Já conhecia o trabalho da escritora Lúcia Miguel
Pereira (1901-1959) como crítica literária, mas não imaginava a grandeza de sua
prosa de ficção. Dentre os muitos títulos publicados pela finada “Coleção
Saraiva”, o romance Em Surdina havia figurado num dos primeiros anos. A
sinopse sugeria uma narrativa interessante, e eu certamente não poderia deixá-la
passar.
Em Surdina (1933) nos
apresenta Cecília, uma jovem aparentemente simples, mas que guardava consigo pensamentos
profundos sobre a vida. Ao concluir a escola, a expectativa da família pelo seu
casamento a deixa desconfortável e reflexiva sobre seus próprios interesses e
seu lugar no mundo.
Logo no começo do livro, Cecília rejeita um
pretendente. Ela se justifica com a desculpa de que o moço em questão não
atendia às suas exigências intelectuais, mas intimamente ela reconhece que
simplesmente não está interessada.
O interesse maior de Cecília, nesse ponto de sua
vida, é descobrir um sentido para sua existência. Ao passar, um dia, em frente
a antiga escola, ela tem um insight que a faz repensar sobre os planos e
sonhos da juventude. Ela não vê a irmã mais velha, Heloísa, como um modelo
inspirador. Os papéis de esposa e mãe não lhe deslumbram como a tantas outras
mulheres.
Um vazio perturbador faz com que ela busque uma
ocupação; mas é logo desestimulada pelo pai, Dr. Vieira, que rejeita a ajuda da
filha na organização dos papéis relacionados aos seus pacientes. O pai de
Cecília também não a encoraja a buscar trabalho, o que, para ele, seria
vergonhoso para uma moça de família da classe média.
Desocupada e livre de maiores obrigações, Cecília
vê sua vida passar em surdina entre os membros da família, os quais ela observa
de perto, analítica. O irmão mais velho, Cláudio, é um homem calculista, cujo
maior prazer é especular no mercado financeiro. Os irmãos gêmeos Antônio e João
estudam engenharia, mas apenas o primeiro demonstra vocação. João descobre-se
um homem de ideias políticas e literárias e, contra a vontade do pai, aspira
por ser escritor.
Os demais parentes não são menos interessantes. Tia
Marina, que vive com a família, é uma solteirona cética e metódica; e por
diversas vezes é apontada como um fantasma do que Cecília poderia se tornar. Os
parentes da mãe falecida também são contemplados. A avó materna, viúva, embora
muito amorosa com os netos, alimenta uma intriga com o Dr. Vieira. Tia Sinhazinha
é uma figura polêmica, perante a família, por ousar deixar o marido que a fazia
infeliz.
Assim, a vida de Cecília vai passando entre
divertimentos frívolos e cuidados com a família, sobretudo com Baby, a filha
mais velha de Heloísa. O aparecimento de Paulo, sócio de Cláudio, no entanto,
confere uma nova alegria aos dias da jovem solteira. Paulo e Cecília tornam-se
grandes amigos e cultivam uma admiração mútua, mas ela não o vê como um marido
em potencial. Paulo é descrito como um homem de poucos atrativos físicos; e, a
esse tempo, Cecília demonstra interesse amoroso por um tenente, mas sem ter com
este a conexão espiritual compartilhada com o sócio do irmão.
Essa ideia geral que esbocei da substância do livro
já deve revelar, em parte, as qualidades inegáveis de Em Surdina. Trata-se
de um romance vívido, com tipos incrivelmente reais vivendo suas vidas cheias
de erros e acertos, como todos nós. Os acontecimentos se dão de forma natural e
espontânea, e tudo na obra parece crível e real.
A autora, em diversos momentos da narrativa, propõe
a análise, a reflexão, mas a densidade do texto não apela para rebuscamentos e
jogos de palavras desnecessários. A linguagem é sempre limpa e objetiva, como
se fosse um propósito de Lúcia promover a compreensão dos dilemas de Cecília.
Uma vez que nenhum personagem parece compreendê-la, cabe ao leitor consumar
esse entendimento.
Faço apenas uma ressalva quanto à queda de ritmo na
segunda metade, especificamente após o episódio da epidemia de gripe. A narrativa
nem de longe parece ruim nesses momentos, mas perde um pouco do brilho inicial.
Em Surdina, como um todo, é uma obra excelente, embora subestimada em
nosso tempo.
Avaliação: ★★★★
Daniel
Coutinho
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