Num
dos Mais livros! do blog, contei que
não gosto de antologias. Me desagrada essa feijoada literária, principalmente
quando não se menciona de onde foram amputados os textos. Por exemplo, já vi
várias antologias com contos de Machado de Assis, onde são selecionadas as
melhores histórias ou mais conhecidas, mas que não se preocupam em dizer que
“Miss Dollar” pertence a Contos
Fluminenses, “O Alienista” a Papéis
Avulsos, “A Cartomante” a Várias
Histórias, etc. A mim o que interessa é conhecer a obra original na forma
concebida pelo próprio autor. É triste ver que muitas editoras desrespeitam a
intenção do artista. No caso do Machado, muitos descartam as peças teatrais e
crônicas que ele incluía em obras como Páginas
Recolhidas e Relíquias de Casa Velha,
deixando apenas os contos. Isso compromete a integridade do livro que
certamente tinha um propósito com sua estrutura original. Perdoem esta
introdução talvez maçante, mas, após ler Lendas
Brasileiras, precisava confessar minha estima por edições que respeitam as
formas legítimas das obras com seus mínimos detalhes: subtítulos, epígrafes,
dedicatórias, advertências, notas, etc.
Quando
adquiri este livro do Câmara Cascudo, não sabia que se tratava de uma antologia.
Pelo menos a minha edição não traz nenhuma referência na capa, folha de rosto ou
ficha catalográfica. Não que eu pensasse que Câmara Cascudo fosse o “autor” das
lendas, mas achava que ele havia escrito as versões narradas. Só fui perceber
que não era bem assim quando iniciei a leitura, que precisei consultar as
notas. Essas notas, que estão ao final do volume, informam de onde foram
tiradas as versões das lendas. Fiquei meio decepcionado a princípio, mas o
interesse do livro foi mais forte. Ao prosseguir com a leitura, percebi que
algumas lendas eram versões do próprio Câmara Cascudo. Assim, das 21 lendas, 10
são da lavra do “autor/organizador”. As outras 11 lendas foram transcritas de
diversas obras, algumas bem raras, outras de escritores regionalistas famosos
como Simões Lopes Neto e Afonso Arinos. Então, me digam se isso é uma
antologia, porque eu já não sei rsrsrs!
O
certo é que este livro é sensacional e riquíssimo. Quem curte ou estuda
literatura regionalista precisa ler Lendas
Brasileiras. Mesmo com essa inesperada capa antológica, a leitura foi uma
experiência tão agradável e enriquecedora, que me surpreendeu, pois julgava essa
obra como mero passatempo que me serviria para descansar o cérebro do
tumultuado Wuthering Heights. A
leitura também serviu para suprir uma necessidade crescente de literatura
regionalista que sobreveio em mim nos últimos tempos. Trata-se mesmo de uma coletânea
riquíssima que contempla a “mitologia” das cinco regiões brasileiras.
Advirto
aos leitores desavisados que não se assustem com a lenda de abertura que é “A
lenda da Iara”. Trata-se de um texto do século XIX de João Barbosa Rodrigues,
que foi um grande estudioso do folclore indígena. Muita gente abandona esse
livro por causa dessa primeira lenda que é praticamente escrita em tupi rsrsrs.
De fato, é a mais trabalhosa para se ler, por ser repleta de termos indianistas
e expressões regionalistas do Amazonas. É importante frisar que as lendas estão
separadas por região, e que a linguagem delas se adequa a partir dos
regionalismos típicos de cada lugar. Não obstante suas dificuldades, “A lenda
da Iara” é das mais belíssimas do livro, sendo que o que mais me incomodou foi
o fato das notas estarem dispostas ao final do volume. Nada como um prático
rodapé, não acham? O interessante é que sempre encarei “lenda” como um gênero
infantil, em decorrência do estudo sobre elas nas primeiras séries escolares; a
obra de Câmara Cascudo modificou essa minha visão tão equivocada.
Não
vou falar aqui das 21 lendas, mas gostaria de assinalar as que mais gostei e as
que me pareceram menos interessantes. Curiosamente, as que são contadas pelo
próprio Câmara Cascudo são justamente as que não me agradaram tanto, salvo
algumas exceções. “Cobra Norato” é uma delas. Conta o curioso caso da mulher
que pariu duas cobras: uma boa, outra má. A boa é a cobra Norato, que precisa
que alguém realize um ritual para transformá-lo definitivamente em homem. “A
cidade encantada de Jericoacoara”, de Olavo Dantas, conta sobre uma cidade
escondida sob o serrote do farol, onde está encerrada uma princesa. Assim como
em “Cobra Norato”, existe um ritual, desta vez com o fim de libertar a
princesa.
“As
mangas de jasmim de Itamaracá”, de Francisco Augusto Pereira da Costa, refere o
triste caso amoroso de um homem que, após receber uma negativa dos pais de sua
amada, decide ser padre. Anos depois, reencontrando a moça, a mesma acaba
morrendo ao descobrir o destino sacerdotal de seu amado, que sobre o túmulo
dela planta a mangueira de onde nascem as celebradas mangas de jasmim de
Itamaracá. “O frade e a freira”, versão de Câmara Cascudo, conta a famosa lenda
capixaba sobre dois religiosos que se apaixonaram e, como castigo, foram
transformados em duas estátuas de pedra que ficam localizadas à margem do rio
Itapemirim, no Espírito Santo. “O sonho de Paraguassu”, de João da Silva
Campos, remete à figura histórica de Diogo Álvares, o Caramuru, contando sobre
o providencial sonho de sua esposa que ajudou a salvar uma porção de náufragos
e uma imagem da Virgem Maria.
Tive
também a felicidade de reler “O negrinho do pastoreio”, de Simões Lopes Neto,
que já tinha lido em Lendas do Sul,
há bastante tempo. É outra lenda que apresenta dificuldade pela quantidade de
regionalismos, mas que nem por isso deixa de ser interessante. Essa lenda, que
é a mais tradicional do Rio Grande do Sul, conta a história de um menino
escravo que vivia sendo maltratado pelo seu senhor e pelo filho dele. Num dos
violentos castigos, o negrinho acaba morrendo e seu corpo é jogado num
formigueiro. No dia seguinte, ao passar pelo formigueiro, o senhor tem um
grande susto, ao ver o negrinho ressuscitado por obra de Nossa Senhora, a
madrinha de todos os órfãos. O negrinho do pastoreio passa a vagar pelas
florestas como um espírito que vive de ajudar as pessoas a encontrar objetos
perdidos. Nem preciso dizer o quanto amei essa releitura. Finalmente,
“Romãozinho”, em versão de Câmara Cascudo, encerra a coletânea com chave de
ouro, contando a história deste irmão do saci-pererê. Romãozinho é um menino
endiabrado que acaba provocando a morte dos pais por conta de uma calúnia.
Antes de morrer, a mãe o amaldiçoa para que nunca cresça e jamais tenha direito
ao céu ou ao inferno. Assim, ele torna-se um imortal encrenqueiro, sempre com a
mesma aparência, a perturbar todos quanto possa.
Poderia
citar outras tantas lendas agradáveis, uma vez que esse livro é quase 100% perfeito.
Por muito pouco não lhe dei nota máxima e faço questão de deixar isso bem
claro. Como já referi, as lendas contadas pelo próprio Câmara Cascudo me
pareceram as menos interessantes. Não estou dizendo que são ruins, porque não
são mesmo, mas seu estilo narrativo não me agradou tanto quanto o dos demais
folcloristas encerrados nessa coletânea. As lendas “A morte do Zumbi” e “A
serpente emplumada da Lapa”, ambas em versões do idealizador dessa coletânea,
são as mais chatinhas do livro. A primeira conta o suicídio de Zumbi dos
Palmares, fato totalmente desmentido pela História. Senti falta daquele
elemento misterioso que faz o leitor cogitar hipóteses fantasiosas... Quanto à
outra lenda que citei, foi o enredo que me pareceu sem graça rsrsrs e até
indigno de figurar nesse livro tão delicioso.
No
mais, quem tiver oportunidade de ler esta quase-antologia, leia, porque, de
fato, vale a pena mesmo! E eu que só queria um passatempo... rsrsrs!
Avaliação: ★★★★
Daniel Coutinho
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