Não
sou um leitor de não ficção. Quero dizer com isto que não tenho o costume de
ler obras não literárias: biografia, autoajuda, religião, filosofia, política
(este último gênero então... rsrsrs), etc. Não estou menosprezando ou
desmerecendo esses gêneros; apenas não me interessam. Quando pego uma não
ficção para ler, só pode haver algum forte interesse envolvido, mas ainda fico
com um pé atrás, meio enfadado. Foi com essa postura hesitante que decidi
encarar O Inimigo do Rei, de Lira
Neto. O interesse envolvido foi o desejo de conhecer mais da vida desse gênio
nacional que foi José de Alencar, o patriarca da Literatura Brasileira.
Não
vou falar aqui de meus amores por Alencar, pois quero que este post seja mais breve que os últimos que
tenho escrito; além do que, o assunto renderia matéria para um livro inteiro.
Vou tentar focar (dentro do possível) na biografia do Lira e no que achei dela.
Sensacional!
Sem dúvida, uma das melhores leituras do ano. Isto vindo de uma não ficção,
para mim, é algo assombroso. Fiquei surpreso de verdade e muito satisfeito por
saber que tão deliciosa obra vinha de um cearense como eu e, claro, como
Alencar. Cheguei a pensar que o motivo de tanto agrado seria o simples fato do
livro ser sobre meu escritor favorito, mas logo lembrei que, há algum tempo, li
outra biografia do autor de Iracema: José de Alencar na Literatura Brasileira,
de M. Cavalcanti Proença, e não tive com ela uma experiência tão fascinante
quanto a proporcionada pelo livro do Lira Neto. Fiquei encantado sobretudo com
a riquíssima pesquisa desenvolvida pelo biógrafo, que desenterrou os documentos
mais inacessíveis que se possam imaginar, como as primeiras contribuições
jornalísticas de Alencar, quando o mesmo ainda era estudante de Direito, só
para citar um exemplo. Além de diversos periódicos oitocentistas, é
impressionante o número de obras consultadas, tanto de contemporâneos do
biografado, como de escritores da geração seguinte. Quando concluí a leitura,
senti algo como uma necessidade de parabenizar o autor, apertar-lhe a mão,
agradecê-lo por aquela dedicada pesquisa que resultou em obra de tão bom gosto.
A
experiência que foi ler O Inimigo do Rei
proporcionou-me, além de muito contentamento, algo que vinha desejando há algum
tempo: um reencontro com Alencar e sua fantástica obra. Lira Neto perpassa, uma
por uma, cada obra literária, de Cinco
Minutos a Encarnação, além de
todas as peças teatrais e algumas obras de não ficção. Estava claro o cuidado
que o autor teve em ler, senão toda, grande parte da produção alencarina.
Sempre que relatava o lançamento de algum romance, comédia ou drama, o biógrafo
fazia questão de contar o enredo, muitas vezes revelando o desfecho da
história. Portanto, se você não leu muitas obras do Alencar, prepare-se para
muitos spoilers neste livro! Eu, particularmente, nem considerei como defeito
essas revelações. Entendo O Inimigo do
Rei como um livro destinado aos admiradores do grande romancista, que já
realizaram um contato considerável com sua vasta ficção e que, portanto,
precisam de algo mais. A biografia de Lira Neto é este “algo mais”!
Admirável
também é a postura que o biógrafo assume diante da difícil tarefa de recontar a
história do pirracento, teimoso e malcriado José de Alencar, atributos estes
dados pelos inúmeros desafetos colecionados ao longo de seus 48 anos. Para
falar de um escritor mordaz, sarcástico e inexorável para com seus inimigos,
Lira Neto incorpora em sua linguagem uma espécie de humor ferino que, com
perícia, dá conta de relatar as mais diversas situações, de maneira imparcial.
Seu texto é quase romanceado e constantemente acompanhado de charges e
ilustrações de época que contextualizam os fatos narrados. Esse humor ferino de
que falei é aplicado com mestria até nos títulos e subtítulos de cada capítulo
da obra, fazendo alusão aos métodos que os famosos folhetinistas do século XIX
utilizavam para nomear os episódios de seus romances e novelas.
O
biógrafo mostra-se atento a todas as nuances de Alencar: o estudante, o leitor,
o folhetinista, o romancista, o dramaturgo, o poeta, o advogado, o deputado, o
ministro, o polemista, o crítico literário... Alencar não foi pouca coisa mesmo
rsrsrs É digno de mérito o trabalho realizado nessa biografia que soube abarcar
de forma tão pertinente a curta vida de um homem, cuja importância e
representatividade para a nação brasileira vão além das fantásticas criações
fictícias que idealizou/imortalizou em nossa Literatura.
Nesse
universo de facetas assumidas pelo nosso gênio, a que mais me desagradou foi a
do político. Não que Alencar tenha sido um mau político. O assunto é que não me
encanta. Assim, sempre que Lira Neto concluía uma daquelas polêmicas de tirar o
fôlego, como a d’A Confederação dos
Tamoios, e passava às candidaturas e exercícios políticos de seu
biografado, eu tratava de acelerar a leitura, a fim de chegar logo à recepção
crítica de novas obras, como também novas polêmicas, que não foram poucas. Devo
confessar que, mesmo lendo a contragosto as passagens políticas, divertia-me
involuntariamente diante das querelas com o Duque de Caixas, o Barão de
Cotegipe, o senador Zacarias de Góis, o próprio D. Pedro II, e tantos outros
nomes da política do Brasil Império, época em que conservadores e liberais
faltavam matar-se por seus interesses.
Confesso
que fiquei um tanto decepcionado com algumas atitudes tomadas por Alencar. Não
conhecia essa veia vingativa que possuía e sua postura implacável diante dos
inimigos, chegando a ser um terrível perseguidor em alguns casos: João Caetano
e Manuel Antônio da Fonseca Costa que o digam! Tudo bem que não temos uma visão
real das circunstâncias em que se deram tais ocorrências, mas mesmo assim, fica
evidenciado um caráter insurgente e quase imoderado. Para responder às críticas
literárias, Alencar não era menos perspicaz; assim, ele não deixou sem resposta
todos que em vão atacaram sua obra, e não foram poucos: Franklin Távora, Feliciano
de Castilho, Pinheiro Chagas, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco (este último,
movido mais por despeito que por entendimento de crítica), e tantos outros que,
mais tarde, quase que na totalidade, acabaram por reconhecer o valor da obra
alencarina. Machado de Assis, seu admirador confesso, nunca duvidou que a obra
de seu mestre passaria à posteridade.
Aliás,
essa era a grande preocupação dos anos finais de Alencar: passar à posteridade.
Uma viagem que fizera a Europa, sobretudo, deixou-o muito desestimulado com
relação ao destino que teriam seus livros. Alencar sentiu-se deslocado naquele
mundo moderno e futurista que achara em Londres e Paris, tão diferente daquilo
que infundira no pensamento a partir da leitura dos autores europeus. O contato
com os novos estilos cultivados nos mais diversos campos da arte fizeram com
que se sentisse ultrapassado e anacrônico. A viagem que realizara por motivo de
saúde ainda mais agravara sua organização física, já tão fragilizada pela
tuberculose. Quase fui às lágrimas quando Lira Neto contou: “Em vez da cura,
encontrara na Europa uma visão antecipada do futuro. Sofrera profundamente ao
constatar que lá, no amanhã, talvez não houvesse mesmo um lugar reservado para
ele e suas antigalhas literárias.” (pág. 372). Compartilhei daquela dor,
imaginando aquele homem que dedicara tanto tempo de sua vida às Letras pátrias,
temendo ficar esquecido no tempo, nos anais, como as velhas crônicas históricas
que tanto lera na juventude.
Hoje
sabemos que, no final de tudo, Machado foi quem teve razão. Alencar, atualmente
em domínio público, continua sendo editado por várias editoras, além de já ter
sido traduzido para vários idiomas e estar sendo cada vez mais redescoberto
pela crítica contemporânea. Quase todos os seus romances ainda estão no
catálogo de várias editoras e, portanto, nas livrarias. Sua produção teatral,
salvo O Demônio Familiar, é que
continua injustamente esquecida, mas alguns recentes investimentos da editora
Martins Fontes têm sido notáveis ao relançar peças como As Asas de um Anjo, Mãe e
O Jesuíta. Preciso confessar que sou
fã do Alencar dramaturgo, tanto quanto do romancista, e que já li todas as nove
peças.
Finalmente,
todo fã de José de Alencar precisa ler O
Inimigo do Rei, que é para o século XXI, o que José de Alencar e sua Época, de R. Magalhães Júnior, foi para o
século XX. A propósito, preciso ler essa outra biografia que, imagino, tenha
sido uma das fontes mais essenciais na construção da obra do Lira Neto. Fazer o
quê? Amor demais por Alencar!!!
Avaliação: ★★★★★
Daniel Coutinho
P.S.:
Disponibilizei para os apreciadores da obra de Alencar um conto raro, único que
ele publicou no gênero, intitulado Lembra-te
de Mim. Saiba mais clicando AQUI!
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