segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Olhos d'Água, de Conceição Evaristo - RESENHA #220

Conceição Evaristo é uma das vozes mais potentes de nossa literatura contemporânea; ao menos dentre as que chegaram até mim. É consolador vermos escritores que, como ela, demonstram saber usar o tom adequado à realidade caótica de nosso século, sem se embaraçarem nas armadilhas das novidades experimentais, quase todas sequiosas por atenção pública.

É com um estilo simples, seguro e poético (de uma poesia que respeita os limites da prosa de ficção) que ela traça suas narrativas, quase todas muito difíceis de digerir, em razão dos temas funestos que são de sua preferência, pelo menos nesta coletânea Olhos d’Água (2014).

Acredito que a palavra adequada seja mesmo “escolha” ao invés de “preferência”, embora nem todos os contos de Olhos d’Água sejam violentos e lutuosos. Fica bastante claro o propósito da autora em retratar enfaticamente um recorte social específico. É o negro, pobre e favelado quem está no plano central de sua prosa, especialmente aquele que, em razão de suas circunstâncias sociais, assume caminhos perigosos.

“Olhos d’água”, que dá título ao livro, abre a coletânea com graciosidade. É uma prosa poética que, de certa forma, antecipa o sofrimento e a tristeza que depararemos nas narrativas da sequência. Há tanta beleza, delicadeza, sensibilidade e poesia nessas poucas páginas, que, sem nos darmos conta, terminamos a leitura em voz alta e com olhos possivelmente marejados.

Seguimos com “Ana Davenga”, primeiro conto de enredo tradicional. Aqui temos uma elaboração primorosa, onde a excelência da escrita casa perfeitamente com o interesse da trama. São muitas camadas sendo exploradas simultaneamente num mesmo texto, e todas elas amparadas pela curiosidade do leitor, provocada desde o primeiro parágrafo. Quando saciada essa curiosidade, uma epifania, que à primeira vista parecia impossível, toma conta do leitor, não sendo esta a última surpresa do conto.

“Maria” também é marcado pela fatalidade. Tal como em “Ana Davenga”, a mulher acaba sendo vítima indireta por se envolver com um criminoso. Mas nele ressalta ainda mais a maldade humana. No conto, um assalto acontece dentro de um ônibus, e a única pessoa dispensada pelos assaltantes acaba sofrendo a ira dos demais passageiros.

“Quantos filhos Natalina teve?” é outro ponto alto do conjunto. É o caso curioso de uma menina ignorante e imatura que se torna uma mulher egoísta, adepta das paixões frívolas e indiferente ao amor. Ainda que Natalina seja por demais irritante, sua frieza de sentimentos resulta num desfecho favorável à narrativa, o que culmina na derradeira gravidez, sugerindo novas possibilidades para a personagem. É certamente uma das histórias mais sutis da coletânea.

Seria imperdoável de minha parte estragar a surpresa contida em “Beijo na face”. À primeira vista, é só mais uma dessas histórias de mulheres infelizes no casamento e que acabam sendo infiéis. Contudo, a narrativa progride admiravelmente, e acaba tendo o melhor desenlace possível.

Chegamos ao meu favorito, “O cooper de Cida”, que é um dos poucos “contos felizes” de Olhos d’Água. Aqui não há violência ou morte, mas sim uma história de autoconhecimento. Nele, uma mulher negra, uma corredora de vida ativa, num dia como qualquer outro, percebe o mundo e a si própria de uma forma diferente, e, a partir daí, tudo muda para ela.

“Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” e “Lumbiá” são protagonizados por crianças. Embora ambos sejam trágicos, no primeiro é a violência nas favelas que determina a fatalidade, enquanto no segundo ela é simplesmente inevitável. Ao final, Zaíta e Lumbiá acabaram sendo vítimas de sua própria inocência infantil; no entanto, os dois contos refletem a vulnerabilidade notadamente maior da criança negra e pobre.

“Os amores de Kimbá” é outro conto de grande potencial e que explora novos temas. Desde o início, o tom da narrativa (o tom do próprio livro, principalmente) sugere mais um desfecho trágico, mas aqui este não me pareceu de bom tom. Julguei pouco convincente a saída encontrada pelo protagonista perante o seu dilema amoroso. O perfil de Kimbá, um homem bonito e ambicioso, exigia que o mesmo ponderasse outras alternativas. E o que dizer dos demais personagens (que constituíam o triângulo amoroso) optarem pela mesma saída? No mínimo, teatral. Mas o conto sabe entreter mesmo com seu final preguiçoso.

“A gente combinamos de não morrer” é outro caso de conto que poderia ter sido melhor desenvolvido. Tal como “Os amores de Kimbá”, a narrativa tem muita força, e suas várias vozes trazem uma dinâmica que engrandece a obra. Mas se “Kimbá” peca pelo excesso, este novo conto tem ares de esboço, talvez até de obra mais extensa, uma novela, por exemplo. Dele tive essa impressão de incompletude, de que lhe faltou uma substância que o tornasse mais satisfatório.

Deixo de comentar uns poucos contos que não me atraíram como os já citados. São trabalhos menores, que me pareceram antes quadros/retratos de tipos que não têm a força de uma Natalina ou de uma Ana Davenga.

A coletânea se encerra com outra prosa poética, “Ayoluwa, a alegria do nosso povo” que, se não me pareceu tão impressionante quanto “Olhos d’água”, ao menos conclui o volume com uma nota de otimismo e esperança. Olhos d’Água, de modo geral, foi uma leitura que me trouxe muitas surpresas boas, além da satisfação de me apresentar o trabalho desta contemporânea que, acredito, deve ter ainda muito que dizer.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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