domingo, 18 de fevereiro de 2024

Angélica, de Maria José Dupré - RESENHA #206

Penúltimo dos romances de Maria José Dupré, Angélica (1955) é mais uma narrativa excelente da autora de Éramos Seis. Fiquei bastante impressionado com Vila Soledade, lido em 2021, e desde então aguardava ansiosamente pelos livros posteriores. Angélica não supera o último romance lido, mas entrega enredo envolvente, ritmo instigante e um drama familiar que flerta com o suspense psicológico.

O livro é sobre um casal de professores, Constança e Norberto, que encontra dificuldades para ter um filho. Constança, que já não é muito jovem, após uma década de tentativas, finalmente fica grávida, mas sua filhinha Liliana acaba falecendo pouco depois de completar o primeiro ano.

Angélica é a filha da cozinheira de uma família rica, cujos patrões também contratam Constança para dar aulas particulares a um garoto. Como Constança precisava de alguém para lhe auxiliar no serviço doméstico, acaba convidando Angélica, pois esta não possuía trabalho fixo. A menina, de apenas quatorze anos, chama logo atenção por sua beleza e boas maneiras.

Angélica, a mãe e o padrasto são europeus fugidos da guerra. Constança, penalizada com os relatos da adolescente, cria uma afeição imediata pela garota. O mesmo se dá com Norberto e, em pouco tempo, Angélica ganha a confiança do casal. Acaba mesmo contando sobre a agressividade do padrasto e de suas más intenções em relação a ela. Uma série de circunstâncias do passado levam a crer que a cozinheira não é a verdadeira mãe da garota. Diante disso, os professores decidem procurar o Juizado de Menores.

Como os depoimentos da “mãe” de Angélica não têm consistência e a mesma não possui nenhum documento comprobatório, o juiz concede a Norberto a tutoria provisória da jovem. O casal de professores fica bastante entusiasmado com a ideia de uma nova filha, e pretende, assim que possível, entrar com um pedido de adoção. Angélica é liberada imediatamente de suas funções domésticas; seu único dever agora é estudar, para dar orgulho a seus futuros pais.

A partir desse ponto do enredo, porém, a autora nos dá ocasionalmente possíveis pistas sobre a verdadeira natureza de Angélica, que é um tipo bastante controverso. Constança é a primeira a notar o quão distintas podem ser as reações e atitudes da garota em diferentes momentos. A notável preferência dela por Norberto, que é sempre mais condescendente, também não passa despercebida à professora que, com o passar do tempo, mantém-se cada vez mais alerta em relação à adolescente.

Esse momento dúbio da narrativa é o mais impressionante do livro. A autora, com bastante sutileza, nunca deixa totalmente claro se Angélica esconde segredos licenciosos ou se Constança, influenciada pelo ciúme, fantasia suspeitas exageradas e descabidas. A professora, de fato, com sua saúde (física e mental) um tanto abalada, não parece uma narradora confiável. E como o que temos é o seu ponto de vista, desconfiamos de suas impressões, tal como ocorre com Bentinho em Dom Casmurro.

Mesmo tendo uma construção interessantíssima, a escrita de Angélica deixa a desejar em várias passagens, sugerindo um texto mais apressado, que assim mesmo está longe de ser ruim. Também senti falta de uma participação maior dos personagens secundários. A trama está sempre muito centrada no triângulo Constança-Norberto-Angélica.

Para quem já conhece o trabalho de Maria José Dupré, Angélica poderá ser uma ótima surpresa, por revelar outras facetas do talento da escritora. O livro também pode funcionar como uma excelente porta de entrada para quem nunca leu nada da autora de Éramos Seis. Angélica é, dessa forma, um livro para grandes públicos. Juntamente com Vila Soledade, merece urgentemente ganhar uma nova edição.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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