sábado, 20 de julho de 2019

O Forasteiro, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #105


Um dos romances menos conhecidos do Dr. Macedinho na atualidade é sem dúvida O Forasteiro (1855), sétimo publicado por ele, mas o primeiro escrito pelo festejado autor d’A Moreninha. Em prefácio à obra, Macedo já advertia os leitores dos problemas de sua primeira composição romanesca, revelando que só decidira publicá-la graças às instâncias de um amigo, possivelmente seu editor, B. L. Garnier, que então rendia consideravelmente com os vários títulos assinados pelo romancista.

A despeito dos defeitos deste romance, que não se distanciam muito daqueles que figuram nos demais, O Forasteiro constitui excelente leitura de entretenimento, gênero em que Macedo era indiscutivelmente um mestre. Não entendo por que tenha sido esta obra tão negligenciada ao longo dos anos, não merecendo numerosas reedições conforme acontecera com a maioria dos romances do autor. Penso mesmo que, para uma primeira obra, O Forasteiro já diz muito do talento daquele que se tornaria um de nossos mais populares ficcionistas.

No romance em questão, deparamo-nos com as várias fórmulas consagradas na obra de Macedo: o mistério de um passado oculto, o enjeitado que desconhece suas origens, o personagem de identidade oculta, a história que se conta dentro da outra, etc. A persistência destes artifícios pode denunciar um prosador repetitivo e de pouca imaginação, mas deve-se alertar para a condução que Macedo faz desses mesmos elementos, dispondo-os de forma a criar, em cada nova obra, um enredo que cativa e entretém.

A trama aqui não é menos intricada que em outras obras como Os Dois Amores e Vicentina. Tentarei clareá-la aos curiosos.

Leonel foi entregue recém-nascido aos cuidados da velha Constança, que recebeu a criança muito oportunamente, já que na mesma época perdera seu filho, que fora preso pelo Santo Ofício, graças a uma emboscada de um falso amigo chamado Rafael, de quem a inconsolável mãe tornara-se inimiga implacável. Tudo se complica, porém, quando Leonel apaixona-se e é correspondido por Branca, sobrinha/pupila de Rafael.

Branca, órfã de mãe, fora criada por seu pai com a ajuda da índia Ciriaca, que lhe servira de ama. A mameluca Iveta (filha de Ciriaca com um português) e Leonel (a quem Ciriaca também servira como ama de leite) foram seus companheiros de infância. Enquanto Branca e Leonel partilham de um sentimento recíproco, Iveta apaixona-se por Jorge, filho de Claudio Góes, um leviano usurário. Com a morte do pai de Branca, esta vai viver com Iveta sob a tutela de seu tio Rafael, que contrata o casamento da sobrinha com o filho de Cláudio Goés, a quem devia dinheiro.

A par desses lances amorosos, temos um misterioso personagem a quem todos conhecem unicamente pela alcunha de “Forasteiro”. Trata-se de um velho encapuzado, que vive no meio da floresta, servindo a todos quanto precisem de seu auxílio, sobretudo os mais pobres, com quem reparte seu ouro de cuja origem todos desconhecem. Muitos o consideram um feiticeiro, justificando por esse modo o conhecimento absoluto que o Forasteiro parece ter sobre a vida de todos os moradores do lugar. Esquecia-me dizer que a história se passa na então povoação de Itaboraí.

Esse misterioso ancião, após ter sido salvo por Leonel na ocasião em que fora atacado por salteadores, abraça a causa do jovem mancebo, decidido a ajudar os quatro jovens apaixonados a vencerem os obstáculos de seus amores. Contudo, o velho Forasteiro guarda para si razões particulares pelas quais alimenta um grande desejo de vingança contra Rafael e sua esposa Alda. Esta, por sua vez, doente e reclusa, encobre na moléstia e na religião um grande segredo, razão máxima de seu padecimento.

O Forasteiro segue no ritmo acelerado tão comum aos romances de aventura. Diferente de Os Dois Amores, nele quase não há digressões, exceto aquelas em que o autor se detém na explicação minuciosa de algum episódio do capítulo anterior.  Os diálogos são ligeiros e interessantes. A narrativa é ágil e correntia.

Enquanto romance de entretenimento, a obra cumpre seu papel excelentemente. O que me incomoda nele, como em outros títulos do autor, é certa pressa que percebo na execução do desfecho que, a meu ver, poderia ser trabalhado com mais detença e observação. No mais, o livro atende perfeitamente à sua proposta, tanto que – faço questão de reiterar – o desmerecimento que lhe conferiu o público é mesmo digno de reparo.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

Editora Oitocentista lançou em 2021 uma edição fac-símile de O Forasteiro. Para adquirir seu exemplar, fale com a editora pelo Instagram (@editoraoitocentista) ou por e-mail (editoraoitocentista@gmail.com).

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terça-feira, 9 de julho de 2019

O Menino do Dedo Verde (Tistou Les Pouces Verts), de Maurice Druon - RESENHA #104

O Menino do Dedo Verde (1957), do francês Maurice Druon, é outro daqueles livros que não tenho certeza se lamento não ter lido na infância, como O Pequeno Príncipe, Marcelino Pão e Vinho e O Meu Pé de Laranja Lima. Provavelmente não. Embora seja inevitável o pensamento de que “eu deveria ter lido antes”, o aproveitamento que se atinge na maturidade acaba desculpando-me de todo.

Tistu é mais um daqueles personagens imortais que, ao lado do principezinho, de Marcelino e de Zezé, ficarão para sempre marcados em minha trajetória de leitor como exemplos de crianças inspiradoras. Espero conhecer muitas outras, a fim de ampliar a coleção rs.

Em relação às outras obras citadas, O Menino do Dedo Verde pareceu-me de estilo mais propriamente infantil, escrito numa linguagem mais acessível às crianças. Com dinamismo e bom humor, vamos acompanhando a trajetória do pequeno João Batista, ou simplesmente Tistu, que mora na Casa-que-Brilha, na companhia do Sr. Papai, de dona Mamãe e dos empregados da casa. Eles residem em Mirapólvora, onde o Sr. Papai é dono de uma fábrica de material bélico.

Com a idade de oito anos, Tistu é mandado a uma escola, mas seu desempenho acaba comprometido graças ao sono experimentado em todas as aulas. Mandado para casa, por “não ser como todo mundo”, Tistu acaba tendo sua educação confiada aos empregados de seu pai que, através dos exemplos da vida, cuidariam de sua instrução pessoal. Durante uma aula de jardinagem com o Sr. Bigode, Tistu acaba descobrindo que tem polegar verde, o que lhe permite fazer florescer tudo quanto possa tocar.

O extraordinário poder de Tistu será usado nas mais diversas situações, na tentativa de mostrar às crianças (mas não só a elas) o poder das coisas simples sobre os problemas humanos. O autor nos leva a refletir sobre violência, desigualdade social e até sobre guerra, mas sempre de forma leve e descontraída, envolvendo-nos ainda com um toque de conto de fadas que emana de sua prosa.

É notório que, assim como nos demais clássicos já mencionados, o tema da morte também apareça aqui, ainda que tratado de modo menos pungente. O destino final do protagonista, entretanto, suaviza o momentâneo processo de tensão por que passa a narrativa em sua última etapa.

Doce como um sonho de criança, O Menino do Devo Verde, ainda que de leitura mais rápida e passageira, dá-nos aquela tentaçãozinha de, ao fecharmos o livro, retornarmos à primeira página, para descermos com Tistu várias vezes pelo corrimão e prosearmos um bocado com o pônei Ginástico, na tentativa de esquecer os vários motivos pelos quais os homens divergem tanto.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 6 de julho de 2019

Macbeth (The Tragedy of Macbeth), de William Shakespeare - RESENHA #103

Acredita-se que a mais curta das tragédias de Shakespeare tenha ido à cena em 1606, sendo publicada apenas em 1623. Macbeth está ainda entre as quatro tragédias mais celebradas do grande bardo inglês.

A peça nos apresenta o grande general escocês Macbeth que, após receber a profecia de três bruxas de que se tornaria monarca, deixa-se levar pela ambição e, persuadido pela mulher, decide assassinar seu primo Duncan, rei da Escócia.

Esse primeiro crime é decisivo no comportamento do personagem que, a partir daí, passa por uma transformação de caráter, deixando-se corromper cada vez mais. Receosos pela própria vida, os filhos de Duncan acabam fugindo da Escócia, sendo por esta atitude encarados como possíveis suspeitos. Mas o temor de Macbeth é que, tal como também mencionado na profecia das bruxas, a linhagem de Banquo, seu companheiro de armas, tome de sua própria linhagem o poder da nação escocesa. Para evitá-lo, o grande general ordena a morte de seu companheiro, como a de seu filho Fleance, mas este último acaba escapando.

Malcolm, filho de Duncan, que acaba descobrindo o jogo do usurpador de seu pai, busca aliados na coroa inglesa para a derrubada do tirano. Macduff e outros nobres escoceses também aliam-se a ele, enquanto Macbeth, apreensivo pelo seu destino e atormentado pelo fantasma de Banquo, recorre às bruxas outra vez para descobrir os perigos que o ameaçam. Fica pois tranquilizado ao ouvir que jamais seria derrotado enquanto a floresta de Birnam não se deslocasse até seu castelo, como também jamais seria vencido por qualquer que fosse parido por mulher. Os artifícios ocultos por essas promessas, no entanto, acabam deixando-o desprevenido sobre os iminentes perigos que poderão levá-lo à ruína.

Devo ter desgostado de Macbeth mais do que de outras tragédias lidas devido ao pouco espaço dado à natureza boa do protagonista antes de sua perversão. Diferente do que ocorre em Hamlet ou Otelo, Shakespeare, talvez pelo pouco espaço dado à peça, não se detém muito nas provas de nobreza de seu protagonista. A ideia que fazemos do general Macbeth, como de sua esposa lady Macbeth, é a de que são seres egoístas e desprezíveis que, movidos pela ambição, são capazes das maiores torpezas.

Ainda que o desfecho da peça tenha sido mais do que justo, seu desenrolar e a feitura de suas cenas não me entusiasmaram tanto quanto as demais obras que já li de Shakespeare, como devo ter transparecido nesta resenha. Não ponho, contudo, em discussão as qualidades literárias de Macbeth. A questão é, como costumo dizer, unicamente de gosto pessoal.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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quinta-feira, 4 de julho de 2019

Cada Forma de Ausência É o Retrato de uma Solidão, de Marco Severo - RESENHA #102

A ojeriza que dedico à literatura contemporânea felizmente não me impede de reconhecer um grande talento quando o tenho à vista. Há algum tempo aplaudi com entusiasmo as crônicas de Bruno Paulino em A Menina da Chuva; desta vez, apresento – a quem porventura ainda desconheça – um dos melhores contistas vivos que tenho lido nos últimos tempos, o senhor Marco Severo.

O amigo e poeta Léo Prudêncio – outro talento de nossos dias, de quem aguardo ansiosamente uma terceira coletânea de haicais – foi quem teve a gentileza de me apresentar o trabalho de Marco através do livro Cada Forma de Ausência É o Retrato de uma Solidão (2017). O título, assim longo, já não me agradou muito, sugerindo talvez uma proposta similar à daqueles poetas que, quando se aventuram pela prosa se ficção, acabam se embananando. A coletânea de Marco, felizmente, é outra praia.

Dono de um estilo que envolve e cativa às primeiras linhas, o contista nos oferta histórias marcadas pela oralidade e por um admirável poder de fabulação. Não poucas vezes eu me sentia roubado e interrompia a leitura para comentar interiormente “Eu queria ter escrito isso”. Longe de querer ser pretensioso, vi alguma semelhança entre o estilo de Marco e o meu próprio, embora não seja muito difícil determinar qual de nós tece sobre assuntos mais amenos.

Há quem possa desgostar do trabalho em questão justamente pela persistência dos temas funestos, mas, para mim, o tratamento dado a cada uma das histórias punha os aspectos lutuosos em segundo plano. Ficava tão fascinado com a técnica narrativa, com a evolução dos enredos, com a correção da escrita (sim, eu disso isso mesmo!), que difícil será passar a esta resenha todas as impressões que tive das histórias de que mais gostei, que não foram poucas.

Do conjunto de vinte e duas histórias, pois, destacarei sem prolongar-me muito (prometo!) os oito contos que mais rutilaram aos meus olhos.

“O lado de cá da prisão” talvez seja o conto que mais dialoga com o título do livro. Alonso precisa deixar a cidade para comparecer ao enterro da avó. Sua frieza em relação à ocorrência, como também seu tratamento com a família, revelam um distanciamento perturbador, um sentimento que só poderá ser expelido diante de uma perda notadamente mais significativa para ele.

Em “Mudança”, o pequeno Daniel, não obstante os problemas de sua própria casa, acaba deparando-se com dilemas de natureza mais grave a partir da figura do solitário Charles, o menino em corpo de homem, tão carente de atenção. “Omnia mutantur” nos apresenta Lourenço, que acaba assumindo para a vida real a personalidade feminina que criara para assinar seus livros. É surpreendente o processo de libertação por que passa o personagem, especialmente a partir do momento em que deixa de escrever, afirmando assim a consistência da identidade de Vivian Ferraz.

“A âncora encoberta pelo mar” põe em cena a maravilhosa tia Lucrécia, que, com sua formidável trajetória, protagoniza sem dúvida um dos três melhores contos do livro. “Grande e duro” e “Na contramão” exploram aspectos mais introspectivos de seus personagens e das situações vividas por eles, trazendo à tona para o leitor, a partir de um estilo poético e reflexivo, uma autoanálise sobre quem somos, com quem vivemos e onde habitamos.

“Curral” mostra a que consequências pode chegar um caso de Bullying. Ronaldo, molestado por colegas na infância, sofrerá na vida adulta o resultado daquela violência, que finalmente lhe renderá um triste destino. “Fofura” possui um título autodescritivo. Conquanto não seja menos triste que outras histórias do conjunto, há uma aura de esperança nele na figura de um simpático cachorrinho e de seu possível continuador.

O livro de Marco Severo, de forma geral, está excelente, salvo por um ou outro detalhe no que se refere a escolhas questionáveis em histórias como “O relógio do coelho de Alice” e “Uma infinita solidão”. No mais, o livro revela-se de uma grandiosidade literária que há tempos não encontrava dentre os meus contemporâneos. É, gente, nem tudo está perdido rs!

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

P.S.: Por último, mas não menos importante, esquecia-me mencionar um dos pontos mais elevados da coletânea de Marco. Sônia Abrão, que já havia dado mostras de seu maravilhoso talento de atuação no clipe de Pepê & Neném, aparece brilhantemente no conto “Caminho aberto a facão”, em participação mais que especial.

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