Quando
li a sinopse de Menina Má, meses
atrás, tive certeza de que precisava ler aquele livro. Sendo sincero, não sou
muito afeito à literatura de horror e afins. Prefiro o horror enquanto elemento
secundário. No caso de Menina Má,
felizmente, o autor não se limitou a impressionar o leitor com cenas violentas.
É complicado afirmar qual seria a proposta ou propósito da obra. O autor alega
tê-la escrito com fins puramente comerciais, o que é muito difícil de crer. A
diversidade de temas delicados contidos no livro denota mesmo uma mente doentia
e atormentada. Quando se lê qualquer coisa sobre William March, é possível
confirmar essa observação.
Em
abril de 1954 é lançada a primeira edição. Menos de um mês depois, falece
William March. Mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Os mais céticos dirão
que nada, mas me custa acreditar que concluir uma obra desse feitio não
deixasse qualquer pessoa profundamente perturbada. O próprio leitor perturba-se
lendo este livro. A leitura dá-se numa atmosfera fria e pesada. O leitor sofre
por sua empatia com Christine, e indigna-se com a indolência de Rhoda. O autor
mantém o suspense quase sempre ininterrupto. A escrita de William March é
simples, inteligente e direta. As digressões ficam por conta do leitor que
vê-se obrigado a, ocasionalmente, fazer intervalos para digerir o conteúdo do
romance.
Rhoda
é uma linda garotinha de oito anos, daquelas que usam vestidinhos fofos e fazem
tranças nos cabelos; filha de Chistine e Kenneth, um casal bastante
convencional, onde o pai é bastante ausente por conta do trabalho, e a mãe uma
típica senhora do lar. Rhoda, por outro lado, é uma criança peculiar. Suas
preocupações não consistem em jogos ou brinquedos, mas em conseguir tudo o que
quer e ser sempre a melhor: a mais adorável e admirável das crianças. Assim,
muito estudiosa e organizada, ela tem tudo sempre em ordem. A impecável
garotinha é endeusada pelos adultos tanto quanto odiada pelas crianças.
Um
dos maiores prazeres de Rhoda é ser premiada com objetos materiais, pois despreza
carícias e demonstrações de afeto. É singular a disciplina com que ela estuda
até mesmo as lições bíblicas da escola dominical, mas sempre com tenção de
ganhar algum prêmio por seu destaque. Quando perde a medalha de melhor
caligrafia da turma para Claude, um garoto magrelo e pálido, Rhoda fica
inconformada. Daí, num dia de piquenique da escola, Claude é encontrado morto
entre as estacas de um velho cais. Ao que tudo indica, o garoto caiu na água e
afogou-se. A medalha de caligrafia, contudo, não fora encontrada.
É
admirável a habilidade de March em conduzir o romance de uma forma que não é
exagerada nem apelativa. Muito cuidadoso com as passagens violentas, ele
inicialmente não se presta a narrar as maldades de Rhoda, preferindo contá-las
por outros artifícios. À medida que a narrativa vai progredindo, as cenas vão
ficando mais violentas e a tensão alcança maior grau a partir do momento em que
Christine percebe o quanto sua filha pode estar envolvida com os recentes
acontecimentos que tanto têm lhe abalado. A terrível dúvida leva-a a observar
Rhoda atentamente, como também desperta seu interesse por casos policiais
semelhantes. Com a desculpa de estar fazendo pesquisa para um romance,
Christine toma contato com vários casos de assassinos em série.
A
atenção dada pelo autor aos casos examinados por Christine acaba comprometendo
um pouco o suspense do livro, mas nada que tire o interesse do mesmo. Outro
recurso que merece destaque é a composição de personagens secundários, como
Monica Breedlove (vizinha de Christine) e Leroy (zelador do prédio onde moram
Cristine e Monica). Não são figuras simples, mas de considerável relevância
para a trama. Monica é uma feminista que vislumbra o bem comum. É uma grande
observadora e amante da psicanálise. Tem um comportamento um tanto radical e
tendências incestuosas. Sua sexualidade é bastante controversa, mas não penso
que ela seja homossexual, como alguns acreditam. Leroy é o que pode-se chamar
de “revoltado”: aquele cara que acabou como zelador e que alimenta profundo ódio
pelos que são financeiramente bem-sucedidos. Mas o grande interesse que ele
desperta é por conta de sua perspicácia, que chega a descobrir a maldade por
trás de Rhoda.
Passando
aos senões do livro, além dos já citados casos de assassinos em série, outra
coisa que me incomodou bastante foi um determinado crime cometido por Rhoda,
que me pareceu muito improvável. Não quero revelar aqui, para não dar spoiler,
mas se alguém quiser discutir nos comentários, sinta-se à vontade! [Para quem
já leu, estou me referindo ao caso do incêndio!] Trata-se de um crime que,
diferente dos outros, é narrado no tempo real do romance. Sinceramente, achei
muito mal contado e não me convenceu. Foi o único grande deslize (que eu
percebi) do autor que, felizmente, logo reassume sua postura de grande escritor
e segue nesse ritmo até o desfecho da narrativa que é, sem dúvida, chocante.
Fiquei
impressionado com o final do livro, que é dos mais irônicos que já li, ao
estilo O Mulato, de Aluísio Azevedo.
O interessante é que Menina Má
encerra pedindo uma continuação. Não tem como não querer saber o que vem
depois. Mas quanto a isso, o leitor terá de se conformar com suas próprias
hipóteses e suposições. No mais, permanece segunda lacuna na eterna dúvida: a
maldade dos homens é adquirida do meio onde vivem, ou consiste numa semente
herdada de geração a geração?
Avaliação: ★★★★
Daniel Coutinho
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