sexta-feira, 19 de julho de 2024

A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis - RESENHA #211

Acredito que esperei demasiado tempo para retornar à obra do grande Júlio Dinis, um dos maiores nomes do Romantismo em Portugal, de quem eu já tinha apreciado há muitos anos seu romance mais conhecido: As Pupilas do Senhor Reitor. Mas o reencontro finalmente se deu e não poderia ter sido mais satisfatório.

É lamentável que Joaquim Guilherme Gomes Coelho (verdadeiro nome do autor) tenha falecido ainda tão moço, sendo mesmo surpreendente que tenha escrito uma obra vigorosa como A Morgadinha dos Canaviais (1868) antes dos trinta anos.

Já não me recordo as qualidades literárias d’As Pupilas, o que me impede de estabelecer um paralelo com A Morgadinha. Esta constitui sem dúvida o que eu chamo de “romance completo”: como designo os romances que contemplam todos os elementos essenciais a uma boa narrativa longa.

O enredo tem início quando Henrique de Souzelas, acometido de uma enfermidade peculiar (que hoje chamaríamos de “depressão”), parte para uma longínqua aldeia minhota onde reside sua tia Doroteia. A viagem fora uma recomendação médica e Henrique a realiza muito a contragosto.

Mesmo pouco afeito aos costumes da aldeia, Henrique não demora a apreciar a vida no campo, principalmente após tomar conhecimento com a família do conselheiro Manuel, cujos membros eram ainda seus parentes. Madalena, filha do conselheiro, é quem primeiro chama a atenção de Henrique. Ela é a famosa “morgadinha dos canaviais”, título que lhe foi atribuído após herdar uma propriedade de sua madrinha. No entanto, Cristina, prima da morgadinha, é quem se enamora de Henrique, mesmo este lhe dedicando pouca atenção.

Madalena e Cristina são tipos opostos. Enquanto a primeira é uma mulher impetuosa, sagaz e de língua afiada, a outra é uma jovem tímida e de modos recatados. A Madalena não passam despercebidas as intenções de Henrique, mas lhe desagrada o tom galanteador e presumido do moço da capital, além do quê, seus sentimentos estão mais inclinados a outro personagem.

Augusto é um jovem de grande talento e inteligência, mas modesto ao extremo. Abriu mão de uma herança e de uma carreira na capital para viver uma vida simples de professor de aldeia. Sem família e de baixa posição social, converte seus sentimentos pela morgadinha num culto incondicional, mas a chegada de Henrique desperta nele um ciúme imprevisto.

Para além dessa ciranda de amores, que segue um modelo semelhante ao d’As Pupilas, temos uma interessante galeria de personagens secundários que movimenta bastante o romance. São eles, sobretudo, ferramentas convenientes à crítica política e social desenvolvida pelo autor.

O narrador de Júlio Dinis mostra-se bastante pessoal. Suas observações irônicas e comentários chistosos dão um sabor todo especial à narrativa. É ele quem nos conduz habilidosamente pelos muitos caminhos do livro, sempre trazendo às claras os mais diversos temas, esforçando-se por não perder o interesse do leitor.

Há uma visível preocupação em se manter, mesmo em temas mais graves, o tom de leveza. Quando o autor critica o fanatismo religioso, por exemplo, faz-nos rir com a insatisfação de um marido perante as beatices de sua mulher que, sempre entretida com rezas e confissões, descuida-se do trabalho doméstico. Quando o tema se altera para a politicagem na aldeia, tipos como o Morgado das Perdizes e Mestre Pertunhas rendem talvez alguns dos episódios mais cômicos do romance.

Seria um pecado imperdoável não citar finalmente o personagem que dá um toque de mistério e exotismo à trama. Falo do tio Vicente, um velho curandeiro com fama de feiticeiro, a quem se atribuem qualidades sobrenaturais. O ervanário, como também é designado no livro, é ainda uma espécie de anjo tutelar dos personagens centrais, tendo uma participação relevante em diversos episódios.

Seria inviável comentar aqui todos os pontos que me chamaram atenção em A Morgadinha dos Canaviais. É desses romances ricos de substância e com matéria suficiente para render outras centenas de páginas, não obstante sua já considerável extensão. Encerro por aqui, pois, destacando os ensinamentos e valores morais defendidos na obra, tão necessários à nossa geração e, no entanto, tão pouco difundidos entre nós.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário