lira Neto contou: “Em vez da cura, encontrara na Europa uma visão antecipada do futuro. Sofrera profundamente ao constatar que lá, no amanhã, talvez não houvesse mesmo um lugar reservado para ele e suas antigalhas literárias.” (pág. 372). Compartilhei daquela dor, imaginando aquele homem que dedicara tanto tempo de sua vida às Letras pátrias, temendo ficar esquecido no tempo, nos anais, como as velhas crônicas históricas que tanto lera na juventude.

Hoje sabemos que, no final de tudo, Machado foi quem teve razão. Alencar, atualmente em domínio público, continua sendo editado por várias editoras, além de já ter sido traduzido para vários idiomas e estar sendo cada vez mais redescoberto pela crítica contemporânea. Quase todos os seus romances ainda estão no catálogo de várias editoras e, portanto, nas livrarias. Sua produção teatral, salvo O Demônio Familiar, é que continua injustamente esquecida, mas alguns recentes investimentos da editora Martins Fontes têm sido notáveis ao relançar peças como As Asas de um Anjo, Mãe e O Jesuíta. Preciso confessar que sou fã do Alencar dramaturgo, tanto quanto do romancista, e que já li todas as nove peças.

Finalmente, todo fã de José de Alencar precisa ler O Inimigo do Rei, que é para o século XXI, o que José de Alencar e sua Época, de R. Magalhães Júnior, foi para o século XX. A propósito, preciso ler essa outra biografia que, imagino, tenha sido uma das fontes mais essenciais na construção da obra do Lira Neto. Fazer o quê? Amor demais por Alencar!!!

Avaliação: ★★★★★
Daniel Coutinho

P.S.: Disponibilizei para os apreciadores da obra de Alencar um conto raro, único que ele publicou no gênero, intitulado Lembra-te de Mim. Saiba mais clicando AQUI!

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