sábado, 15 de fevereiro de 2025

Em Surdina, de Lúcia Miguel Pereira - RESENHA #215

Já conhecia o trabalho da escritora Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) como crítica literária, mas não imaginava a grandeza de sua prosa de ficção. Dentre os muitos títulos publicados pela finada “Coleção Saraiva”, o romance Em Surdina havia figurado num dos primeiros anos. A sinopse sugeria uma narrativa interessante, e eu certamente não poderia deixá-la passar.

Em Surdina (1933) nos apresenta Cecília, uma jovem aparentemente simples, mas que guardava consigo pensamentos profundos sobre a vida. Ao concluir a escola, a expectativa da família pelo seu casamento a deixa desconfortável e reflexiva sobre seus próprios interesses e seu lugar no mundo.

Logo no começo do livro, Cecília rejeita um pretendente. Ela se justifica com a desculpa de que o moço em questão não atendia às suas exigências intelectuais, mas intimamente ela reconhece que simplesmente não está interessada.

O interesse maior de Cecília, nesse ponto de sua vida, é descobrir um sentido para sua existência. Ao passar, um dia, em frente a antiga escola, ela tem um insight que a faz repensar sobre os planos e sonhos da juventude. Ela não vê a irmã mais velha, Heloísa, como um modelo inspirador. Os papéis de esposa e mãe não lhe deslumbram como a tantas outras mulheres.

Um vazio perturbador faz com que ela busque uma ocupação; mas é logo desestimulada pelo pai, Dr. Vieira, que rejeita a ajuda da filha na organização dos papéis relacionados aos seus pacientes. O pai de Cecília também não a encoraja a buscar trabalho, o que, para ele, seria vergonhoso para uma moça de família da classe média.

Desocupada e livre de maiores obrigações, Cecília vê sua vida passar em surdina entre os membros da família, os quais ela observa de perto, analítica. O irmão mais velho, Cláudio, é um homem calculista, cujo maior prazer é especular no mercado financeiro. Os irmãos gêmeos Antônio e João estudam engenharia, mas apenas o primeiro demonstra vocação. João descobre-se um homem de ideias políticas e literárias e, contra a vontade do pai, aspira por ser escritor.

Os demais parentes não são menos interessantes. Tia Marina, que vive com a família, é uma solteirona cética e metódica; e por diversas vezes é apontada como um fantasma do que Cecília poderia se tornar. Os parentes da mãe falecida também são contemplados. A avó materna, viúva, embora muito amorosa com os netos, alimenta uma intriga com o Dr. Vieira. Tia Sinhazinha é uma figura polêmica, perante a família, por ousar deixar o marido que a fazia infeliz.

Assim, a vida de Cecília vai passando entre divertimentos frívolos e cuidados com a família, sobretudo com Baby, a filha mais velha de Heloísa. O aparecimento de Paulo, sócio de Cláudio, no entanto, confere uma nova alegria aos dias da jovem solteira. Paulo e Cecília tornam-se grandes amigos e cultivam uma admiração mútua, mas ela não o vê como um marido em potencial. Paulo é descrito como um homem de poucos atrativos físicos; e, a esse tempo, Cecília demonstra interesse amoroso por um tenente, mas sem ter com este a conexão espiritual compartilhada com o sócio do irmão.

Essa ideia geral que esbocei da substância do livro já deve revelar, em parte, as qualidades inegáveis de Em Surdina. Trata-se de um romance vívido, com tipos incrivelmente reais vivendo suas vidas cheias de erros e acertos, como todos nós. Os acontecimentos se dão de forma natural e espontânea, e tudo na obra parece crível e real.

A autora, em diversos momentos da narrativa, propõe a análise, a reflexão, mas a densidade do texto não apela para rebuscamentos e jogos de palavras desnecessários. A linguagem é sempre limpa e objetiva, como se fosse um propósito de Lúcia promover a compreensão dos dilemas de Cecília. Uma vez que nenhum personagem parece compreendê-la, cabe ao leitor consumar esse entendimento.

Faço apenas uma ressalva quanto à queda de ritmo na segunda metade, especificamente após o episódio da epidemia de gripe. A narrativa nem de longe parece ruim nesses momentos, mas perde um pouco do brilho inicial. Em Surdina, como um todo, é uma obra excelente, embora subestimada em nosso tempo.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 4 de janeiro de 2025

TOP 5 - MELHORES LEITURAS DE 2024!!!

Muitas demandas comprometeram o meu tempo de leitura em 2024; mas, mesmo assim, tive o prazer de conhecer alguns livros maravilhosos que eu não poderia deixar de enaltecer nessa lista já tão conhecida com as melhores leituras do ano. Vamos a ela!

  

# 5º lugar  CORREIO DA ROÇA, de Júlia Lopes de Almeida (3 estrelas)

Todos aqui sabem que D. Júlia já é minha escritora favorita da vida. Em 2023, a melhor leitura do ano foi um livro dela, e seus livros, de modo geral, têm me surpreendido bastante. Este Correio da Roça, por ter uma proposta diferente dos demais, sendo mais didático e menos literário, acabou não agradando tanto. Mas a autora de A Falência, mesmo num livro menor, ainda consegue ser grandiosa. Não fossem os fins específicos do livro, a galeria de personagens deste romance epistolar poderia ter rendido outra narrativa campesina da envergadura de A Família Medeiros. Mesmo assim, Correio da Roça consegue ser singelo e agradável, entregando uma leveza que, em alguns momentos, é extremamente necessária.


# 4º lugar AS FATALIDADES DE DOUS JOVENS, de Teixeira e Sousa (3 estrelas)

Eu quase dei “4 estrelas” a este segundo romance de Teixeira e Sousa, tamanho foi o crescimento demonstrado pelo autor em um breve espaço de tempo. Os primeiros capítulos das Fatalidades são deliciosíssimos e me conquistaram de imediato. O livro segue maravilhoso até mais da primeira metade, mas a parte final, a meu ver, deixou muito a desejar. A conduta impiedosa de Geraldino me pareceu pouco condizente com seu perfil de mocinho romântico. Mas há tanta matéria interessante no romance, além de personagens secundários que roubam a cena diversas vezes, que não estou bem seguro de ter sido justo em minha avaliação.


# 3º lugar  OS ROMANCES DA SEMANA, de Joaquim Manuel de Macedo (4 estrelas)

Há quanto tempo não tínhamos um Dr. Macedinho por aqui, não é mesmo? Eu já estava com saudades, e esta coletânea de contos e novelas foi uma escolha muito acertada, por me mostrar várias facetas de um mesmo ficcionista. Certamente não há nada de extraordinário em nenhuma das narrativas deste livro, mas o estilo de Macedo, que é um excelente contador de histórias, nos cativa de forma tal, que parecemos crianças no colo do vovô. Um livro simplesmente delicioso!


# 2º lugar  ANGÉLICA, de Maria José Dupré (4 estrelas)

Estou amando conhecer a fase final da ficção da autora de Éramos Seis, ao mesmo tempo que lamento estar esgotando uma fonte tão preciosa. Socorro, que só me resta mais um romance! Angélica nos revela uma faceta diferente da romancista, que aqui faz uso do suspense psicológico. Acompanhamos a trajetória da “garotinha ingênua” pelos olhos de Constança, que vê na pequena Angélica uma possibilidade para realizar-se como mãe; mas o tempo acaba trazendo à tona revelações que mudam completamente o rumo dessa história. A modernidade de Angélica, tanto na forma quanto na substância, me fez pensar que este livro precisa ser redescoberto urgentemente pelo leitor contemporâneo.


# 1º lugar  A MORGADINHA DOS CANAVIAIS, de Júlio Dinis (5 estrelas)

Em todos os anos, graças a Deus, vivemos momentos felizes. E posso dizer, com toda certeza, que fui feliz lendo este livro! Quando penso nas leituras do ano passado, lembro imediatamente da Morgadinha; quando penso nos grandes livros que li recentemente, o romance de Júlio Dinis segue sendo lembrado. A Morgadinha dos Canaviais é uma verdadeira obra-prima da literatura portuguesa. É o tipo de livro que por si só já é um acontecimento. Não entendo, de verdade, o motivo de ser tão pouco conhecido. Talvez ainda persista certo preconceito com a literatura romântica, mesmo quando falamos de clássicos. Mas a grandeza da Morgadinha supera qualquer rótulo ou estereótipo de época. É um romance cheio de vida, com tipos muito realistas e episódios bem-humorados. Finalmente, A Morgadinha dos Canaviais é desses livros que, quando concluídos, nos fazem vibrar de contentamento por termos vivido uma experiência incrível.


Daniel Coutinho

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domingo, 15 de dezembro de 2024

Correio da Roça, de Júlia Lopes de Almeida - RESENHA #214

Correio da Roça é um caso à parte na obra romanesca de Júlia Lopes de Almeida. Publicado inicialmente em folhetins d’O País entre 1909 e 1910, e posteriormente em livro (1913), a obra funciona como um romance didático, cujos fins estavam bem delineados desde antes de sua composição.

D. Júlia pretendia instruir seu público, predominantemente feminino, quanto aos benefícios advindos do cultivo da terra e da criação de animais. Para tanto, ela se utiliza de um romance epistolar que explora uma situação bastante conveniente às suas intenções: Maria, após a morte do marido, vê-se em apertos financeiros, sendo obrigada a partir com as quatro filhas para uma fazenda na serra, única propriedade que lhe restara.

É a partir desse contexto que se inicia uma assídua correspondência, primeiramente entre Maria e Fernanda, uma amiga da capital, mas que logo depois envolve outros personagens. Maria lamenta-se com a amiga, relatando a vida tediosa na serra, como também a insatisfação de suas filhas, meninas instruídas que ficavam, portanto, impossibilitadas de fazerem bom uso de seus conhecimentos variados.

Fernanda, de sua parte, surpreende Maria por enxergar a situação sob outra perspectiva; a seu ver, todo o conhecimento das quatro filhas da amiga poderia ser de grande utilidade perante aquelas novas circunstâncias. Fernanda enumera várias possibilidades de ocupações, que vão desde o cultivo de violetas até a criação de novas estradas. Suas cartas são enriquecidas com informações que compreendem experiências do mundo todo, o que sugere claramente ser esta personagem um alter ego de D. Júlia.

As sugestões de Fernanda causam certo estranhamento a princípio, mas, quando aplicadas, elas revelam resultados inacreditáveis. Cecília, Cordélia, Joaninha e Clara dedicam-se a diferentes tarefas, que contemplam a educação dos filhos dos colonos, o cultivo de flores, a criação de um pomar e até mesmo a restauração de uma segunda fazenda menor, que Maria herdara do pai.

As atividades das meninas inevitavelmente as inserem na correspondência e, logo, outros personagens também tomam parte nela. É visível a preocupação da autora em não permitir que o livro se torne um manual sobre a vida no campo. Embora boa parte do texto se concentre nas obras de Maria e suas filhas, outros acontecimentos mais romanescos favorecem o ritmo da narrativa.

Correio da Roça, como esperado, causou um impacto bastante positivo, sendo reeditado pelo menos mais cinco vezes até o início da década de 30. Com a publicação de novos livros, mais direcionados e mais completos quanto ao tema, o romancete epistolar de D. Júlia acabou ficando ultrapassado, e talvez que fosse inteiramente esquecido, não fossem os aspectos literários que o conservaram.

Com ser um romance didático, Correio da Roça certamente não é livro para todos. Não é, portanto, a obra certa para quem deseja conhecer a ficção da autora de A Falência. Mas os apreciadores veteranos como eu acharão nas páginas desse livro o delicioso encanto, cuja fórmula D. Júlia conhecia tão bem.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Os Romances da Semana, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #213

Macedo não foi um grande cultor das narrativas breves, mas chegou a publicar uns poucos contos e novelas, boa parte deles publicada na coletânea Os Romances da Semana (1861), cujos textos saíram anteriormente no periódico A Semana.

O volume abre com uma carta “Aos leitores”, na qual Macedo justifica a ligeireza com que foram concebidos aqueles trabalhos, totalmente despretensiosos e que estariam fadados ao esquecimento total, não fosse a ideia do autor de “ajuntar-lhes os restos para guardá-los em uma urna”. E, podemos dizer, que bom que lhe ocorrera tal ideia!

Os Romances da Semana trazem um conjunto delicioso de narrativas que, se não excelentes, são no mínimo agradáveis para passar o tempo. À exceção da última história, todas as outras são alegres e bem-humoradas, daquelas que combinam perfeitamente com um fim de tarde. Sendo apenas seis narrativas ao todo, comentarei cada uma individualmente.

“A bolsa de seda” é uma historinha ingênua e previsível, com um tom quase infantil. Não é das minhas preferidas do conjunto, mas é o que alguns leitores chamariam de “história fofa”. Após sonhar com o anjo da caridade em forma de moça, um jovem cavalheiro acredita encontrá-la casualmente na rua e decide, portanto, segui-la. Percebendo que a dama misteriosa estava de fato realizando obras de caridade, o jovem tenta descobrir sua identidade a partir de uma bolsa de seda que a moça carregava, uma vez que seu rosto estava sempre encoberto por um véu.

“O fim do mundo”, a despeito de seus ares de ficção científica, está mais para uma sátira político-social. Macedo fundamenta-se na crença popular de que um terrível cataclismo, provocado por um cometa que passaria pela Terra em 1856, destruiria o mundo inteiro. Longe de ser uma história de horror, “O fim do mundo” é das mais engraçadas da coletânea, tendo sido ainda mais para os contemporâneos de Macedo, pois o texto cita diversos nomes reais, como José Maria dos Reis, Paula Brito, Emílio Adet, dentre outros nomes conhecidos da época.

“O romance de uma velha” vem a ser o primeiro ponto alto do livro. É uma história divertidíssima onde Clemência, moça inexperiente, receberá uma lição um tanto amarga de sua velha tia, D. Violante, que mostrará à sobrinha o poder e influência do dinheiro sobre os homens. De fato, a respeitável anciã, que enriquecera em idade já avançada, atrai para si todos os pretendentes de Clemência, após divulgar-se que sua fortuna orçava pelos trezentos contos de réis.

“Uma paixão romântica” é outra maravilha do compilado. Talvez muitos leitores não concordem comigo, mas todo mundo tem os seus clichês favoritos, e um dos meus é aquele do rapaz que, depois de certo tempo ausente, retorna ao lar paterno onde acaba vivendo uma bela história de amor. Aqui a narrativa é tão deliciosamente trabalhada, que poderia render um romance completo. A parte final, contudo, traz um desfecho algo teatral que, a meu ver, não encaixa tão bem com o ritmo criado anteriormente; mas nada que estrague esta que talvez seja minha narrativa favorita do conjunto.

“Inocêncio” rivaliza com “Uma paixão romântica” o meu favoritismo. É sobre um jovem, como o próprio nome sugere, demasiadamente inocente. Inocêncio é o tipo do poeta sonhador que acredita que o mundo é um lar maravilhoso habitado por anjos que são a personificação da bondade, da nobreza e da honra. Seu padrinho, Geraldo-Risota, um tipo interessantíssimo cujo único consolo na vida é rir-se de tudo quanto é bom e ruim, tentará mostrar ao ingênuo Inocêncio que anjos podem não ser tão belos quanto se pintam.

Sempre me perguntei por que todos os livros que já li do doutor Macedinho eram alegres, felizes e bem-humorados. “O veneno das flores”, que encerra Os Romances da Semana, trouxe finalmente a resposta. Macedo não tinha boa mão com histórias tristes. É visível o esforço dele nesta última narrativa, sobretudo pela considerável extensão em relação às outras. Aqui ele recorre ao velho clichê da garota que é seduzida e abandonada pelo namorado, tendo um desfecho melodramático e lacrimejante. Ainda não li toda a obra de Joaquim Manuel de Macedo; portanto, não saberia dizer se ele publicou outras histórias tristes mais bem realizadas do que “O veneno das flores”. A saber, hem?

Não venho aqui dizer que Os Romances da Semana é um livro essencial e dos melhores que já li. É um bom livro, sem dúvida! Um passatempo agradável que certamente não será uma perda de tempo. Como é comum às coletâneas de contos e novelas, há histórias e histórias. E garanto que será um prazer descobrir qual será a sua.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 10 de agosto de 2024

Aguapés Flutuam na Ribeira, de João de Sousa Ferraz - RESENHA #212

O reino da Literatura é habitado por vários espécimens: temos escritores, leitores, leitores-escritores, escritores-não-leitores (sim, eles existem!), dentre muitos outros. Mas um tipo que sempre me chamou bastante atenção é o “aspirante a escritor” e, vez por outra, acabo me deparando com algum deles.

Todas as pessoas estão capacitadas para a leitura e a escrita, embora muitas não explorem essas habilidades; havendo o desejo de desenvolvê-las, um sujeito pode estudar, consultar manuais, fazer cursos, etc., que se tornará possivelmente um ótimo redator: estará habilitado para a notícia, para a coluna de fofoca e para publicar livros que trazem títulos como “12 Regras para Alguma Coisa”.

Se o sujeito, porém, é um “aspirante a escritor de literatura”, o caso é mais complexo. Isto porque os poetas, ficcionistas, dramaturgos e artistas em geral já nascem com a centelha da arte crepitando nos miolos. É quase como uma condição não diagnosticada pela ciência. Na falta desta centelha, resta ao sujeito arriscar-se num território desconhecido, contando unicamente com sua boa vontade e talvez com o sonho ou ambição de tornar-se, por exemplo, um romancista. Daí é que surgem livros como Aguapés Flutuam na Ribeira (1969), do paulista João de Sousa Ferraz (1903-1988).

O título é dos mais poéticos, sem dúvida, sendo um excelente chamariz para leitores como eu. Desejando ter uma ideia do livro, busquei por uma sinopse, mas nada encontrei, nem mesmo nas orelhas do meu exemplar. Parecia que ninguém no mundo havia lido tal obra. Mas como isso nunca foi um empecilho para mim, fui descobrir do que se tratava.

Foi com prazer que li o primeiro capítulo de Aguapés Flutuam na Ribeira. Estava diante de um romance regionalista, gênero pelo qual sou apaixonado. Mas, logo nos capítulos seguintes, percebi que algo ali estava errado. Cauteloso, pensei: “Paciência, que, desses quinhentos personagens, uma dezena ganhará brevemente um desenvolvimento lógico na ‘trama’!”. O caso é que não houve trama nem desenvolvimento, mas sim outros quinhentos personagens.

Todo mundo já ouviu os pais, os tios ou os avós entretidos numa conversa longa, na qual citam meio mundo e uma sequência interminável de fatos desconectados. Aguapés Flutuam na Ribeira seria a transcrição um tanto floreada de uma dessas conversas. O livro não tem enredo nem protagonistas definidos, embora o autor gaste mais linhas com certa dúzia de personagens.

O cenário escolhido é Iporanga, cidadezinha do interior paulista situada à margem do rio Ribeira de Iguape. Dentre os personagens mais citados, temos o coronel Quinca Leme, chefe político na localidade que, logo no início do livro, apropria-se do sítio que pertencia a um seu antigo devedor, antecipando-se aos Roque, família influente que rivalizava com os Leme o poder político.

A pista de que o romance se concentraria na disputa pelo sítio Barra dos Pilões é enganosa. Os Roque reagem pacificamente. Os capítulos seguintes apresentam simplesmente a descrição dos tipos que habitam Iporanga, como seus respectivos costumes. O autor retorna aleatoriamente a este ou àquele personagem, mas sem nunca deixar de trazer diversos figurantes para a cena.

É possível reconhecer algumas tentativas de enredo ou desenvolvimento de personagens. O professor Eurípedes Canabrava, por exemplo, é um recém-chegado que logo se interessa por Leninha, neta de Quinca Leme. O livro, porém, não traz um único diálogo sequer que desenvolva tal relação, que mais parece um namoro infantil, cheio de joguinhos sobre quem está mais interessado.

O que preenche de fato as páginas de Aguapés são as trivialidades do cotidiano no interior: um pai que vai à escola reclamar porque o filho foi maltratado, funcionários públicos entretidos em jogos durante o expediente, a expectativa dos moradores pela chegada do correio, os fandangos noturnos em casas de reputação duvidosa, os embarques e desembarques na Ribeira, os festejos religiosos tradicionais, dentre outros episódios do gênero.

O que vi de positivo, contudo, nesta tentativa de romance é o olhar sensível do autor para com o cenário. Há uma paixão implícita nas descrições mais corriqueiras da obra, seja descrevendo o telhado da igreja matriz ou as dezenas de canoas que colorem a Ribeira de Iguape. Os registros de costumes e de linguagem também merecem elogio; mas a ausência de trama e de personagens bem desenvolvidos tornam a leitura arrastada e pouco fluida.

Jamais saberemos as intenções reais do autor de Aguapés Flutuam na Ribeira. Talvez ele fizesse o livro mais para si mesmo, na tentativa de registrar seu deslumbramento por uma terra querida, pouco preocupado com quantos leitores abandonariam o volume às primeiras páginas. No fim das contas, sinto-me até feliz por ter testemunhado esse deslumbramento.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

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sexta-feira, 19 de julho de 2024

A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis - RESENHA #211

Acredito que esperei demasiado tempo para retornar à obra do grande Júlio Dinis, um dos maiores nomes do Romantismo em Portugal, de quem eu já tinha apreciado há muitos anos seu romance mais conhecido: As Pupilas do Senhor Reitor. Mas o reencontro finalmente se deu e não poderia ter sido mais satisfatório.

É lamentável que Joaquim Guilherme Gomes Coelho (verdadeiro nome do autor) tenha falecido ainda tão moço, sendo mesmo surpreendente que tenha escrito uma obra vigorosa como A Morgadinha dos Canaviais (1868) antes dos trinta anos.

Já não me recordo as qualidades literárias d’As Pupilas, o que me impede de estabelecer um paralelo com A Morgadinha. Esta constitui sem dúvida o que eu chamo de “romance completo”: como designo os romances que contemplam todos os elementos essenciais a uma boa narrativa longa.

O enredo tem início quando Henrique de Souzelas, acometido de uma enfermidade peculiar (que hoje chamaríamos de “depressão”), parte para uma longínqua aldeia minhota onde reside sua tia Doroteia. A viagem fora uma recomendação médica e Henrique a realiza muito a contragosto.

Mesmo pouco afeito aos costumes da aldeia, Henrique não demora a apreciar a vida no campo, principalmente após tomar conhecimento com a família do conselheiro Manuel, cujos membros eram ainda seus parentes. Madalena, filha do conselheiro, é quem primeiro chama a atenção de Henrique. Ela é a famosa “morgadinha dos canaviais”, título que lhe foi atribuído após herdar uma propriedade de sua madrinha. No entanto, Cristina, prima da morgadinha, é quem se enamora de Henrique, mesmo este lhe dedicando pouca atenção.

Madalena e Cristina são tipos opostos. Enquanto a primeira é uma mulher impetuosa, sagaz e de língua afiada, a outra é uma jovem tímida e de modos recatados. A Madalena não passam despercebidas as intenções de Henrique, mas lhe desagrada o tom galanteador e presumido do moço da capital, além do quê, seus sentimentos estão mais inclinados a outro personagem.

Augusto é um jovem de grande talento e inteligência, mas modesto ao extremo. Abriu mão de uma herança e de uma carreira na capital para viver uma vida simples de professor de aldeia. Sem família e de baixa posição social, converte seus sentimentos pela morgadinha num culto incondicional, mas a chegada de Henrique desperta nele um ciúme imprevisto.

Para além dessa ciranda de amores, que segue um modelo semelhante ao d’As Pupilas, temos uma interessante galeria de personagens secundários que movimenta bastante o romance. São eles, sobretudo, ferramentas convenientes à crítica política e social desenvolvida pelo autor.

O narrador de Júlio Dinis mostra-se bastante pessoal. Suas observações irônicas e comentários chistosos dão um sabor todo especial à narrativa. É ele quem nos conduz habilidosamente pelos muitos caminhos do livro, sempre trazendo às claras os mais diversos temas, esforçando-se por não perder o interesse do leitor.

Há uma visível preocupação em se manter, mesmo em temas mais graves, o tom de leveza. Quando o autor critica o fanatismo religioso, por exemplo, faz-nos rir com a insatisfação de um marido perante as beatices de sua mulher que, sempre entretida com rezas e confissões, descuida-se do trabalho doméstico. Quando o tema se altera para a politicagem na aldeia, tipos como o Morgado das Perdizes e Mestre Pertunhas rendem talvez alguns dos episódios mais cômicos do romance.

Seria um pecado imperdoável não citar finalmente o personagem que dá um toque de mistério e exotismo à trama. Falo do tio Vicente, um velho curandeiro com fama de feiticeiro, a quem se atribuem qualidades sobrenaturais. O ervanário, como também é designado no livro, é ainda uma espécie de anjo tutelar dos personagens centrais, tendo uma participação relevante em diversos episódios.

Seria inviável comentar aqui todos os pontos que me chamaram atenção em A Morgadinha dos Canaviais. É desses romances ricos de substância e com matéria suficiente para render outras centenas de páginas, não obstante sua já considerável extensão. Encerro por aqui, pois, destacando os ensinamentos e valores morais defendidos na obra, tão necessários à nossa geração e, no entanto, tão pouco difundidos entre nós.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

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sábado, 8 de junho de 2024

Frankenstein, de Mary Shelley - RESENHA #210

Frankenstein é dessas obras que povoam nosso imaginário desde que nos entendemos por gente, mas, quando finalmente nos aventuramos a ler o original, percebemos que o livro não é nada daquilo que imaginamos até então. A princípio, para mim, foi uma experiência feliz descobrir a história dessa forma, tão diferente, com propostas que vão muito além da literatura de horror. Mas os caminhos do romance, assim como seu protagonista, não me cativaram o bastante, de modo que esta não foi das leituras mais agradáveis do ano.

A maior qualidade de Frankenstein (1818) está na escrita de Mary Shelley. O texto dela se mantém belo e agradável mesmo nas passagens menos romanescas, como quando o foco está nos estudos e descobertas científicas de Victor. Poderia citar uma dúzia de autores que seriam tediosos na descrição de tais passagens. Talvez por ter crescido numa família de intelectuais e até mesmo ter casado com um poeta, Mary fosse tão expressiva em sua arte.

A primeira metade do romance, que é menos deprimente, mantém-se num nível mais palatável. O artifício de criar uma moldura para a narrativa através do capitão Walton dá um charme a mais ao livro. Em seguida, quando passamos à história de Victor Frankenstein, temos todos aqueles ingredientes da escola romântica que tanto me fascinam, especialmente no que se refere à influência da natureza sobre a trama. A autora nos transporta magicamente para os lagos suíços em noites enluaradas.

O suspense se mantém otimamente em torno da criação do ser ao qual Victor pretende conferir vida. Mas sua postura covarde perante o êxito de seu trabalho, além de acarretar consequências graves ao longo do enredo, fez-me antipatizar imediatamente com o personagem.

A partir daí, a presença de Victor em qualquer passagem prejudicava meu interesse pela obra. Felizmente, na sequência, temos a narrativa da criatura, que constitui boa parte do livro. Esse episódio é, contudo, um dos momentos mais deprimentes do romance, onde a autora, de certa forma, joga com o emocional do leitor, alimentando esperanças que logo se frustram.

Após a leitura de Frankenstein, tive acesso a uma resenha sobre o livro, escrita por Percy Shelley, o esposo da autora. Em seu texto, Percy toca num ponto que eu já havia entendido como a mensagem principal da obra: “Trate mal uma pessoa e ela se tornará perversa”. Acredito que o mais triste em Frankenstein é que nenhum personagem tenha sido de fato gentil com a criatura. O próprio cego De Lacey, que poderia ser apontado como uma exceção, jamais teria demonstrado gentileza perante a imagem monstruosa da criação de Victor. E este, o único que poderia facilitar os caminhos da criatura perante a humanidade, não teve caráter suficiente para assumir as consequências de seus atos. Um perfeito covarde.

Vocês devem ter percebido o quanto este livro me deixou irritado, e isso certamente interferiu na minha avaliação final. Eu, porém, jamais poderia negar o talento de sua autora: a beleza de sua escrita, a capacidade de pintar cenários inspiradores, a construção de atmosferas condizentes com cada passagem, dentre outros méritos inegáveis. Mas a tragicidade do livro, a meu ver bastante exagerada, acaba comprometendo o resultado final do romance. As várias mortes que se vão acumulando deixam a obra um tanto artificial, embora isso seja desculpável numa obra romântica.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

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