A Missão é uma coletânea de
novelas do português Ferreira de Castro, autor bastante citado quando se fala
em Neorrealismo. Publicado em 1954, A
Missão reúne três narrativas que, embora designadas como “novelas”, são na
verdade: 1 novela (A Missão); 1 romance (A Experiência) e 1 conto (O Senhor dos
Navegantes). Trata-se de um conjunto fabuloso e admirável. Após concluir a
leitura, senti-me saturado de literatura. Foram tantas impressões, tantas
informações, tantas sensações... Devo confessar que esse livro mexeu comigo bem
mais do que eu previra, provocando um sem número de diferentes emoções ao longo
da leitura, o que foi uma grande surpresa, por se tratar de um livro moderno.
Achei simplesmente fabuloso e arrebatador. Não foi uma leitura fácil. A
dificuldade vai além da linguagem do autor, que é bastante complexa; está
especialmente em acompanhar o ritmo do Ferreira de Castro, com todos os seus
artifícios e recursos expressivos tão fascinantes. Parecia que estava tomando
uma bebida forte demais; não aguentava consumir muito. Toda vez que pegava o
livro, demorava um pouco até me habituar ao ritmo do autor, como se fizesse um
mergulho e precisasse de tempo para me habituar àquelas águas. É complicado
explicar minha reação diante dessa obra, porque ora ela me enternecia, ora me
revoltava profundamente. Por diversas vezes, senti-me pequeno diante de uma
onda gigantesca, incapaz de conter as furiosas vagas, consciente de que deixei
passar mais informações do que eu mesmo acredito. Por outro lado, inspirei-me.
Eis uma leitura que me suscitou diversas ideias, me fez pensar em tantas
questões, além de me provocar impressões extasiantes. Deu até vontade de
escrever rsrsrs.
Cabe
aqui confessar que todo esse entusiasmo expresso se deve ao romance “A
Experiência”, segunda narrativa do livro. “A Missão” e “O Senhor dos
Navegantes” são formidáveis; mas “A Experiência” é simplesmente inefável.
“A
Missão” é uma novela que trata de autoconsciência. Mounier pertence a uma ordem
de padres missionários, mas não se sente confortável com a condição de
celibatário, dada a dificuldade de refrear seus desejos carnais, os quais julga
bastante naturais. Esse desconfortável conflito interior acende escrúpulos em
sua mente, os quais entendo como uma reação expiatória ou uma necessidade de
desculpar-se com a própria consciência. Ao ver que o Superior mandou pintar em
letras garrafais a palavra MISSÃO no teto do edifício, foi reclamar com ele,
alegando que tal atitude poderia pôr em risco a vida de centenas de inocentes.
O caso é que o edifício missionário foi construído ao mesmo tempo, e com igual
estrutura, que um convento de freiras, que nunca chegou a ser convento, pois
fora transformado em fábrica. Vale lembrar que a narrativa se passa numa aldeia
francesa, no período da Segunda Guerra Mundial. O receio de Mounier é que os
alemães intentem explodir a fábrica que, a seu ver, ficaria mais protegida por
conta da circunstância de que, vista de cima, a mesma é exatamente igual ao
edifício missionário. A pintura identificaria muito facilmente em qual dos dois
prédios funcionava a fábrica, onde trabalhavam centenas de operários,
responsáveis pelo sustento das muitas famílias daquela aldeia. O Superior fica
intrigado com as colocações de Mounier; decide fazer uma assembleia com todos
os padres dali, para saber as opiniões deles. A situação se complica quando
fica visível a falta de consenso entre os religiosos, pois muitos temem o
bombardeamento da missão. O debate entre os padres através dos argumentos
desenvolvidos é o que torna interessante essa narrativa. O fato do Superior,
tal como Mounier, tender mais para a proteção da fábrica por uma questão de
expiação de antigos pecados, revela o espírito crítico do autor, propondo a
questão: “as pessoas fazem o bem por se compadecerem do próximo ou para se
sentirem melhor consigo mesmas?” O que me incomodou mesmo foi o desfecho, que,
é claro, não vou contar, mas que posso dizer: foi decepcionante. A linguagem do
autor, por outro lado, faz cócegas no cérebro, especialmente nas comparações
poéticas que até me lembraram um pouco José de Alencar.
Passemos
agora à segunda narrativa, minha preferida, que é o romance “A Experiência”. A
narrativa é dividida em 3 partes: Ele; Ela; Todos Eles. A primeira parte,
“Ele”, traz capítulos que narram os “dias” de Januário na prisão. Cada capítulo
designa um “dia”, com exceção do primeiro, que narra “a entrada” de Januário no
presídio. O autor começa por contar as emoções provocadas por aquele ambiente
que, anos antes, fora um asilo de crianças órfãs, onde o próprio Januário
passara a infância. Ele começa a recordar os principais acontecimentos daquele
bonito período de sua vida, contados em retalhos para seus companheiros de
cela: Palhetas, Malafaia e António Joaquim, a quem todos chamam “O Sábio”. O
texto é geralmente escrito em duas camadas, de modo que o autor alterna o foco
da narrativa insistentemente, deixando o leitor, muitas vezes, impaciente pela
continuação do enredo principal. O autor também reveza a função de narrar. Ora
o próprio Januário está a contar os fatos, ora temos um narrador em 3ª pessoa a
complementar a narração. Esses recursos não se dão através de digressões, uma
vez que o autor não se detém por largo tempo nas interrupções que faz. É mais
uma questão de ritmo, tornando o texto quase uma prosa poética. Januário conta
do tempo que passou no asilo e de seus namoricos com Clarinda, outra órfã.
Quando o asilo fecha as portas, por falta de recursos, as crianças ficam
desamparadas. Januário é adotado pelo Sr. Carrazedas, um velho tabelião.
Clarinda vai para a casa de dona Ludovina, uma viúva que era vizinha do filho
do Sr. Carrazedas. Januário conta da condição de criado que tinha no seu novo
lar, como dos trabalhos excessivos que lhe eram atribuídos pela senhora
Germana, governanta da casa.
Em
“Ela”, segunda parte do romance, temos os mesmos moldes e recursos utilizados
em “Ele”, inclusive a narrativa em duas camadas. Desta vez, é Clarinda, agora
no prostíbulo de dona Fortunata, que vai contar às companheiras “da vida” suas
desventuras após o fechamento do asilo. Essas companheiras são: Cesária, Pilu,
Natália e Luísa. O relacionamento entre as “moças” não é tão pacífico quanto o
de Januário e seus colegas de cela, embora eles também tenham discutido algumas
vezes. Os capítulos de “Ela” são designados por “tardes”. Não obstante as
discussões, Clarinda conta do tempo que viveu em casa de dona Ludovina e de
como se apaixonara por Armando, afilhado da viúva. Percebam como “Ela” e “Ele”
se casam perfeitamente, contribuindo para a excelente constituição do romance,
que é todo muito bem calculado. Há um momento em que finalmente Januário e
Clarinda se encontram depois de padecerem nas casas de seus “benfeitores”,
sendo que esse encontro ocorre antes dele ser preso e dela entrar para o
prostíbulo. Em “Todos Eles” finalmente se explica a prisão de Januário, além de
termos os desdobramentos finais da trama. Os capítulos são designados por
“dias” e “tardes” e o processo da construção narrativa em duas camadas
persiste, revezando o tão ansiado julgamento de Januário com a história do
asilo que virou presídio, o que esclarecerá a razão do título “A Experiência”.
O final, assim como em “A Missão”, não me agradou muito, mas por motivos
diferentes. Numa das cenas finais, o narrador sugere ou dá a entender algo que
revolta o leitor. Em “Todos Eles” fica bastante evidenciada a intenção por
detrás do enredo, a crítica social realizada de maneira bastante pertinente,
discreta e gritante ao mesmo tempo. E acreditem: tudo o que contei é apenas a
superfície, a parte mais palpável do romance, pois o mesmo compreende matéria
suficiente para uma tese de doutorado rsrsrs. Só a forma textual daria um
excelente estudo.
Enfim,
temos “O Senhor dos Navegantes”, que não é menos pretensioso que seus
antecessores. Um embate do homem com o próprio Deus é a proposta do conto.
Nele, o narrador conta de quando subiu a colina para chegar à capela do Senhor
dos Navegantes, onde os pescadores devotos agradeciam os livramentos divinos em
alto mar. Lá, ele encontra um estranho que, pela conversa, sugere ser Deus. O
estranho começa a reflexionar uma porção de assuntos, propondo a ideia de que o
ser humano precisa continuar/aperfeiçoar a obra começada por Deus. Embora
aparentemente herético, o conto não visa questionar a existência divina; antes,
busca criticar a forma como as pessoas entendem Deus, achando que podem
agradá-lo com oferendas, votos e esforços que poderiam ser melhor empregados na
luta pelo bem comum.
No
mais, tenho certeza de que deixei passar muita coisa dessa obra tão densa e tão
rica. Deve-se levar em conta que foi uma das últimas publicações de seu autor
que nela soube desenvolver com muito acerto toda sua maturidade literária. Não
se trata de um livro para qualquer ocasião, muito menos para qualquer leitor. É
indubitavelmente uma leitura transformadora e prova cabal de que a Literatura é
capaz de proporcionar experiências inacreditáveis.
Avaliação: ★★★★
Daniel Coutinho
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