Volto ao
grande Camilo com mais uma de suas novelas satíricas, a redescoberta Coração, Cabeça e Estômago (1862), que
nos últimos anos tem sido mais divulgada graças à sua inclusão dentre as
leituras obrigatórias de alguns vestibulares.
Trata-se de
obra que vale principalmente pela agudeza do humor, além dos artifícios já tão
comuns à ficção camiliana. Não obstante a presença de um prosador seguro e
convicto, desgostou-me o pessimismo presente em todo o livro. Definitivamente
esta não é uma leitura para se resgatar a fé na humanidade.
O volume
abre-se com um preâmbulo, técnica muito usual na obra de Camilo, onde o editor
do livro, em conversa com o poeta Faustino Xavier de Novais, confessa-se
depositário dos manuscritos de um amigo comum, Silvestre da Silva, falecido há
seis meses. Estes papéis, organizados em três volumes, acabam sofrendo diversas
intervenções pelo editor, até adquirirem a forma final de que se constitui Coração, Cabeça e Estômago.
Os
manuscritos de Silvestre da Silva tencionam compartilhar uma longa sequência de
desilusões amorosas, cujo final é enganosamente feliz. Como disse, trata-se de
um livro excessivamente pessimista, mas que ganha tons amenos em virtude do bom
humor do prosador, que nos arranca boas risadas da primeira à última página.
Essa
estratégica divisão pela qual Silvestre dispôs seus papéis evidencia três momentos
de sua vida pessoal: juventude, vida adulta e maturidade. No primeiro deles,
tendo as paixões inspiradas pelo “coração”, Silvestre passa por experiências
efêmeras, dessas que todos vivemos na adolescência. A primeira parte do livro,
contudo, encerra-se com dois casos que ganham atenção especial por parte do
narrador.
O primeiro
deles refere-se a Paula, “a mulher que o mundo respeita”. Silvestre, como
tantos outros, acaba apaixonado pela bela donzela que, mesmo comprometida,
alimenta esperanças em vários outros pretendentes, até finalmente decidir-se a
fugir com um deles. Resguardo-me de contar o desfecho desta aventura que é, sem
dúvida, digno da pena de Camilo.
Quanto ao
outro caso especial, arrisco dizer que talvez compreenda o momento mais
interessante de todo o livro. Marcolina, “a mulher que o mundo despreza”,
aparece de maneira fortuita na vida de Silvestre, que logo se interessa por
conhecer sua trágica história, repleta de lances dramáticos que culminam na sua
prostituição. Esta pobre infeliz foi possivelmente o único amor verdadeiro de
nosso autobiógrafo.
Na segunda
parte, Silvestre nos relata suas intenções amorosas regidas pela ‘cabeça”, todas
elas malogradas por circunstâncias adversas, mas cheias de chiste. Na parte
final, de volta aos sítios de seus ascendentes, Silvestre conhece Tomásia: moça
simples, de pouca instrução, trabalhadeira, acima do peso (mas de ótima saúde)
e de muitas prendas domésticas.
Embora
desprovida de maiores atrativos, Tomásia conquista Silvério pelo “estômago”,
fazendo-o mudar de hábitos em todos os aspectos. Nosso protagonista rende-se a
uma vida bucólica, longe das polêmicas da imprensa e do tumulto das grandes
cidades, mas, em se tratando de uma novela satírica do autor d’A Queda dum Anjo, a ironia fala mais
alto e nosso Silvestre termina seus dias como vítima de suas novas inclinações.
Não fossem
as digressões maçantes onde o hermetismo de Camilo ganha mais força, poderia
dizer que este foi o melhor livro que já li do autor. Mesmo considerando as
passagens tediosas e o pessimismo predominante da narrativa, Coração, Cabeça e Estômago mantém-se
como leitura divertida e cujo interesse se preserva até os dias de hoje.
Avaliação: ★★★
Daniel Coutinho
***
Camilo é um poço de criatividade, um ficcionista que ainda não vi igual. Li alguns livros dele na antiga coleção Saraiva, gracas às suas indicações, e meu preferido se tornou: o Romance de um homem rico. Embora gostei muito de Coisas Espantosas.
ResponderExcluirAgora, anseio por ler esse que vc nos indica, cujo título não havia despertado minha curiosidade, confesso.
Tenho enorme admiração pelo Camilo, mas confesso que me dá certa preguiça retornar aos seus incontáveis livros. Ainda não li esses que você citou. Talvez leia "Romance de um Homem Rico" em 2022, quando pretendo me dedicar a um projetinho pessoal de leitura que consiste em ler exclusivamente títulos que saíram pela Coleção Saraiva. Estou com esta ideia há algum tempo e penso que próximo ano vai acontecer hehe. Abraço!
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