terça-feira, 27 de agosto de 2024

Os Romances da Semana, de Joaquim Manuel de Macedo - RESENHA #213

Macedo não foi um grande cultor das narrativas breves, mas chegou a publicar uns poucos contos e novelas, boa parte deles publicada na coletânea Os Romances da Semana (1861), cujos textos saíram anteriormente no periódico A Semana.

O volume abre com uma carta “Aos leitores”, na qual Macedo justifica a ligeireza com que foram concebidos aqueles trabalhos, totalmente despretensiosos e que estariam fadados ao esquecimento total, não fosse a ideia do autor de “ajuntar-lhes os restos para guardá-los em uma urna”. E, podemos dizer, que bom que lhe ocorrera tal ideia!

Os Romances da Semana trazem um conjunto delicioso de narrativas que, se não excelentes, são no mínimo agradáveis para passar o tempo. À exceção da última história, todas as outras são alegres e bem-humoradas, daquelas que combinam perfeitamente com um fim de tarde. Sendo apenas seis narrativas ao todo, comentarei cada uma individualmente.

“A bolsa de seda” é uma historinha ingênua e previsível, com um tom quase infantil. Não é das minhas preferidas do conjunto, mas é o que alguns leitores chamariam de “história fofa”. Após sonhar com o anjo da caridade em forma de moça, um jovem cavalheiro acredita encontrá-la casualmente na rua e decide, portanto, segui-la. Percebendo que a dama misteriosa estava de fato realizando obras de caridade, o jovem tenta descobrir sua identidade a partir de uma bolsa de seda que a moça carregava, uma vez que seu rosto estava sempre encoberto por um véu.

“O fim do mundo”, a despeito de seus ares de ficção científica, está mais para uma sátira político-social. Macedo fundamenta-se na crença popular de que um terrível cataclismo, provocado por um cometa que passaria pela Terra em 1856, destruiria o mundo inteiro. Longe de ser uma história de horror, “O fim do mundo” é das mais engraçadas da coletânea, tendo sido ainda mais para os contemporâneos de Macedo, pois o texto cita diversos nomes reais, como José Maria dos Reis, Paula Brito, Emílio Adet, dentre outros nomes conhecidos da época.

“O romance de uma velha” vem a ser o primeiro ponto alto do livro. É uma história divertidíssima onde Clemência, moça inexperiente, receberá uma lição um tanto amarga de sua velha tia, D. Violante, que mostrará à sobrinha o poder e influência do dinheiro sobre os homens. De fato, a respeitável anciã, que enriquecera em idade já avançada, atrai para si todos os pretendentes de Clemência, após divulgar-se que sua fortuna orçava pelos trezentos contos de réis.

“Uma paixão romântica” é outra maravilha do compilado. Talvez muitos leitores não concordem comigo, mas todo mundo tem os seus clichês favoritos, e um dos meus é aquele do rapaz que, depois de certo tempo ausente, retorna ao lar paterno onde acaba vivendo uma bela história de amor. Aqui a narrativa é tão deliciosamente trabalhada, que poderia render um romance completo. A parte final, contudo, traz um desfecho algo teatral que, a meu ver, não encaixa tão bem com o ritmo criado anteriormente; mas nada que estrague esta que talvez seja minha narrativa favorita do conjunto.

“Inocêncio” rivaliza com “Uma paixão romântica” o meu favoritismo. É sobre um jovem, como o próprio nome sugere, demasiadamente inocente. Inocêncio é o tipo do poeta sonhador que acredita que o mundo é um lar maravilhoso habitado por anjos que são a personificação da bondade, da nobreza e da honra. Seu padrinho, Geraldo-Risota, um tipo interessantíssimo cujo único consolo na vida é rir-se de tudo quanto é bom e ruim, tentará mostrar ao ingênuo Inocêncio que anjos podem não ser tão belos quanto se pintam.

Sempre me perguntei por que todos os livros que já li do doutor Macedinho eram alegres, felizes e bem-humorados. “O veneno das flores”, que encerra Os Romances da Semana, trouxe finalmente a resposta. Macedo não tinha boa mão com histórias tristes. É visível o esforço dele nesta última narrativa, sobretudo pela considerável extensão em relação às outras. Aqui ele recorre ao velho clichê da garota que é seduzida e abandonada pelo namorado, tendo um desfecho melodramático e lacrimejante. Ainda não li toda a obra de Joaquim Manuel de Macedo; portanto, não saberia dizer se ele publicou outras histórias tristes mais bem realizadas do que “O veneno das flores”. A saber, hem?

Não venho aqui dizer que Os Romances da Semana é um livro essencial e dos melhores que já li. É um bom livro, sem dúvida! Um passatempo agradável que certamente não será uma perda de tempo. Como é comum às coletâneas de contos e novelas, há histórias e histórias. E garanto que será um prazer descobrir qual será a sua.

Avaliação: ★★★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

sábado, 10 de agosto de 2024

Aguapés Flutuam na Ribeira, de João de Sousa Ferraz - RESENHA #212

O reino da Literatura é habitado por vários espécimens: temos escritores, leitores, leitores-escritores, escritores-não-leitores (sim, eles existem!), dentre muitos outros. Mas um tipo que sempre me chamou bastante atenção é o “aspirante a escritor” e, vez por outra, acabo me deparando com algum deles.

Todas as pessoas estão capacitadas para a leitura e a escrita, embora muitas não explorem essas habilidades; havendo o desejo de desenvolvê-las, um sujeito pode estudar, consultar manuais, fazer cursos, etc., que se tornará possivelmente um ótimo redator: estará habilitado para a notícia, para a coluna de fofoca e para publicar livros que trazem títulos como “12 Regras para Alguma Coisa”.

Se o sujeito, porém, é um “aspirante a escritor de literatura”, o caso é mais complexo. Isto porque os poetas, ficcionistas, dramaturgos e artistas em geral já nascem com a centelha da arte crepitando nos miolos. É quase como uma condição não diagnosticada pela ciência. Na falta desta centelha, resta ao sujeito arriscar-se num território desconhecido, contando unicamente com sua boa vontade e talvez com o sonho ou ambição de tornar-se, por exemplo, um romancista. Daí é que surgem livros como Aguapés Flutuam na Ribeira (1969), do paulista João de Sousa Ferraz (1903-1988).

O título é dos mais poéticos, sem dúvida, sendo um excelente chamariz para leitores como eu. Desejando ter uma ideia do livro, busquei por uma sinopse, mas nada encontrei, nem mesmo nas orelhas do meu exemplar. Parecia que ninguém no mundo havia lido tal obra. Mas como isso nunca foi um empecilho para mim, fui descobrir do que se tratava.

Foi com prazer que li o primeiro capítulo de Aguapés Flutuam na Ribeira. Estava diante de um romance regionalista, gênero pelo qual sou apaixonado. Mas, logo nos capítulos seguintes, percebi que algo ali estava errado. Cauteloso, pensei: “Paciência, que, desses quinhentos personagens, uma dezena ganhará brevemente um desenvolvimento lógico na ‘trama’!”. O caso é que não houve trama nem desenvolvimento, mas sim outros quinhentos personagens.

Todo mundo já ouviu os pais, os tios ou os avós entretidos numa conversa longa, na qual citam meio mundo e uma sequência interminável de fatos desconectados. Aguapés Flutuam na Ribeira seria a transcrição um tanto floreada de uma dessas conversas. O livro não tem enredo nem protagonistas definidos, embora o autor gaste mais linhas com certa dúzia de personagens.

O cenário escolhido é Iporanga, cidadezinha do interior paulista situada à margem do rio Ribeira de Iguape. Dentre os personagens mais citados, temos o coronel Quinca Leme, chefe político na localidade que, logo no início do livro, apropria-se do sítio que pertencia a um seu antigo devedor, antecipando-se aos Roque, família influente que rivalizava com os Leme o poder político.

A pista de que o romance se concentraria na disputa pelo sítio Barra dos Pilões é enganosa. Os Roque reagem pacificamente. Os capítulos seguintes apresentam simplesmente a descrição dos tipos que habitam Iporanga, como seus respectivos costumes. O autor retorna aleatoriamente a este ou àquele personagem, mas sem nunca deixar de trazer diversos figurantes para a cena.

É possível reconhecer algumas tentativas de enredo ou desenvolvimento de personagens. O professor Eurípedes Canabrava, por exemplo, é um recém-chegado que logo se interessa por Leninha, neta de Quinca Leme. O livro, porém, não traz um único diálogo sequer que desenvolva tal relação, que mais parece um namoro infantil, cheio de joguinhos sobre quem está mais interessado.

O que preenche de fato as páginas de Aguapés são as trivialidades do cotidiano no interior: um pai que vai à escola reclamar porque o filho foi maltratado, funcionários públicos entretidos em jogos durante o expediente, a expectativa dos moradores pela chegada do correio, os fandangos noturnos em casas de reputação duvidosa, os embarques e desembarques na Ribeira, os festejos religiosos tradicionais, dentre outros episódios do gênero.

O que vi de positivo, contudo, nesta tentativa de romance é o olhar sensível do autor para com o cenário. Há uma paixão implícita nas descrições mais corriqueiras da obra, seja descrevendo o telhado da igreja matriz ou as dezenas de canoas que colorem a Ribeira de Iguape. Os registros de costumes e de linguagem também merecem elogio; mas a ausência de trama e de personagens bem desenvolvidos tornam a leitura arrastada e pouco fluida.

Jamais saberemos as intenções reais do autor de Aguapés Flutuam na Ribeira. Talvez ele fizesse o livro mais para si mesmo, na tentativa de registrar seu deslumbramento por uma terra querida, pouco preocupado com quantos leitores abandonariam o volume às primeiras páginas. No fim das contas, sinto-me até feliz por ter testemunhado esse deslumbramento.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

sexta-feira, 19 de julho de 2024

A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis - RESENHA #211

Acredito que esperei demasiado tempo para retornar à obra do grande Júlio Dinis, um dos maiores nomes do Romantismo em Portugal, de quem eu já tinha apreciado há muitos anos seu romance mais conhecido: As Pupilas do Senhor Reitor. Mas o reencontro finalmente se deu e não poderia ter sido mais satisfatório.

É lamentável que Joaquim Guilherme Gomes Coelho (verdadeiro nome do autor) tenha falecido ainda tão moço, sendo mesmo surpreendente que tenha escrito uma obra vigorosa como A Morgadinha dos Canaviais (1868) antes dos trinta anos.

Já não me recordo as qualidades literárias d’As Pupilas, o que me impede de estabelecer um paralelo com A Morgadinha. Esta constitui sem dúvida o que eu chamo de “romance completo”: como designo os romances que contemplam todos os elementos essenciais a uma boa narrativa longa.

O enredo tem início quando Henrique de Souzelas, acometido de uma enfermidade peculiar (que hoje chamaríamos de “depressão”), parte para uma longínqua aldeia minhota onde reside sua tia Doroteia. A viagem fora uma recomendação médica e Henrique a realiza muito a contragosto.

Mesmo pouco afeito aos costumes da aldeia, Henrique não demora a apreciar a vida no campo, principalmente após tomar conhecimento com a família do conselheiro Manuel, cujos membros eram ainda seus parentes. Madalena, filha do conselheiro, é quem primeiro chama a atenção de Henrique. Ela é a famosa “morgadinha dos canaviais”, título que lhe foi atribuído após herdar uma propriedade de sua madrinha. No entanto, Cristina, prima da morgadinha, é quem se enamora de Henrique, mesmo este lhe dedicando pouca atenção.

Madalena e Cristina são tipos opostos. Enquanto a primeira é uma mulher impetuosa, sagaz e de língua afiada, a outra é uma jovem tímida e de modos recatados. A Madalena não passam despercebidas as intenções de Henrique, mas lhe desagrada o tom galanteador e presumido do moço da capital, além do quê, seus sentimentos estão mais inclinados a outro personagem.

Augusto é um jovem de grande talento e inteligência, mas modesto ao extremo. Abriu mão de uma herança e de uma carreira na capital para viver uma vida simples de professor de aldeia. Sem família e de baixa posição social, converte seus sentimentos pela morgadinha num culto incondicional, mas a chegada de Henrique desperta nele um ciúme imprevisto.

Para além dessa ciranda de amores, que segue um modelo semelhante ao d’As Pupilas, temos uma interessante galeria de personagens secundários que movimenta bastante o romance. São eles, sobretudo, ferramentas convenientes à crítica política e social desenvolvida pelo autor.

O narrador de Júlio Dinis mostra-se bastante pessoal. Suas observações irônicas e comentários chistosos dão um sabor todo especial à narrativa. É ele quem nos conduz habilidosamente pelos muitos caminhos do livro, sempre trazendo às claras os mais diversos temas, esforçando-se por não perder o interesse do leitor.

Há uma visível preocupação em se manter, mesmo em temas mais graves, o tom de leveza. Quando o autor critica o fanatismo religioso, por exemplo, faz-nos rir com a insatisfação de um marido perante as beatices de sua mulher que, sempre entretida com rezas e confissões, descuida-se do trabalho doméstico. Quando o tema se altera para a politicagem na aldeia, tipos como o Morgado das Perdizes e Mestre Pertunhas rendem talvez alguns dos episódios mais cômicos do romance.

Seria um pecado imperdoável não citar finalmente o personagem que dá um toque de mistério e exotismo à trama. Falo do tio Vicente, um velho curandeiro com fama de feiticeiro, a quem se atribuem qualidades sobrenaturais. O ervanário, como também é designado no livro, é ainda uma espécie de anjo tutelar dos personagens centrais, tendo uma participação relevante em diversos episódios.

Seria inviável comentar aqui todos os pontos que me chamaram atenção em A Morgadinha dos Canaviais. É desses romances ricos de substância e com matéria suficiente para render outras centenas de páginas, não obstante sua já considerável extensão. Encerro por aqui, pois, destacando os ensinamentos e valores morais defendidos na obra, tão necessários à nossa geração e, no entanto, tão pouco difundidos entre nós.

Avaliação: ★★★★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

sábado, 8 de junho de 2024

Frankenstein, de Mary Shelley - RESENHA #210

Frankenstein é dessas obras que povoam nosso imaginário desde que nos entendemos por gente, mas, quando finalmente nos aventuramos a ler o original, percebemos que o livro não é nada daquilo que imaginamos até então. A princípio, para mim, foi uma experiência feliz descobrir a história dessa forma, tão diferente, com propostas que vão muito além da literatura de horror. Mas os caminhos do romance, assim como seu protagonista, não me cativaram o bastante, de modo que esta não foi das leituras mais agradáveis do ano.

A maior qualidade de Frankenstein (1818) está na escrita de Mary Shelley. O texto dela se mantém belo e agradável mesmo nas passagens menos romanescas, como quando o foco está nos estudos e descobertas científicas de Victor. Poderia citar uma dúzia de autores que seriam tediosos na descrição de tais passagens. Talvez por ter crescido numa família de intelectuais e até mesmo ter casado com um poeta, Mary fosse tão expressiva em sua arte.

A primeira metade do romance, que é menos deprimente, mantém-se num nível mais palatável. O artifício de criar uma moldura para a narrativa através do capitão Walton dá um charme a mais ao livro. Em seguida, quando passamos à história de Victor Frankenstein, temos todos aqueles ingredientes da escola romântica que tanto me fascinam, especialmente no que se refere à influência da natureza sobre a trama. A autora nos transporta magicamente para os lagos suíços em noites enluaradas.

O suspense se mantém otimamente em torno da criação do ser ao qual Victor pretende conferir vida. Mas sua postura covarde perante o êxito de seu trabalho, além de acarretar consequências graves ao longo do enredo, fez-me antipatizar imediatamente com o personagem.

A partir daí, a presença de Victor em qualquer passagem prejudicava meu interesse pela obra. Felizmente, na sequência, temos a narrativa da criatura, que constitui boa parte do livro. Esse episódio é, contudo, um dos momentos mais deprimentes do romance, onde a autora, de certa forma, joga com o emocional do leitor, alimentando esperanças que logo se frustram.

Após a leitura de Frankenstein, tive acesso a uma resenha sobre o livro, escrita por Percy Shelley, o esposo da autora. Em seu texto, Percy toca num ponto que eu já havia entendido como a mensagem principal da obra: “Trate mal uma pessoa e ela se tornará perversa”. Acredito que o mais triste em Frankenstein é que nenhum personagem tenha sido de fato gentil com a criatura. O próprio cego De Lacey, que poderia ser apontado como uma exceção, jamais teria demonstrado gentileza perante a imagem monstruosa da criação de Victor. E este, o único que poderia facilitar os caminhos da criatura perante a humanidade, não teve caráter suficiente para assumir as consequências de seus atos. Um perfeito covarde.

Vocês devem ter percebido o quanto este livro me deixou irritado, e isso certamente interferiu na minha avaliação final. Eu, porém, jamais poderia negar o talento de sua autora: a beleza de sua escrita, a capacidade de pintar cenários inspiradores, a construção de atmosferas condizentes com cada passagem, dentre outros méritos inegáveis. Mas a tragicidade do livro, a meu ver bastante exagerada, acaba comprometendo o resultado final do romance. As várias mortes que se vão acumulando deixam a obra um tanto artificial, embora isso seja desculpável numa obra romântica.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

***


Instagram: @autordanielcoutinho
E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

sábado, 18 de maio de 2024

As Fatalidades de Dous Jovens, de Teixeira e Sousa - RESENHA #209

É impressionante o crescimento que podemos observar no início da carreira literária de Teixeira e Sousa. As Fatalidades de Dous Jovens, seu segundo romance, é demasiado superior a O Filho do Pescador, obra precursora do gênero no Brasil.

As Fatalidades foram publicadas pela primeira vez, em folhetins do jornal carioca O Mercantil, entre 29 de julho e 4 de outubro de 1846. Aqui temos o primeiro romance longo do autor, que curiosamente me pareceu menos prolixo que As Tardes de um Pintor e A Providência, publicados posteriormente. Diria mesmo que As Fatalidades de Dous Jovens é, dos quatro livros que li do autor, o mais fluido e de texto mais enxuto.

O ritmo deste romance também se destaca em relação aos outros. Os episódios são narrados objetivamente, especialmente na primeira metade. É outro ponto que gostaria de destacar: a superioridade da primeira parte em relação à segunda. Esta, embora não seja ruim, acaba sendo mais repetitiva e previsível, principalmente nos capítulos finais.

Os personagens estão bem delineados, e de modo geral são tipos simpáticos ao leitor. Mesmo as figuras secundárias, como Margarida, Mestre Estolano e Sebastião, têm uma participação interessante na narrativa. Por outro lado, um personagem de extrema relevância como Gonçalo acaba sendo negligenciado; está claro que o autor desejava criar uma aura de mistério em torno dele, deixando para o desfecho do livro o esclarecimento de suas ocasionais aparições; mas trata-se de um personagem tão interessante, talvez o maior do livro, que, a meu ver, daria conta de outro romance.

Acredito que os personagens de um livro estão bem construídos quando aguçam a curiosidade do leitor. Por diversos momentos, durante a leitura, eu desejava mais cenas deste ou daquela personagem, a fim de conhecer mais e, por consequência, ganhar proximidade. A própria Emília, enquanto protagonista, merecia mais espaço, especialmente no que se refere ao seu romance com Geraldino; o diálogo entre eles, mesmo por correspondência, é praticamente inexistente no livro.

Quanto ao enredo, este se fundamenta num grande clichê: o jovem casal cuja união é impossibilitada pela inimizade de seus pais. Felizmente, o livro não se limita a isso. Há uma diversidade riquíssima de outros elementos, envolvendo situações que acabam chamando mais atenção. O autor é minucioso em esclarecer fatos do passado, explicando o motivo de cada desavença, a presença de novos personagens, a ligação entre os mesmos, a tomada de certas decisões, etc.

Como pano de fundo dessa teia narrativa, outro destaque do romance é sua ambientação colonial, tão comum na obra de Teixeira e Sousa. O autor explora, além do momento histórico, a linguagem, os costumes e diversas outras marcas de época que transportam o leitor para o final do século XVIII. Há, por exemplo, um capítulo delicioso dedicado à descrição de um casamento na roça, que nos dá uma visão privilegiada das músicas com disputas entre cantadores, das danças entre pares, das comidas e do modo como eram servidas, além de muitos outros detalhes que documentam os costumes da época.

As Fatalidades de Dous Jovens é um belo exemplar do que era a escola romântica no Brasil. Quem aprecia os lances romanescos de um Joaquim Manuel de Macedo ou de um Bernardo Guimarães terá aqui uma nova iguaria de sabor diferenciado: um prato menos refinado, sem dúvida, mas ainda assim apetitoso.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

domingo, 21 de abril de 2024

Tragédia no Mar (The Poseidon Adventure), de Paul Gallico - RESENHA #208

Sou de uma geração da qual o navio Poseidon fazia parte do imaginário popular. Lembro de ter assistido pelo menos três versões cinematográficas da história do transatlântico que ficou à deriva no oceano, virado de ponta-cabeça. Mas somente depois de adulto descobri que todas aquelas histórias provinham de um romance norte-americano do escritor Paul Gallico, obra que, aliás, tendo sido um sucesso na época de sua publicação (1969), está hoje bastante esquecida. Depois de finalmente lê-la, consigo entender o porquê.

Iniciei a leitura de Tragédia no Mar (minha tradução, de Primavera das Neves, optou por este título) bastante empolgado com o estilo da narrativa, mas principalmente com a galeria de personagens criada pelo autor. Ali estavam, logo nos primeiros capítulos, todos os ingredientes que constituem os grandes livros de aventura: uma premissa fantástica, personagens misteriosos que escondem segredos, um casalzinho que se forma em meio ao caos, figuras simpáticas e de alívio cômico, além de muitos outros elementos que despertam a curiosidade e o interesse do leitor.

Sobre a premissa, em linhas gerais, o livro conta a história de um luxuoso transatlântico que, durante um cruzeiro que deveria compreender o natal e o réveillon, é atingido por um maremoto que o faz virar de ponta-cabeça. Os vários espaços vazios em compartimentos internos, no entanto, fazem com que o navio permaneça flutuando com o fundo do casco acima da superfície.

Uma tragédia de tal proporção, como se supõe, faz muitas vítimas instantaneamente. Quanto aos sobreviventes, além de traumatizados, estão todos muito confusos e indecisos quanto ao que fazer dali por diante. Dentre eles está o reverendo Scott, um dos primeiros a manifestar espírito de liderança, com o qual influenciará o pequeno grupo que vamos acompanhar durante toda a narrativa.

Julgo pertinente apresentar essa galeria de personagens, porque de fato ela constitui um dos maiores acertos do romance. O reverendo Frank Scott, por si só, já é um tipo muito misterioso. Proveniente de família rica e com um passado laureado de méritos no mundo dos esportes, ele abandona tudo para seguir carreira religiosa. Os demais passageiros não compreendem ao certo as razões que o levaram a fazer o cruzeiro do Poseidon, mas acreditam que o fato esteja ligado ao boato de que o reverendo havia sido desligado da igreja à qual pertencia.

Temos em seguida os Shelby, que são aparentemente uma família perfeita e exemplar. Richard e Jane parecem ser um casal modelo, pais de dois filhos muito promissores: a bela Susan e o pequeno Robin, espécie de menino-prodígio com inteligência acima da média. Ao longo do livro, porém, vamos descobrindo uma esposa frustrada e insatisfeita com um marido que ela julgava covarde e pusilânime de caráter.

O casal Rogo, por sua vez, não é menos interessante. Mike Rogo é um detetive da polícia americana que está de férias com a esposa Linda, mas todos desconfiam que ele esteja realizando alguma investigação secreta. Linda Rogo é uma mulher desprezível, que está sempre xingando todo mundo, inclusive o próprio marido, a quem culpa por ter abandonado a carreira de atriz.

Temos também o casal Rosen, que compreende o núcleo cômico de que já falei. Manny e Belle Rosen são comerciantes aposentados. Belle, em sua juventude, fora campeã de natação, mas, depois do casamento, dedicada à vida doméstica, foi ganhando cada vez mais peso. Além de serem naturalmente engraçados, os Rosen ganham facilmente a simpatia do leitor, mas justamente por isso também rendem cenas em que ficamos com o coração na mão.

James Martin é um empresário americano de alfaiataria masculina. Casado, ele está curtindo férias com sua amante. Após a tragédia, Martin entra numa crise de consciência, atormentado pela ideia de que não merecia ter sobrevivido. Mary Kinsale é uma incógnita. Trata-se de uma solteirona de poucas palavras, de caráter religioso e de muita discrição.

Tony Bates é um alcóolatra inglês, que está sempre bebendo na companhia de Pamela, que ele conheceu no navio e que, assim como ele, é capaz de beber descontroladamente sem se embriagar. Junto a eles está o americano solteirão Hubie Muller, um homem descrente no amor, mas que acabará apaixonado por Nonnie, uma dançarina que também sobrevive à tragédia. Fechando o grupo, temos o turco Kemal, membro da tripulação, que decide seguir o reverendo Scott em seu plano de salvamento.

A fórmula praticada por Gallico é fazer esse grupo avançar sempre acima pelos deques invertidos do Poseidon. Cada deque oferece um novo desafio que precisará ser vencido, e essa fórmula vai se repetindo por quase todo o livro, interrompida ocasionalmente por outras circunstâncias. Essa repetição às vezes torna-se um pouco cansativa, mas este não é nem de longe o problema mais grave do livro.

Na segunda metade da obra, infelizmente, o autor parece perder a mão no desenvolvimento da narrativa. Talvez na tentativa de surpreender o leitor com cenas chocantes, algumas situações saem por demais exageradas e até incoerentes. Acredito que o livro desanda de fato a partir de uma cena de estupro no capítulo XIII. Além do horror da cena, o mais difícil de digerir é o desenrolar estranhamente inusitado do episódio, onde os papéis se invertem e temos a vítima consolando o agressor.

Como se não bastasse essa situação inconcebível e repugnante, o autor consegue ir além ao criar uma cena de suicídio que me pareceu bastante incoerente. Dada a importância do personagem que se suicida e levando-se em conta a maneira súbita como tudo ocorre, a cena beira o ridículo, de tão improvável. A narrativa, a partir daí, fica insustentável, tornando difícil e arrastada a leitura dos capítulos finais.

O último capítulo, finalmente, ainda traz a cereja do bolo: a constatação de que todo o sofrimento vivido pelos personagens poderia ter sido diminuído se outras escolhas tivessem sido feitas. E se acham que essa novela não pode ficar pior, o livro termina com a vítima de estupro desejando ficar grávida do seu agressor. Sim, você não leu errado.

Esses momentos desagradáveis da segunda metade de Tragédia no Mar fizeram-me querer lançar o livro pela janela, não nego; mas não posso negar o grau de envolvimento que a narrativa alcança em mais de dois terços da obra. Foram realmente as escolhas questionáveis do autor que prejudicaram a constituição do livro, como também sua sobrevivência, já que o mesmo não envelheceu bem. É lamentável que tenha sido assim, pois Tragédia no Mar perdeu a grande chance de se tornar um clássico.

Avaliação: ★★★

Daniel Coutinho

***

Instagram: @autordanielcoutinho

E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

quinta-feira, 28 de março de 2024

O Matricida, de Alfredo Bastos - RESENHA #207

Desde que li Fantasias, fiquei bastante interessado na obra do paraense Alfredo Bastos. Seus contos, sutis e elegantes, causaram-me uma boa impressão. Além dessa obra, porém, a única publicação dele a que tive acesso foi este romance O Matricida, publicado em folhetins da Gazeta da Tarde entre 8 de novembro de 1880 e 14 de março de 1881. Saiu em formato de livro somente em 2022, pela Editora Oitocentista.

Aqui, devo confessar, a impressão já não foi tão positiva. O livro não chega a ser ruim, mas o enredo, o ritmo e principalmente os personagens não caíram no meu gosto. O Matricida se aproxima mais do folhetim francês, e dificilmente percebemos nele marcas dos nossos costumes. Essa capa de estrangeirismo possivelmente foi uma escolha proposital, a fim de atender ao gosto da época.

O livro é praticamente sobre a perversão e vingança de uma mulher. Alice é uma jovem simples que vive unicamente na companhia de sua mãe. Seduzida por Antão, acaba fugindo com ele, acreditando numa promessa de casamento. Ao perceber que fora enganada e abandonada, decide voltar para sua antiga casa, mas logo descobre que sua velha mãe morrera de apoplexia.

Desolada e com a honra perdida, Alice decide assumir uma nova identidade. Aproveitando-se de seus conhecimentos musicais, torna-se Julieta Alloni, professora de piano; mas, quando a farsa se descobre, decide partir para a Europa, onde descobre que está grávida de Antão.

Após dar à luz um menino, faz acordo com uma criada, recomendando-lhe que entregue a criança a uma família de agricultores. Pouco depois, Alice é descoberta por um empresário teatral, que promete torná-la uma cantora famosa. Daí, ela decide mudar de identidade mais uma vez, passando a ser Elisa Alcoy, uma cantora cubana que, em poucos anos, torna-se uma sensação mundial.

Após essa mudança de vida, Elisa procura Gastão, seu filho, passando-se por sua tia. Por conta de sua agenda com muitas viagens, a cantora matricula o “sobrinho” num colégio interno, partindo logo em seguida para sua turnê pelo Rio de Janeiro, onde reencontra Antão, que não a reconhece.

O antigo sedutor tenta se reaproximar de Alice/Elisa, ignorando completamente sua verdadeira identidade. A partir daí, a cantora começa a alimentar seus desejos de vingança, o que só será possível anos mais tarde, quando o próprio Gastão, já homem feito, poderá auxiliá-la.

Como visto, a trama realmente apresenta um formato bem folhetinesco, mas a galeria de personagens chega a ser tão desprezível, que o romance me parecia intragável em alguns momentos. Antão é um sedutor miserável e egoísta. Alice deixa-se corromper pela fatalidade e torna-se uma mulher fria, vingativa e vaidosa. Finalmente, Gastão desenvolve um péssimo caráter, sendo capaz de cometer os atos mais infames.

Há um núcleo que prometia melhorar a situação do livro: o do mordomo norte-americano James Burtley. Antão o contrata para administração do seu palacete, ignorando que Burtley possui família. A sogra e a filha vivem numa casa alugada pelo mordomo, que as visita sempre que possível. Mary, a filha de Burtley, acaba tornando-se interesse amoroso de Gastão. Infelizmente não aprovei o desenvolvimento e desdobramentos feitos pelo autor para este núcleo.

O Matricida é pois destes livros onde a maldade está sempre em evidência, podendo por isso desagradar leitores como eu. Acho que tal fator acaba sendo mais prejudicial numa obra de entretenimento, que não busca investigar ou refletir as mazelas descritas. Repito que não é um livro de todo ruim, mas certamente está muito longe de ser agradável.

Avaliação: ★★

Daniel Coutinho

***


Instagram: @autordanielcoutinho
E-mail para contato: autordanielcoutinho@gmail.com

OBS.: Adquira um exemplar de O Matricida diretamente com a editora, pelo Instagram (@editoraoitocentista) ou por e-mail (editoraoitocentista@gmail.com).