terça-feira, 1 de abril de 2025

As Aventuras do Sr. Pickwick (The Pickwick Papers), de Charles Dickens - RESENHA #216

Meu primeiro contato com Dickens foi através de duas de suas famosas novelas natalinas, que muito me agradaram quando as li. Essa experiência positiva me deixou ainda mais curioso por conhecer os colossais romances do maior escritor vitoriano, e aqui faço referência mesmo à extensão das obras, em sua maioria calhamaços de 800 páginas.

Seguindo minha preferência pessoal de conhecer as obras de um autor em ordem cronológica, decidi que o primeiro tijolão a ser devorado seria As Aventuras do Sr. Pickwick (1837), romance de estreia de Dickens. Mas, de antemão, previno a todos que desejem conhecer a importante obra do criador de David Copperfield que não sigam pelo mesmo caminho. Falo baseado não apenas na minha experiência pessoal, mas em comentários e resenhas de outros leitores, que acabei consultando após concluir a leitura.

Como é natural a uma obra de estreia, As Aventuras do Sr. Pickwick é possivelmente o romance mais problemático de Charles Dickens. Nele evidentemente já verificamos muitas das qualidades do prosador inglês, que era excelente na caracterização de personagens e nas descrições meticulosas. Mas Dickens, que aplicara com sucesso sua perícia de observador na crônica jornalística, ainda não conhecia com propriedade o território do romance.

É possível que as circunstâncias de publicação do Pickwick justifiquem seus problemas mais graves. E aqui não estou entrando na questão do “romance de folhetim” ou do “romance de entretenimento”. Quem me conhece sabe perfeitamente que sou um apreciador confesso tanto de um quanto do outro, e que não acredito que tal gênero ou tal formato tornarão uma obra obrigatoriamente ruim. As circunstâncias às quais aludo referem-se aos propósitos incertos do que acabou sendo o primeiro romance de Dickens. Muito provavelmente, ao receber o convite para publicar uma obra de fôlego em periódico, o novel escritor iniciou o trabalho sem saber exatamente onde aquilo terminaria.

À primeira vista, a proposta parece ser a criação de uma novela à moda antiga, na qual temos várias pequenas histórias sucessivas com os personagens de sempre. Mas, em determinado momento, tramas maiores começam a ganhar espaço ao longo do livro, aproximando-o mais do romance tradicional, onde as células dramáticas se desenvolvem simultaneamente. A impressão final é que o livro foi concebido quase que completamente à base de improviso, e que o autor ia compondo o que convinha às necessidades do periódico.

Chama bastante atenção a queda de ritmo na segunda metade da obra. É quando fica mais perceptível a intenção do autor em esticar a narrativa, do modo como ocorre até hoje nas telenovelas de boa audiência. O sucesso de Pickwick no jornal exigia que o personagem continuasse protagonizando suas estrepolias, acompanhado sempre de seu criado leal, o impagável Sam Weller.

Sobre o humor em Pickwick, é inegável que funciona bastante, especialmente na primeira metade. As situações embaraçosas, os mal-entendidos, os personagens caricatos tornam os episódios bastante hilários. Há contudo um excesso de pancadaria que lembra o humor pastelão de histórias como as do seriado Chaves.

Outro detalhe que incomoda bastante é a necessidade inexplicável do autor por identificar os personagens durante os diálogos, ainda que esteja mais do que explícito que se trata de uma conversa entre duas pessoas. Isso ocorre tantas vezes, que deixa qualquer leitor irritado. Para exemplificar, logo no início do Capítulo XXII temos claramente uma conversa entre Sam Weller e seu pai. Como se trata de um trecho longo, transcreverei resumidamente apenas as indicações do narrador: “perguntou o sr. Weller ao afetuoso filho/replicou o sr. Weller, o moço/indagou o pai/respondeu o filho/replicou o mais velho dos Wellers/tornou o sr. Samuel/replicou o pai, com um suspiro/continou o sr. Weller/replicou Sammy/disse o sr. Weller.” (págs. 314 e 315). Dickens julgava seus leitores tão burros, que não pudessem identificar as falas de um e de outro, ou só queria completar o número de páginas a serem entregues?

A dispersão da narrativa se evidencia fortemente no fato de que não há um desenvolvimento lógico dos personagens. A lealdade incondicional de Sam Weller para com o amo, por exemplo, não tem uma explicação clara. Os amigos do Sr. Pickwick também não são devidamente aproveitados/desenvolvidos. Dois deles contraem casamentos precipitados na etapa final do livro, e um terceiro praticamente desaparece.

Há uma tentativa de se criar um vilão na figura do Sr. Jingle, mas mesmo ele, que a princípio prometia movimentar a história, acaba tendo um destino estupidamente insosso. Povoam ainda as 800 páginas do Pickwick uma miríade de personagens descartáveis que aparecem/desaparecem/reaparecem magicamente, sendo impossível lembrar de todos eles.

É lamentável que, ao final, tenha ficado com esta horrenda impressão de que As Aventuras do Sr. Pickwick é uma tremenda “encheção de linguiça”. Não acho, contudo, que sua leitura seja uma completa perda de tempo. A primeira metade, como já mencionei, é repleta de bons momentos, sem falar dos contos enxertados que aparecem ocasionalmente e que dão um refresco à narrativa. Uma versão compactada certamente causaria melhor impressão. Porque 800 páginas... Ai, ai, ai! David Copperfield, Nicholas Nickleby, Grandes Esperanças... Será que dou conta?

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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sábado, 15 de fevereiro de 2025

Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira - RESENHA #215

Já conhecia o trabalho da escritora Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) como crítica literária, mas não imaginava a grandeza de sua prosa de ficção. Dentre os muitos títulos publicados pela finada “Coleção Saraiva”, o romance Em Surdina havia figurado num dos primeiros anos. A sinopse sugeria uma narrativa interessante, e eu certamente não poderia deixá-la passar.

Em Surdina (1933) nos apresenta Cecília, uma jovem aparentemente simples, mas que guardava consigo pensamentos profundos sobre a vida. Ao concluir a escola, a expectativa da família pelo seu casamento a deixa desconfortável e reflexiva sobre seus próprios interesses e seu lugar no mundo.

Logo no começo do livro, Cecília rejeita um pretendente. Ela se justifica com a desculpa de que o moço em questão não atendia às suas exigências intelectuais, mas intimamente ela reconhece que simplesmente não está interessada.

O interesse maior de Cecília, nesse ponto de sua vida, é descobrir um sentido para sua existência. Ao passar, um dia, em frente a antiga escola, ela tem um insight que a faz repensar sobre os planos e sonhos da juventude. Ela não vê a irmã mais velha, Heloísa, como um modelo inspirador. Os papéis de esposa e mãe não lhe deslumbram como a tantas outras mulheres.

Um vazio perturbador faz com que ela busque uma ocupação; mas é logo desestimulada pelo pai, Dr. Vieira, que rejeita a ajuda da filha na organização dos papéis relacionados aos seus pacientes. O pai de Cecília também não a encoraja a buscar trabalho, o que, para ele, seria vergonhoso para uma moça de família da classe média.

Desocupada e livre de maiores obrigações, Cecília vê sua vida passar em surdina entre os membros da família, os quais ela observa de perto, analítica. O irmão mais velho, Cláudio, é um homem calculista, cujo maior prazer é especular no mercado financeiro. Os irmãos gêmeos Antônio e João estudam engenharia, mas apenas o primeiro demonstra vocação. João descobre-se um homem de ideias políticas e literárias e, contra a vontade do pai, aspira por ser escritor.

Os demais parentes não são menos interessantes. Tia Marina, que vive com a família, é uma solteirona cética e metódica; e por diversas vezes é apontada como um fantasma do que Cecília poderia se tornar. Os parentes da mãe falecida também são contemplados. A avó materna, viúva, embora muito amorosa com os netos, alimenta uma intriga com o Dr. Vieira. Tia Sinhazinha é uma figura polêmica, perante a família, por ousar deixar o marido que a fazia infeliz.

Assim, a vida de Cecília vai passando entre divertimentos frívolos e cuidados com a família, sobretudo com Baby, a filha mais velha de Heloísa. O aparecimento de Paulo, sócio de Cláudio, no entanto, confere uma nova alegria aos dias da jovem solteira. Paulo e Cecília tornam-se grandes amigos e cultivam uma admiração mútua, mas ela não o vê como um marido em potencial. Paulo é descrito como um homem de poucos atrativos físicos; e, a esse tempo, Cecília demonstra interesse amoroso por um tenente, mas sem ter com este a conexão espiritual compartilhada com o sócio do irmão.

Essa ideia geral que esbocei da substância do livro já deve revelar, em parte, as qualidades inegáveis de Em Surdina. Trata-se de um romance vívido, com tipos incrivelmente reais vivendo suas vidas cheias de erros e acertos, como todos nós. Os acontecimentos se dão de forma natural e espontânea, e tudo na obra parece crível e real.

A autora, em diversos momentos da narrativa, propõe a análise, a reflexão, mas a densidade do texto não apela para rebuscamentos e jogos de palavras desnecessários. A linguagem é sempre limpa e objetiva, como se fosse um propósito de Lúcia promover a compreensão dos dilemas de Cecília. Uma vez que nenhum personagem parece compreendê-la, cabe ao leitor consumar esse entendimento.

Faço apenas uma ressalva quanto à queda de ritmo na segunda metade, especificamente após o episódio da epidemia de gripe. A narrativa nem de longe parece ruim nesses momentos, mas perde um pouco do brilho inicial. Em Surdina, como um todo, é uma obra excelente, embora subestimada em nosso tempo.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 4 de janeiro de 2025

TOP 5 - MELHORES LEITURAS DE 2024!!!

Muitas demandas comprometeram o meu tempo de leitura em 2024; mas, mesmo assim, tive o prazer de conhecer alguns livros maravilhosos que eu não poderia deixar de enaltecer nessa lista já tão conhecida com as melhores leituras do ano. Vamos a ela!

  

# 5º lugar  CORREIO DA ROÇA, de Júlia Lopes de Almeida (3 estrelas)

Todos aqui sabem que D. Júlia já é minha escritora favorita da vida. Em 2023, a melhor leitura do ano foi um livro dela, e seus livros, de modo geral, têm me surpreendido bastante. Este Correio da Roça, por ter uma proposta diferente dos demais, sendo mais didático e menos literário, acabou não agradando tanto. Mas a autora de A Falência, mesmo num livro menor, ainda consegue ser grandiosa. Não fossem os fins específicos do livro, a galeria de personagens deste romance epistolar poderia ter rendido outra narrativa campesina da envergadura de A Família Medeiros. Mesmo assim, Correio da Roça consegue ser singelo e agradável, entregando uma leveza que, em alguns momentos, é extremamente necessária.


# 4º lugar AS FATALIDADES DE DOUS JOVENS, de Teixeira e Sousa (3 estrelas)

Eu quase dei “4 estrelas” a este segundo romance de Teixeira e Sousa, tamanho foi o crescimento demonstrado pelo autor em um breve espaço de tempo. Os primeiros capítulos das Fatalidades são deliciosíssimos e me conquistaram de imediato. O livro segue maravilhoso até mais da primeira metade, mas a parte final, a meu ver, deixou muito a desejar. A conduta impiedosa de Geraldino me pareceu pouco condizente com seu perfil de mocinho romântico. Mas há tanta matéria interessante no romance, além de personagens secundários que roubam a cena diversas vezes, que não estou bem seguro de ter sido justo em minha avaliação.


# 3º lugar  OS ROMANCES DA SEMANA, de Joaquim Manuel de Macedo (4 estrelas)

Há quanto tempo não tínhamos um Dr. Macedinho por aqui, não é mesmo? Eu já estava com saudades, e esta coletânea de contos e novelas foi uma escolha muito acertada, por me mostrar várias facetas de um mesmo ficcionista. Certamente não há nada de extraordinário em nenhuma das narrativas deste livro, mas o estilo de Macedo, que é um excelente contador de histórias, nos cativa de forma tal, que parecemos crianças no colo do vovô. Um livro simplesmente delicioso!


# 2º lugar  ANGÉLICA, de Maria José Dupré (4 estrelas)

Estou amando conhecer a fase final da ficção da autora de Éramos Seis, ao mesmo tempo que lamento estar esgotando uma fonte tão preciosa. Socorro, que só me resta mais um romance! Angélica nos revela uma faceta diferente da romancista, que aqui faz uso do suspense psicológico. Acompanhamos a trajetória da “garotinha ingênua” pelos olhos de Constança, que vê na pequena Angélica uma possibilidade para realizar-se como mãe; mas o tempo acaba trazendo à tona revelações que mudam completamente o rumo dessa história. A modernidade de Angélica, tanto na forma quanto na substância, me fez pensar que este livro precisa ser redescoberto urgentemente pelo leitor contemporâneo.


# 1º lugar  A MORGADINHA DOS CANAVIAIS, de Júlio Dinis (5 estrelas)

Em todos os anos, graças a Deus, vivemos momentos felizes. E posso dizer, com toda certeza, que fui feliz lendo este livro! Quando penso nas leituras do ano passado, lembro imediatamente da Morgadinha; quando penso nos grandes livros que li recentemente, o romance de Júlio Dinis segue sendo lembrado. A Morgadinha dos Canaviais é uma verdadeira obra-prima da literatura portuguesa. É o tipo de livro que por si só já é um acontecimento. Não entendo, de verdade, o motivo de ser tão pouco conhecido. Talvez ainda persista certo preconceito com a literatura romântica, mesmo quando falamos de clássicos. Mas a grandeza da Morgadinha supera qualquer rótulo ou estereótipo de época. É um romance cheio de vida, com tipos muito realistas e episódios bem-humorados. Finalmente, A Morgadinha dos Canaviais é desses livros que, quando concluídos, nos fazem vibrar de contentamento por termos vivido uma experiência incrível.


Daniel Coutinho

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